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Arquivos de Medicina

versão On-line ISSN 2183-2447

Arq Med vol.28 no.1 Porto fev. 2014

 

CASOS CLÍNICOS/ /SÉRIE DE CASOS

Infeção de neuroestimulador: descrição de um caso clínico

Infection of a neurostimulator: description of a clinic case

Cristóvão Figueiredo1, Paulo Andrade1, Cátia Caldas1, Clara Chamadoira2, Maria Lurdes Santos1, António Sarmento1, Rui Vaz2

 

1 Serviço de doenças infeciosas Hospital de São João e Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

2 Serviço de neurocirurgia Hospital de São João e Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

 

Correspondência

 

RESUMO

A neuroestimulação dos núcleos subtalâmicos é uma terapêutica possível na Doença de Parkinson Idiopática. No entanto, a infeção do material heterólogo implantado é uma das complicações mais frequentes, associada a importante morbilidade. Descreve-se o caso clínico de uma destas infeções, com particular ênfase na abordagem terapêutica.

Palavras-chave: Neuroestimulador, parkinson, infeção

 

ABSTRACT

Subthalamic nucleus deep-brain stimulation is a therapeutical option for Idiopathic Parkinson’s Disease. However, hardware material infection is a frequent complication, carrying important morbidity. We report a case of such an infection, emphasizing therapeutical approach.

Key-words: Neurostimulator, parkinson, infection

 

Introdução

A neuroestimulação dos núcleos subtalâmicos (STN-DBS, subthalamic nucleus deep-brain stimulation) é uma opção terapêutica para doentes com Doença de Parkinson Idiopática (DPI), ajudando a melhorar a sintomatologia, sobretudo flutuações motoras e discinésias.1,2 A sua realização implica um procedimento cirúrgico com suporte imagiológico e eletrofisiológico. O neuroestimulador é composto por: 1) um gerador de impulsos elétricos (GIE) de localização subcutânea, geralmente na região subclavicular; 2) dois fios extensores com trajeto subcutâneo ascendendo pela região cervical, passando posteriormente ao pavilhão auricular e anteriormente em direção à região frontal bilateral; 3) dois elétrodos intra-cranianos que conduzem o impulso através da trabécula óssea e encéfalo, até à região subtalâmica. A STN-DBS deve ser ponderada em doentes com DPI com resposta prévia a levodopa mas que desenvolvam posteriormente sintomatologia motora incapacitante apesar de doses terapêuticas máximas.1 A infeção pós-operatória é uma das complicações mais frequentes, com incidência variável entre 0-15,2%,3-5 estando as espécies do género Staphylococci frequentemente envolvidas.6 Descreve-se o caso de um doente submetido A STN-DBS complicada por infeção, com necessidade de várias intervenções cirúrgicas e antibioterapia prolongada.

 

Caso clínico

Um homem de 69 anos foi submetido a implantação eletiva de STN-DBS. Tinha sido diagnosticada DPI aos 56 anos de idade, medicado inicialmente com levodopa, associando-se posteriormente carbidopa, selegilina e ropinirol. Por manter discinésias apesar de otimização farmacológica, optou-se por abordagem terapêutica cirúrgica. Tinha como co-morbilidades diabetes mellitustipo2, dislipidemia, hipertensão arterial idiopática, cardiopatia isquémica e hiperplasia benigna da próstata. Além dos anti-parkinsónicos, encontrava-se medicado com metformina, lisinopril, carvedilol, ácido acetilsalicílico e finasterida.

A cirurgia de implantação de STN-DBS não teve intercorrências imediatas. Foi feita profilaxia peroperatória com cefazolina e vancomicina. O doente teve alta no terceiro dia de pós-operatório (D3).

No seguimento em ambulatório, o doente apresentou-se clinicamente bem até D73, quando em consulta externa se detetou supuração da ferida cirúrgica na região subclavicular esquerda. Encontrava-se apirético e hemodinamicamente estável. Sem leucocitose, neutrofilia ou elevação da proteína c reativa. Fez colheita do exsudado, iniciando ciprofloxacina no mesmo dia. Foi submetido a segunda cirurgia em D78, com limpeza da ferida, remoção de GIE e de ambas as extremidades distais (subclaviculares) dos fios extensores. Isolou-se Staphylococcus aureus meticilino-sensível (SAMS) resistente a ampicilina e penicilina G no exsudado e o doente completou 2 semanas de antibioterapia pós-operatória com ciprofloxacina.

Em D100 constatou-se a existência de sinais inflamatórios da ferida operatória cervico-retroauricular, com evolução para deiscência e drenagem purulenta (sem febre nem elevação de marcadores inflamatórios). Foi internado e iniciou flucloxacilina em D120. Realizou em D121 cintigrafia 99mTc-LeucoScan: “(…) hiperfixação discreta na metade superior do trajeto extracraniano dos elétrodos (…)”. A D126 foi submetida a cirurgia, com remoção total das extensões e desbridamento da ferida cervico-retroauricular esquerda. Decidiu-se manter os elétrodos. Os exames bacteriológicos do pús e das extensões de elétrodo revelaram a presença de SAMS. Prolongou a antibioterapia com flucloxacilina até 2 semanas após cirurgia. Manteve-se apirético e hemodinamicamente estável durante o internamento.

Em consultas subsequentes o doente não apresentava evidência clínica ou laboratorial de recidiva de infeção. Contudo, um novo leucoscan de controlo realizado em D174 mostrou “(…) hiperfixação em posição póstero-lateral aos orifícios de entrada dos elétrodos (…)”, sem envolvimento aparente dos orifícios ou dos elétrodos em si. Foi internado a D207 por suspeita de osteomielite, apresentando ferida do couro cabeludo na região de entrada dos eléctrodos na calote craniana, sem drenagem ou flutuação. Reiniciou flucloxacilina associada a rifampicina. A tomografia computorizada realizada em D209 não mostrava evidência de osteomielite na calote ou qualquer complicação intracraniana. A D227 o doente foi submetido a cirurgia para correção de pequena deiscência na região frontal esquerda, reposicionando-se o elétrodo esquerdo. A deiscência não apresentava material purulento e o exame bacteriológico da zaragatoa foi negativo. Sempre apirético, o doente teve alta em D267, tendo efetuado durante todo o internamento flucloxacilina e rifampicina. Em ambulatório manteve antibioterapia com rifampicina e ciprofloxacina.

Foi reavaliado em consulta externa em D300, apresentando drenagem purulenta da ferida frontal (ainda sob a mesma antibioterapia), sem febre ou evidência de atingimento do sistema nervoso central. Decidiu-se prolongar a mesma antibioterapia e reavaliar posteriormente. A D342 mantinha o estado clínico, sem agravamento ou melhoria. Foi internado, removendo-se cirurgicamente os elétrodos a D350. O exame bacteriológico do pús foi negativo. Cumpriu um mês de flucloxacilina pós-operatória e teve alta a D383. Manteve o tratamento farmacológico que fazia anteriormente durante 10 meses, sendo então realizada palidotomia direita por termo-ablação e palidotomia esquerda 12 meses depois. Na última avaliação encontrava-se com rigidez de predomínio direito, melhoria global das discinésias, sem tremor e com marcha autónoma.

 

Discussão

O tema das infeções associadas a DBS permanece, em larga medida, por caraterizar. Permanecem por definir cabalmente os fatores de risco predisponentes, a incidência “expectável” de infeção ou as medidas profiláticas e terapêuticas necessárias. Deste modo, não existem normas orientadoras para estas infeções e a disparidade na taxa de incidência entre as diferentes séries permanece por explicar. Alguns autores têm vindo a abordar estas questões. Pepper et al.,7 numa série de 519 cirurgias de implantação de DBS (cI-DBS) observaram que, embora se tratasse de um procedimento mais simples, nas cirurgias de substituição de GIE a taxa de infeção ascendia ao triplo, quando comparadas com as cirurgias de implantação. Bathia et al.8 Numa série de 484 cI-DBS, concluíram que a existência de co-morbilidades era mais frequente no grupo dos doentes em quem ocorreu infeção e que, para além disso, a taxa de infecção diminuiu significativamente ao longo do tempo, facto que os autores atribuíram a melhoria na técnica de implantação. Esta diminuição temporal na taxa de infeção foi também observada por Piacentino et all.,9 numa série de 212 cI-DBS. Fily et al.,10 numa série de 67 doentes submetidos a cI-DBS , observou que na maioria dos casos de infeção os doentes apresentaram sinais inflamatórios locais, deiscência de ferida cirúrgica ou drenagem purulenta. As hemoculturas foram negativas em todos os casos e, naqueles em que houve isolamento de agente, 80% eram bactérias do género Staphylococci.10 tal como nas séries anteriores,7-9 nos casos de infeção com DBS implantado realizou-se remoção total ou parcial do material heterólogo preconizandose, na maioria dos doentes, reimplantação des TN-DBS 6 a 9 meses após resolução da infeção.10 A realização de palidotomia por termo-ablação é uma alternativa para alívio dos sintomas de DPI mas, por ser um processo irreversível (ao invés da cI-DBS) e com risco de complicações hemorrágicas, é habitualmente unilateral.11 Adicionalmente, os seus efeitos parecem ser em regra menos duradouros do que a STN-DBS;12 como tal, esta tem vindo a assumir-se como a intervenção neurocirúrgica preferida. No caso clínico descrito, pelo risco de re-infeção num doente com condicionamento de autonomia pela DPI, optou-se por palidotomia bilateral em dois tempos cirúrgicos, com melhoria sintomática.

O caso clínico apresentado exemplifica um quadro infecioso que, apesar de clinicamente pouco exuberante e com isolamento reiterado de agente sensível aos antibióticos instituídos, teve um curso prolongado e de difícil controlo, sendo de supor que a presença de biofilme bacteriano terá permitido ao agente em questão resistir à terapêutica anti-microbiana optimizada. Apenas a remoção de todo o material heterólogo permitiu a resolução do quadro, prevenindo a extensão intra-craniana do processo infecioso.

 

Referências

1. Dowsey-Limousin P, Pollak P. Deep brain stimulation in the treatment of Parkinson’s Disease: a review and update. Clinical Neuroscience research 2001;1(6):521-6.         [ Links ]

2. Vingerhoets FJG, Villemure JG, Temperli P, Pollo C, Pralong E, Ghika J. Subthalamic DBS replaces levodopa in Parkinson’s disease -two-year follow-up. Neurology 2002;58(3):396-401.         [ Links ]

3. Bhatia R, Dalton A, Richards M, Hopkins C, Aziz T, Nandi D. The incidence of deep brain stimulator hardware infection: the effect of change in antibiotic prophylaxis regimen and review of the literature. Br J Neurosurg 2011;25(5):625-31.         [ Links ]

4. Vergani F, Landi A, Pirillo D, Cilia R, Antonini A, Sganzerla E. Surgical, medical and hardware adverse events in a series of 141 patients undergoing subthalamic deep brain stimulation for Parkinson disease. World Neurosurg 2010;73(4):338-44.         [ Links ]

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6. Mandell Gl, Bennett JE, Dolin R, et al. Mandell, Douglas and Bennett’s Principles and Practice of Infectious Diseases.7th edition. Churchill Livingstone Elsevier. 2011. Part IV; cap.317; 3891-3904.         [ Links ]

7. Pepper J, Zrinzo L, Mirza B, Foltynie T, Limousin P, Hariz M. The risk of hardware infection in deep brain stimulation surgery is greater at impulse generator replacement than at the primary procedure. Stereotact Funct Neurosurg 2013;91(1):56-65.         [ Links ]

8. Bhatia S, Zhang K, Oh M, Angle C, Whiting D. Infections and hardware salvage after deep brain stimulation surgery: a single-center study and review of the literature. Stereotact Funct Neurosurg 2010;88(3):147-55.         [ Links ]

9. Piacentino M, Pilleri M, Bartolomei L. Hardware-related infections after deep brain stimulation surgery: review of incidence, severity and management in 212 single-center procedures in the first year after implantation. Acta Neurochir (Wien) 2011;153(12):2337-41.         [ Links ]

10. Fily F, Haegelen C, Tattevin P, Buffet-Bataillon S, Revest M, Cady A, Michelet C. Deep brain stimulation hardware-related infections: a report of 12 cases and review of the literature. Clin Infect Dis 2011;52(8):1020-3.         [ Links ]

11. Iacopino D, Conti A, Tomasello F. Pallidotomy Versus Deep Brain stimulation (DBS): Pros And Cons. Neuromodulation: Technology at the Neural Interface 2003;6(3):206-7.         [ Links ]

12. Kumar R, Lozano Am, Montgomery E, Lang AE. Pallidotomy and deep brain stimulation of the pallidum and sub thalamic nucleus inadvanced Parkinson’s disease. Mov Disord 1998; 13 (suppl 1): 73-82.         [ Links ]

 

Correspondencia:

Paulo Andrade

Serviço de doenças infeciosas, Hospital de São João. Al. Prof. Hernâni Monteiro, 4200-319 Porto. E-mail: Andrade.pf@gmail.com

Cristóvão Figueiredo

Serviço de doenças infecciosas do Hospital de São João. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. 4200-319 Porto. E-mail: cristovao.figueiredo@hsjoao.min-saude.pt

Cátia Caldas

Serviço de doenças infecciosas do Hospital de São João. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. 4200-319 Porto. E-mail: catia.caldas@hsjoao.min-saude.pt

Clara Chamadoira

Serviço de neurocirurgia do Hospital de São João. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. 4200-319 Porto. E-mail: clara.villaverde@hsjoao.min-saude.pt

Lurdes Santos

Serviço de doenças infecciosas do hospital de São João. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. 4200-319 Porto. E-mail: maria.santos@hsjoao.min-saude.pt

António Sarmento

Serviço de doenças infecciosas do Hospital de São João. Faculdade de medicina da Universidade do Porto. 4200-319 Porto. E-mail: antonio.sarmento@hsjoao.min-saude.pt

Rui Vaz

Serviço de neurocirurgia do Hospital de São João. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. 4200-319 Porto. E-mail: rui.vaz@hsjoao.min-saude.pt

 

Data de recepção / reception date: 28/06/2013

Data de aprovação / approval date: 06/12/2013

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