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Arquivos de Medicina

versão On-line ISSN 2183-2447

Arq Med vol.27 no.6 Porto dez. 2013

 

COMENTÁRIO

Paradigmas da medicina moderna

Ana Fonseca1, Manuel Cardoso de Oliveira1

 

1Universidade Fernando Pessoa

 

Há dois paradigmas que na medicina moderna têm exercido influência preponderante: a Medicina Baseada na Evidência -Evidence-Based Medicine (EBM) e a Medicina Centrada nos Doentes -Patient-Centered Medicine (PCM). Efetivamente nestes últimos anos ambos ganharam notoriedade, reconhecendo-se a sua enorme importância diária nas decisões relativas à prática clínica. No entanto os dois paradigmas focam-se em aspetos diferentes dos cuidados de saúde e, de fato, pouco têm em comum. Poderemos dizer que, sendo importantes, têm também algumas fragilidades, como a experiência vem apontando, o que, mesmo assim, não permite que o seu valor possa ser minimizado.

A EBM é um conceito que surgiu na literatura no início dos anos noventa, oferecendo aos clínicos a melhor evidência disponível acerca do mais adequado tratamento para os seus doentes, considerando a medicina um projeto meramente cognitivo-racional. Nesta iniciativa a singularidade dos doentes, as suas necessidades e preferências próprias e os seus estados emocionais são facilmente secundarizados como fatores relevantes para a tomada de decisões.

Por seu turno a PCM, embora não sendo um fenómeno novo, atraiu mais recentemente uma redobrada atenção, mostrando uma orientação biopsicossocial bem definida e voltada para várias áreas. Focando-se na participação dos doentes nas tomadas de decisões, tem sido difícil de implementar. São dois mundos separados que importa aproximar, prevendo-se que para esse efeito o papel da comunicação seja muito relevante1. Não é este, porém, o objetivo deste trabalho. Antes pretendemos proceder a uma análise mais profunda do conceito EBM, destacando virtudes e fragilidades mas chamando a atenção para a importância do valor da experiência clínica, colocando a tónica nos cuidados de saúde ou, se quisermos, no conceito da evidência criada pela medicina, o que verdadeiramente constitui um terceiro paradigma. Temos insistentemente referido que na área da saúde o conhecimento é um instrumento fundamental e que dele há diferentes tipos: científicos (muito ligados à EBM), experienciais (muito ligados aos ensinamentos do ato médico) e organizacionais (aproveitando dos anteriores e das novas necessidades da organização da saúde).

Há modos diversos para definir a EBM. Originalmente (1996) Sackett definiu-a como “the conscientious, judicious, and explicit use of current best evidence in making decisions about the care of individual patients” – “O uso consciencioso, explícito e sensato da melhor evidência corrente para tomada de decisões sobre os cuidados individuais de saúde”. A sua prática significa integrar a competência clínica individual com a melhor evidência clínica disponível a partir da investigação sistemática. Na opinião de Trisha Greenhalgh2, esta não é bem uma definição de EBM como um inteligente movimento retórico para posicionarmos este novo paradigma honestamente na elevada moral do terreno.

Alguns anos mais tarde, e já com a EBM bem reputada, Anna Donald e aquela autora propuseram uma outra definição3: “o uso de estimativas matemáticas da probabilidade de beneficiar ou do risco de prejudicar, derivadas de investigação de alta qualidade em amostras populacionais, para informar a tomada de decisões clínicas.”

Esta definição tem uma carga retórica menos pesada, não pretende ser uma verdade única e aponta para a importância do estudo de amostras populacionais para informar as decisões clínicas, o que pressupõe a necessidade de não fazer juízos precipitados no que se refere a aplicação individual dos ensinamentos colhidos. Na opinião das autoras, a sua definição refere três questões subjacentes ao paradigma da EBM: prática clínica, decisões clínicas (usando predições matemáticas) e evidência a partir de amostras populacionais. No entanto a história da EBM é uma história de sucesso, pois ajudou a criar novos caminhos para sintetizar e sumariar os conhecimentos segundo alguns4.

Criou-se, assim, a ilusão de que a capacidade para sintetizar evidência proporciona todo o conhecimento necessário para praticar medicina, o que não é o caso. O próprio Sackett avisou sobre os riscos da EBM estar a ser desviada dos seus propósitos. Na realidade os clínicos defrontam-se com o caos na informação, pois diariamente surgem na Medline cerca de dois mil artigos e há uma pletora de guidelines com resultados conflituosos. Ainda mais importante é a noção de que a evidência está corrompida com metodologias que ameaçam o conceito da EBM. Além disto dá-se mais atenção a outcomes biomédicos do que a outcomes relacionados com os doentes, não surpreendendo que o negligenciar contínuo de valores, preferências e circunstâncias relativas aos doentes nos conduza a hesitações. Também o volume da investigação sistemática é enorme, não sendo possível que os clínicos a possam conhecer na totalidade, problema que é agravado quando lidamos com doentes que apresentam várias morbilidades, o que leva a que frequentemente sejam excluídos de ensaios clínicos5. Por todas estas razões é tempo para um novo paradigma subjacente aos cuidados de saúde e ao planeamento dos respetivos sistemas. E deste modo somos conduzidos ao conceito da “Comparative Effectiveness Research” (CER) nas práticas de saúde e à importância do “Patient-Centered Outcomes Research” (PCOR), este último como uma infraestrutura de apoio a questões relativas aos doentes. Em conclusão: quanto mais cedo aceitarmos que o mais importante não é mitigar a doença mas otimizar a saúde, melhor será. Necessitamos, pois, de explorar estratégias que ajudem os clínicos a aprender a incorporar conhecimentos de valores, preferências e circunstâncias relativos aos doentes, e que os seus desempenhos tenham a melhor evidência disponível. Como escreveu Ian Mcwhinney “My commitment to you is not just to look after one particular illness, but to care for you as a person, whatever problem you may have. As a patient said to me once: ”I want a doctor who specializes in me.” citado por Stange C. K.6.

Após a introdução do conceito da EBM têm sido definidas várias escalas de evidência, sendo o nível 1 os achados dos ensaios randomizados e controlados (RCT), o nível 2 um ensaio coorte controlado, o nível 3 séries de casos (controlos históricos), o nível 4 striking care, eo nível 5,o mais baixo de todos, correspondente à opinião de peritos (isto é, a autoridade). Não se esperará ter um RCT para todas as decisões clínicas, o que a efetuar-se conduziria necessariamente a uma paralisia das atividades clínicas.

Recentemente os prosélitos da EBM levaram o seu fanatismo ao ponto de argumentarem que se não houver um RCT não pode falar-se de EBM. Em boa verdade este excessivo autoritarismo tem sido desacreditado. Em Junho de 2007 Montori afirma que a evidência dos RCTs está corrompida e que a insistência em tratamentos apoiados em RCTs ignora a preferência dos doentes o que abala consideravelmente o conceito de Sackett. Quanto a enviesamentos, o autor aponta alguns: paragem precoce dos ensaios, falhas na randomização e na ocultação, perdas no seguimento dos doentes, amostras e controlos inadequados e caracterização clínica e laboratorial deficientes. Na mesma linha de limitações, a abundância de subgrupos, a tirania das práticas e as fraudes nas revistas médicas completam um enquadramento de limitações que não deve ser ignorado.

A EBM e as hipóteses racionalistas sobre as quais se constrói perpetuam o mito de que reduzindo a complexidade na medicina para se focar em questões acerca das populações, intervenções, comparações e outcomes, nós ver-nos-emos livres das suas incertezas e ambiguidades. Mas, de facto nós não podemos dominar a complexidade sem perda de significado, algumas vezes muito profunda perda de significado7. Temos então de aprender com outras disciplinas, especialmente as ciências humanas e sociais, pois a investigação interdisciplinar é a única esperança da medicina para se libertar de um paradigma que foi para além dos seus termos de referência e está a causar prejuízos2. Esta tem sido a orientação por nós seguida nestes últimos cinco anos, quer nos numerosos cursos de pós-graduação organizados, quer através da criação da Associação Para A Segurança dos Doentes (APASD) onde especialistas das ciências humanas e sociais e da ciência e tecnologia interagem com profissionais especialmente ligados à saúde, para em conjunto prestarem aos doentes e à comunidade serviços que possam ser úteis.

Os protagonistas da EBM e as forças poderosas dos financiadores da investigação, investigadores principais e alguns políticos criaram um tão irrefutável conjunto de regras e expectativas que há uma tendência para que todas as questões da medicina devam ser estruturadas na linguagem da EBM e julgadas pelo seu paradigmático “gold standard” ou serem rejeitadas como não importantes. Com o seu bem-intencionado exclusivismo metodológico e enviesamentos quantitativos a EBM está bem adequada para produzir generalizações abstratas baseadas em amostras populacionais8.

Com a expansão dos conhecimentos e o desenvolvimento da EBM criou-se a necessidade de mudar as nossas estratégias, dando mais atenção aos resultados do que à provisão dos serviços, sem, claro, negligenciar as suas interligações. A subtileza desta linguagem tem importância para os desempenhos das organizações de saúde pois, como já anteriormente assinalámos, a aplicação das regras de outras indústrias à “ indústria “ da saúde não pode processar-se linearmente como se não houvesse diferentes especificidades, especialmente as implicações sociais do ato médico tão bem realçadas por Batalden e Davidoff 9.

Durante séculos, nem os conhecimentos eram específicos, nem os cuidados de saúde propriamente ditos o eram. Estes têm sido em grande parte um processo experimental, com o seu processamento apoiado em decisões clínicas resultantes da aplicação dos princípios hipotético-dedutivos característicos do método científico. A incerteza que rodeava as práticas exprimia-se em probabilidades, podendo dizerse que mesmo ainda hoje, apesar dos avanços na criação e translação dos conhecimentos, continuamos a ter de lidar com a incerteza e a complexidade. Não obstante, a introdução de algoritmos padronizados bem como das guidelines e protocolos acarretou uma clara melhoria dos resultados. Podemos então dizer que, para resolver problemas, temos dois caminhos à disposição: ou aplicando uma solução pré-formatada e pré-testada para um problema bem caracterizado e neste caso falamos de um modo sequencial; ou concebemos uma solução para um problema menos bem caracterizado e então falamos de um modo iterativo. Como é óbvio, estas duas abordagens usam processos muito diferentes. No primeiro há uma sequência de passos específicos, no segundo há um processo iterativo de tentativa / erro e múltiplas espirais de feedback. A expansão da medicina científica acarretou mais rigor e menos incertezas nos cuidados de saúde. As estruturas formais e os métodos estatísticos robustos do método científico protegeram a mente humana dos seus próprios enviesamentos e ajustaram influências ocultas não controladas. Por isso a persistência de práticas clínicas sem qualquer fundamentação científica esmorece à luz de ensaios clínicos bem desenvolvidos.

Os benefícios da EBM foram imensos e a aposta na qualidade clínica pressupõe a incorporação, na medida do possível, da evidência científica na prática médica. No entanto, advertimos que não podemos transformar o compromisso com o estilo particular da EBM numa hegemonia intelectual que pode ficar cara se não a avaliarmos no que ela tem de excessivo ou não aplicável. Destacamos então a importância da ciência pragmática, afirmando que os cuidados de saúde têm muito a ganhar se as portas dessa ciência se abrirem a métodos disciplinados de aprendizagem a partir da reflexão prática, sabendo-se que o próprio conceito de EBM tem uma componente pragmática não despicienda10.

Pode dizer-se que as instituições de saúde estão a mudar de uma maior aposta na provisão de serviços para uma aposta no gerar outcomes, o que implica mudança de estratégia, tanto mais que ao papel dos doentes se dedica crescente atenção. Os cuidados de saúde são um processo de resolver problemas mas também são um processo experimental. Quando os problemas são bem estruturados e as soluções bem conhecidas tudo fica facilitado, mas isso não é o que predomina na prática.

Muitas vezes os problemas são ambíguos e então clínicos e doentes agrupam-se num processo de pesquisa iterativo até que se possa obter redução da variabilidade e de incertezas. Por isso cuidados de saúde são simultaneamente um processo de resolver problemas e um processo experimental. E este é um outro paradigma que, na nossa opinião, importa realçar.

Por todas estas razões -grande variedade de cuidados, processos padronizados e não padronizados, decisões com base em probabilidades e incertezas múltiplas – não pode haver um planeamento único para os cuidados de saúde, o que torna o desafio ainda maior. Atendendo à natureza do ato médico, em que os componentes científicos, tecnológicos e sociais se intrincam fortemente, a necessidade de novos conhecimentos (científicos, organizacionais, e experienciais) é permanente, o que enaltece a necessidade da investigação, sem a qual a mudança esmorece. A aquisição de novos conhecimentos criou também a necessidade de nova aprendizagem. Muita desta, derivada das experiências dos cuidados de rotina, será perdida se não houver esforços deliberados para a captar. Por isso a cultura organizacional das instituições de saúde tem de ser devidamente acautelada, mediante a constituição de equipas multidisciplinares cujo funcionamento garanta o carácter holístico da saúde.

Para um planeamento correto dos cuidados de saúde é fundamental possuir-se uma compreensão minuciosa do funcionamento e das especificidades dos sistemas de saúde bem como das suas estruturas, desempenhos e objectivos a atingir. A integração de todos estes saberes é uma das componentes essenciais de qualquer tipo de planeamento. Apesar desta evidência, continuamos a assistir à proliferação de reformas isoladas, tantas vezes contraditórias e inconvenientes, continuando a verificar-se que os cuidados de saúde são encarados por alguns como fundamentalmente uma atividade de gestão, com todas as consequências negativas que isso tem. As próprias unidades de saúde são olhadas muitas vezes pelos equipamentos que albergam e não pelos cuidados que prestam, numa inversão de valores que, por tão grosseira, nem parece real. As decisões e as aptidões clínicas só mais recentemente estão a ter um escrutínio mais intenso. Efetivamente, antes de 1970 a aposta dos gestores era mais dirigida para os recursos disponibilizados aos cuidados de saúde. A partir daquela data a atenção foi mais dirigida para a gestão dos cuidados, tendência que se veio a acentuar com o correr do tempo. Entre nós, esta evolução chegou mais tarde. De qualquer modo, tem de reconhecer-se que a referida tendência era imparável. Os cuidados de saúde apresentam uma enorme variabilidade, sendo conhecida a influência dos ambientes em que ocorrem. Sabe-se também que a sua inadequação tem taxas muito elevadas, referindo algumas estatísticas que os cuidados prestados só são adequados em cerca de 50% dos casos. Os investimentos para que se possam mitigar os efeitos negativos destes enquadramentos têm sido avultados nalguns países e bastante mais modestos noutros. A questão dos erros em saúde, designação que claramente nos parece mais adequada do que erros médicos, está subjacente a toda esta problemática e constitui actualmente uma área emergente da saúde a exigir uma atenção multidisciplinar como temos vindo a acentuar. Neste momento discute-se o valor e as verdadeiras repercussões dos investimentos feitos nos processos de acreditação, bem como no controlo e melhoria da qualidade e da segurança dos doentes, aguardando-se que investigações adequadas possam esclarecer melhor o assunto. Realmente, se é verdade que intuitivamente nos parecem indiscutíveis os benefícios colhidos, também é certo que alguns líderes credenciados reconhecem que os progressos não têm sido proporcionais aos avultados investimentos efetuados. Falar numa gestão adequada dos cuidados de saúde obriga a recentrar a enorme importância da EBM e a destacar a não menor importância da evidência criada pela medicina.

 

REFERÊNCIAS

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2. Greenhalgh T. Why do we always end up here? Evidence – based medicine´s conceptual cul-de-sacs and some off-road alternative routes. J Prim Health Care 2012;4(2):92-9.         [ Links ]

3. Greenhalgh t, Donald A. Evidence based medicine as a tool for quality improvement. In: Baker R, Britten N, Jones R, editors. Oxford text book of primary medical care. Oxford: oxford university Press; 2002.         [ Links ]

4. Campbell-Scherer D. The 11th hour-time for EBM to return to first principles? Evid Based Med 2012;17(4):103-4.         [ Links ]

5. Boyd CM, Darer J, Boult C, Fried LP, Boult L, Wu AW. Clinical practice guidelines and quality of care for older patients with multiple comorbid diseases: implications for pay for performance. JAMA 2005;294(6):716-24.         [ Links ]

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8. Timmermans S, Berg M. The gold standard: the challenge of evidence-based medicine and standardization in health care. Philadelphia: Temple University Press; 2003.         [ Links ]

9. Batalden P, Davidoff F, Marshall M, Bibby J, Pink C. So what? Now what? Exploring, understanding and using the epistemologies that inform the improvement of healthcare. BMJ Qual Saf 2011;20 Suppl 1:i99-105.         [ Links ]

10. Goldenberg MJ. Iconoclast or creed? Objectivism, pragmatism, and the hierarchy of evidence. Perspect Biol Med 2009;52(2):168-87.         [ Links ]

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