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Revista Portuguesa de Educação

versión impresa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação v.19 n.2 Braga  2006

 

Peroni, Vera; Bazzo, Vera L. & Pegoraro, Ludimar (2006). Dilemas da Educação Brasileira em Tempos de Globalização Neoliberal: entre o Público e o Privado. Porto Alegre: Editora da UFRGS

 

Com origem no Núcleo de Estudos de Política e Gestão da Educação, este livro tem o triplo mérito de proporcionar: 1) a abordagem de políticas e programas específicos que abrangem iniciativas actuais desde a educação infantil ao ensino universitário; 2) a articulação destas iniciativas com a transformação das instituições e do papel do estado e 3) a análise de estudos de caso centrada nas seguintes questões: (re)constituição do terceiro sector e do público "não estatal"; democraticidade da gestão educacional e transformação do que constitui aprender/ensinar. O livro constitui um exercício inovador. Mobiliza uma vasta bibliografia produzida no Brasil mas também em Portugal e no resto da região Europeia, incluindo várias áreas científicas que aqui são recrutadas pelos vários autores para dar sentido aos processos que propõem explicar. O livro decorre de um exercício de reflexão sobre a experiência de um curso de pós-graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que foi posteriormente articulado com o trabalho de investigadores convidados. Beneficia ainda da continuidade com, por um lado, a pesquisa recente de Vera Peroni e colegas da UFRGS — centrada na implementação e impacto do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério em Porto Alegre, Rio Grande do Sul — e, por outro, a análise do ‘público e do privado na educação’ que organizou com Theresa Adrião (2005)1. O interesse deste livro reside na relevância do trabalho que aí se apresenta não só para a compreensão de questões actuais da política educativa em geral, mas também para o entendimento da forma como as transformações decorrentes de alterações nas estruturas de financiamento e de decisão se associam à redefinição do papel e âmbito de acção do estado, da intervenção das instâncias não estatais na educação, das estruturas locais de decisão e do que se entende por autonomia, descentralização e participação. A organização dos capítulos regista a preocupação com a necessidade de enquadrar os estudos de caso e as abordagens de instituições e de programas específicos na discussão e análise das actuais respostas — hegemónicas (p. 11) — ao que se entende por ‘crise’ do estado. Mas, mais do que proceder a esse enquadramento, este trabalho explica a forma como a transformação de determinadas instituições e a implementação de dados programas decorrem de, e constituem, tais respostas. O diálogo que se estabelece entre a reconstituição das funções e instituições do estado e a constituição do público "não estatal" e do terceiro sector percorre todos os capítulos que fornecem, por isso mesmo uma ilustração bem articulada da forma como tais respostas se manifestam nos vários estudos de caso que foram escolhidos precisamente para as ilustrar. Para além de tudo isto, o trabalho tem ainda o mérito de analisar questões relativas à educação sem excluir os personagens centrais (professores e alunos) dessa análise — não só enquanto objecto de análise mas também enquanto autores do processo de reflexão a que se propõem. Assim, o resultado deste trabalho revela um fio condutor onde a problemática relativa à produção de um dado tipo de conhecimento sobre a noção de ‘crise do estado’ — que os autores defendem não ser possível entender sem compreender as relações e os processos económicos que lhe estão subjacentes — e sobre as respostas que lhe deverão ser dadas, inicia o percurso colectivo que subjaz a este livro onde se pode vislumbrar logo no início a discussão das questões fundamentais relativas ao que Vera Lúcia Bazzo designa de identidade profissional dos professores (p. 39). Daí, partem para a explicação das questões relacionadas com a ‘distribuição de responsabilidades entre as esferas de governo’ (p. 49) para depois, com recurso ao estudo das transformações relacionadas com o financiamento analisar matérias associadas à questão da descentralização no sector educacional. Um dos aspectos interessantes da análise de Nalú Farenzena, é o diálogo estabelecido entre descentralização no sector da educação e descentralização na área das políticas sociais. Discussão que é retomada por Lúcia Camini quando recorre, de forma efectiva ao caso de Rio Grande do Sul (1999 - 2002) para ilustrar a específicidade das reformas nacionais com ênfase no ‘Programa de Avaliação da Produtividade Docente’ (p. 72-76) e nas ‘Parcerias, Colaborações e Municipalização do Ensino’ (p. 76-79). Camini aborda, ainda neste contexto e entre outras iniciativas o orçamento participativo "como método inovador de gestão pública" (p 80) e os seus limites à participação popular. A partir da análise do Conselho Municipal de Educação enquanto espaço de participação, Lúcio Lord (p. 109) analisa os limites e dificuldades colocados à gestão democrática a partir da "constituição da democracia no Brasil em função de um histórico de desigualdades económicas, relações sociais hierárquicas e concentração de poder" (p. 114) para questionar "as possibilidades de existência e as formas de utilização de espaços destinados à participação social no atual contexto de precarização das condições de vida da maioria da população" (idem). Poder-se-á dizer que aqui se localiza o meio deste percurso colectivo já que os cinco capítulos restantes nos conduzem às discussões relativas ao ‘público não-estatal’, ao ‘terceiro sector’ e aos estudos de casos com eles relacionados. Maria Otilia Kroeff Susin analisa "a parceria público-privado constituída entre a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre e entidades da sociedade civil... ancorada na necessidade que o poder público tem de aproximar as acções das duas esferas...na construção participativa de políticas públicas com a formação de esferas públicas de decisão, bem como discutindo e construindo alternativas frente à carência de recursos para a ampliação do atendimento à educação infantil... [através da] distribuição de recursos e serviços junto à sociedade civil, estimulando a participação comunitária" (p. 122). Kroeff Susin recorre ao estudo do Convênio com as Creches Comunitárias para reflectir sobre os limites e as contradições relacionados com a participação, o "público não-estatal" (p. 131) e para explicar as consequências de tal Convênio ao mesmo tempo que propõe pistas para a reflexão sobre políticas e dilemas que emergem de forma semelhante — mesmo que delimitados por contextos históricos, políticos e sociais distintos — em outros países. Este livro revela, de forma convincente o poder de transformação e os limites associados às questões financeiras e de financiamento — quase sempre invocadas na análise de política educativa mas que nesta publicação ocupam um lugar central. O livro promete inspirar a discussão sobre os dilemas nele contidos – objecto fundamental do trabalho académico e de investigação — e contém material para estimular investigadores e alunos. As questões aqui abordadas permitem reflectir sobre dilemas, contradições e até paradoxos comuns àqueles enfrentados pelos sistemas e agentes europeus e promete sugerir pistas de investigação. Este trabalho distingue-se pelo facto de a discussão destes estudos de caso permitirem a reflexão sobre a educação na região Europeia, de uma forma integrada ao abordar questões relativas aos diversos níveis de ensino. A reflexão sobre e a compreensão do que deve/não deve ser prestado//financiado/avaliado pelas instituições do estado, por instituições de natureza comercial e caritativa constitui uma das tarefas mais fundamentais com que se depara actualmente a investigação a nível mundial. A transformação dos serviços de natureza social e as consequências de eles serem/não serem prestados/financiados/avaliados pelas instituições do estado, por instituições de natureza comercial ou caritativa exige análises com potencial para fornecer sentido à transformação em curso. Este livro propõe exactamente isso. Na sua discussão do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), Regina Tereza Cestari de Oliveira propõe uma análise muito interessante sobre a forma como ‘o conceito de público não estatal’ (p. 141) aí se materializa. Recorrendo à contextualização histórica, ela usa o Plano Director da Reforma do Estado apresentado pelo governo brasileiro em 1995 para lembrar a importância da distinção entre ‘privatização’, ‘terciarização’ e ‘publicização’ e ao fazê-lo apresenta uma proposta de análise de elevada relevância para o estudo de processos semelhantes em curso na região Europeia. Ao distinguir entre ‘transferência de serviços para o sector privado’ — ‘terciarização’ — e constituição de uma organização de direito privado, mas pública não estatal — ‘publicização’ — (p. 147), Cestari de Oliveira alarga as perspectivas de análise do processo de transformação da prestação, financiamento e regulação da educação que, enquanto marcado por processos de privatização — ‘transformação de uma empresa estatal em privada’ (idem) — não se esgota nela. A discussão que propõe sobre as Organizações Sociais Brasileiras – entidades públicas não-estatais "de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorização específica do poder lergislativo para celebrar contrato de gestão com o poder executivo e assim ter direito à dotação orçamentária" — (p. 148) introduz a questão de como se materializa o ‘público não estatal’ ‘em propostas para a educação’ (p. 151). Através do recurso ao estudo do caso das Entidades Executoras, a resposta a essa questão conduz à consideração do que, por um lado constituem as formas emergentes de sociedade civil e, por outro as implicações para a constituição da cidadania, resposabilidade e justiça social associadas a essas formas (p. 153). Utilizando ainda o estudo do mesmo caso — PDDE — mas desta vez centrada na sua implementação em S. Paulo, Theresa Adrião e colegas propõem a análise dos ‘sentidos que o Estado tem atribuído à idea de gestão democrática da escola’ (p. 159) através da reflexão sobre as fontes de recursos e a orientação jurídica da administração pública. Ao posicionar-se na ‘articulação entre participação, autonomia e descentralização’ (p. 160), a questão da transferência de recursos para as escolas (p. 167) dá sentido não só a programas que são, por tendência, analisados isoladamente mas também à articulação entre as questões relacionadas com recursos ou orientação jurídica e as questões relativas ao que constitui ‘governo’, ‘administração’ (p. 169) e ‘relações de poder no interior das instituições’ (p. 170). O estudo do caso da constituição de Unidades Executoras em São Paulo permite explicar como "no caso da rede estadual paulista, os mecanismos de repasse [de recursos às unidades executoras nas escolas] não favorecem a democratização da gestão escolar... não contribuem para a construção da autonomia necessária à unidade escolar na organização do seu projecto pedagógico e tampouco representam significativa autonomia política ou financeira" (p. 177). Através da análise do "ensino superior em Santa Catarina por meio do sistema fundacional" (p.200), Ludimar Pegoraro demonstra que "a redefinição do papel do estado e o surgimento do terceiro sector" (p. 181) "como é o caso das fundações educacionais de Santa Catarina, em contraposição ao Estado e ao mercado, gera um discurso homogeneizado, com uma forte tendência a eliminar os conflitos inerentes às dinâmicas" (p. 213) sociais. Ainda na continuidade da análise do ensino superior inserido no ‘terceiro setor’ (p. 217) mas desta vez centrado na reflexão sobre o relacionamento professor/aluno, Rosani Sgari Szilagyi apresenta, de forma bem criativa uma série de questões: "o que muda numa pessoa quando mudam sutil e eficazmente as funções sociais reguladoras? Quais padrões de comportamento, pensamento e sentimento se instauram no Ensino Superior — especialmente no relacionamento professor e aluno?" (p. 218). Ao enunciar que a "desarticulação do social requer a destituição dos sujeitos em sua essência, na sua subjectividade" (p. 220) e que sobre essa ótica "não formamos uma comunidade acadêmica-científica; simplesmente integramos a multidão universitária" (idem), o seu capítulo fertilizará concerteza a discussão, ao mesmo tempo que sugere importantes pistas de reflexão. Ao identificar o "reducionismo psicológico incomensurável" (p. 227), Szilagyi produz uma narrativa onde se torna evidente, de uma forma bastante eficaz, a explicação sobre o que está a acontecer à relação professor/aluno nas condições específicas que enuncia e sobre a forma como as questões ‘de estado’ se articulam com ‘comportamento, hábitos e atitudes’. Propondo que o "empenho na desarticulação do social traz a reboque um novo modo de regulamentação social e política que se materializa não somente no regime de acumulação como no comportamento, hábitos e atitudes..." (p. 221) e que o "relacionamento entre professor e aluno não é um problema de pedagogia, ou um problema de método de ensino" (p. 227) Szilagyi pergunta a "que concessão é forçada a professora/professor e aluna/aluno para a sua manutenção no mercado de trabalho" (idem). O seu capítulo decorre do manuseamento das teorias educacional, política e filosófica, sociológica e psicanalítica para apresentar uma discussão do ‘novo contrato social’ (p. 230) emergente no ensino superior organisado pelo terceiro sector que "toma para si a responsabilidade de representar a sociedade e que destitui todo e qualquer cidadão desta representação..." (p.230). Tal discussão promete inspirar reflexões noutros contextos e noutros lugares. Este é por isso, um livro que se recomenda a estudantes, investigadores e professores.

Nota

1  Peroni, V. & Adrião, T., (Orgs.) (2005). O Público e o Privado na Educação: Interfaces entre Estado e Sociedade. São Paulo: Editora Xamã

 

 

Clementina Marques Cardoso

Universidade de Bristol, Inglaterra