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Revista Portuguesa de Educação

Print version ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.22 no.1 Braga  2009

 

Nota de Leitura

CORTESÃO, Luiza (coord.); STOER, Stephen; MAGALHÃES, António; ANTUNES, Fátima; NUNES, Rosa; MACEDO, Eunice; SÁ COSTA, Alexandra & ARAÚJO, Deolinda (2007). Na Girândola de Significados: Polissemia de Excelências em Escolas Portuguesas do Século XXI. Porto: Livpsic.

 

1. Um trabalho colectivo e uma metodologia inovadora

Em boa hora temos entre nós como resultado de um trabalho colectivo o livro " Na Girândola de significados — Polissemia de excelências em escolas portuguesas do século XXI " da autoria da Luiza Cortesão, do Stephen Stoer1, da Fátima Antunes, da Deolinda Araújo, Eunice Macedo, António Magalhães, Rosa Nunes e Alexandra Sá Costa.

É hoje quase incontornável e largamente aceite que o ensino desde o básico ao superior deve primar pela qualidade e pela excelência (Escolas de Excelência, Centros de Investigação de Excelência), obter a posição de topo entre as instituições, ser o melhor ou dos melhores. Desde as Agências Internacionais, passando pelos diversos Estados e Blocos Centrais — Estados Unidos, Japão, União Europeia — e, em Portugal, também os respectivos Ministério da Educação e Ministério da Ciência e do Ensino Superior até às Reitorias, Conselhos Directivos de Escolas, a palavra de ordem é a excelência das escolas, de modo a formar quadros qualificados e elites na era do conhecimento. Este discurso perpassa outros ministérios e instituições, grande parte dos líderes partidários e personalidades dos vários sectores do saber nas Ciências Exactas, nas Artes, nas Letras e nas Ciências Sociais.

A Professora Luíza Cortesão e seus colegas co-autores deram um notável contributo para desvendar, em primeiro lugar, a diversidade de significados nas escolas de excelência do século XXI, estudando quatro escolas-tipo que, ainda que em gradações e contornos diferenciados, são representadas e tidas como escolas de excelência.

Com efeito, os autores começam por focalizar a sua atenção nos discursos sobre a qualidade e a excelência da educação, relevando os múltiplos significados, cujo efeito tem sido o de deslizar sentidos e mesmo desvirtuar conceitos e preocupações emancipatórias para outros entendimentos e representações de recorte tecnocrático e posicionamentos de integração e domesticação ideológicas. Os autores, recorrendo, logo na introdução, a determinadas distinções conceptuais como a de Paulo Freire entre educação bancária e educação libertadora, e assumindo a relevância metodológica da investigação-acção de Fals Borda, entre outros, e o correlativo conceito de empoderamento (empowerment)2 em vista da cidadania, mostram como determinados conceitos com preocupações emancipatórias se convertem em ideias ou preocupações de cariz tecnocrático (vg. rankings das escolas) e outras concepções de ensino, cuja filosofia de ensino-aprendizagem se cifra na lógica da competividade a todo custo, ignorando os diversos factores que propiciam situações ora de sucesso ora de insucesso.

Os autores, a fim superar discursos do senso comum e deslindar os significados diversos em torno da qualidade e da ‘excelência’ académica nos discursos de professores, alunos e pais, fazem-no com base na problematização e na desconstrução de conceitos, significados e representações destes vários agentes. A este respeito mostram como os contextos e modos de afirmação da ‘Excelência Académica’ comportam uma tensão entre pedagogia e desempenho (performance) e como as representações dos diferentes actores sociais inseridos em quatro escolas com pontos comuns mas também com características e identidades específicas são condicionadas ou constrangidas por factores macro-estruturais, por lógicas organizacionais e por contextos de interacção quotidiana. Para tal escolheram, baptizaram com nomes fictícios e tipificaram duas escolas privadas — Colégio Eugénio de Andrade e Colégio do Parque — e duas escolas públicas — Escola das Andorinhas e Escola Sarah Afonso.

Para entender os conteúdos dos diferentes modelos de gestão os autores mostram as alterações na composição e na configuração das classes em dois tempos, embora, no meu entender, a utilização e recuperação do conceito da chamada ‘antiga’ e ‘nova classe média’ me pareça bastante problemática e assenta mesmo numa imprecisão conceptual, mesmo quando a sua referência, suponho eu, à classe (média) burguesa (industrial e comercial) inerente ao fordismo e ao keynesianismo e do Estado-providência seja pertinente e adequada no que diz respeito à alteração do mercado de trabalho. Na esteira da análise de Bernstein (1976) que salienta como a nova classe média revaloriza o capital escolar em detrimento do capital económico ou da propriedade, os autores avançam a hipótese plausível e depois comprovada de que a tensão entre uma pedagogia invisível e uma pedagogia visível é resolvida em favor duma ‘pedagogia visível’ reconfigurada e expressa na valorização do capital escolar e, mais incisivamente, na excelência académica.

Esta campanha em favor da excelência particularmente na última década leva a que intelectuais e fazedores de opinião de diversos quadrantes (desde conservadores e neoliberais a progressistas) pugnem por valorizar a excelência e premiar os melhores, perspectiva esta que os autores enquadram e bem na teoria meritocrática, de raiz ora funcionalista e liberal ora socialdemocrata, a qual está ressurgindo depois da cerrada crítica que lhe foi infligida nos anos 60 e 70. Porém, como referem os autores, há contudo uma diferença: se entre os anos 50 e 70 o mercado de trabalho garantia a reprodução dos lugares de classe da designada classe média, a partir dos anos 80 e sobretudo 90 a reestruturação do mercado de trabalho irá obrigar a reconfigurar as estratégias da ‘nova classe média’, dando novo significado ao conceito de educação face à chamada massificação da escolarização e ao papel do conhecimento na designada sociedade da informação. Ou seja, atendendo à segmentação e dualização e sobretudo à crescente precarização no mercado de trabalho numa tendência de desqualificação a longo prazo, a ‘nova classe média’ tenta assegurar o seu papel de dominância e apropriação dos melhores lugares no mercado de trabalho, alterando a estratégia de distintividade e reclassificação social no sentido weberiano e bourdieusiano. Esta estratégia, baseada no conceito de excelência académica, representa a reconfiguração do contrato social rousseauniano, apelando ao conceito de desempenho (performance), visto mais como produto do que como processo. 

Os autores empreendem um esforço notável no sentido de analisar as características organizacionais e culturais das escolas estudadas, embora o esforço de caracterizar a escola, nas palavras de Nóvoa (in Cortesão et al 2007: 17), como comunidade educativa com uma identidade capaz de mobilizar os actores sociais em torno dum projecto comum poderá desembocar em algo reificante, idealizado e susceptível de obnubilar as contradições no seio da escola. Porém, mais uma vez os atentos e críticos autores chamaram a atenção para os diferentes modos de apropriação do projecto educativo.

Os autores evidenciam e bem a falsa dicotomia entre performance sem pedagogia versus pedagogia sem performance, perspectivando a pedagogia centrada nos processos de ensino-aprendizagem e a performance centrada na consecução de desempenhos mais num continuum, uma gradação e uma mistura de uma e outra em quatro subtipos: pedagogia, pedagogia através da performance, performance através da pedagogia e performance.

Por fim, importa assinalar que os autores recorrem a metodologias de ordem qualitativa: observação dos contextos e da organização dos espaços, análise de documentos, entrevistas a professores, a dirigentes da escola, pais e alunos, análise de conteúdo. 

 

2. Quatro estudos de caso: caracterização de alunos, corpo docente e pais

Os quatro estudos de caso foram realizados com base numa caracterização de alunos, professores e pais.

No primeiro caso — a Escola privada de jardim de infância e ensino básico Eugénio de Andrade com espaço de 1500m2 em casa de dois andares, jardim e parque de estacionamento — a escola está situada numa avenida nobre do Porto, próxima do mar e de sedes de empresas e com uma envolvente de espaços habitacionais de qualidade, verificando-se uma concentração de famílias das ditas classes medias e médias altas. A escola é gerida por uma equipa e docentes experientes, mas os 40 pais das crianças, também maioritariamente qualificados, acompanham de perto o projecto educativo, cujas estratégias pedagógicas assentam na procura da excelência, na expressividade e no desenvolvimento das capacidades e competências dos alunos num continuum entre pedagogia e performance mas com ênfase nesta última por parte dos pais.

Em contraponto da escola privada, no segundo estudo de caso trata-se de uma escola pública básica — a designada Escola das Andorinhas, composta por dois prefabricados bem equipados e integrada em concelho limítrofe do Porto em zona semi-rural com indústria têxtil e movimentos pendulares com o Porto — cuja filosofia de escola inclusiva enfatiza atitudes de cidadania e valores democráticos e relações de tipo horizontal — mesmo que com algum prejuízo no tocante à preparação dos alunos para exames. A formação dos pais é heterogénea, mas a maioria detém baixa escolaridade até ao 6º ano; a ênfase dos professores, com apelo à participação dos pais e abertura à comunidade, é colocada na Pedagogia, embora com alguma preocupação na performance.

No terceiro estudo de caso, a escola privada denominada Parque constitui um edifício aberto e iluminado, ostentatório, arquitectonicamente harmónico, com parque infantil e boas salas de aula com multimédia e Internet, com parque infantil com espaços amplos, com piscina quase olímpica, balneários, espaços de lazer: recreio, campos de ténis e futebol. Os encarregados de educação são, na sua maioria, licenciados e detentores de recursos económicos e no ambiente envolvente, já familiar, já escolar, é inculcada ideia de excelência, de modo a articular saber e filosofia, formar cidadãos multilingues e multiculturais e preparar os alunos para a competição por lugares destacados na cena nacional e internacional.

Por fim, no quarto estudo de caso — a escola secundária Sarah Afonso, com instalações antigas, com bom ou razoável estado de conservação, situada numa cidade sede de distrito — vive um processo de perda de alunos e de população. Apesar dos esforços dos docentes no sentido da exigência e do reforço da relevância da escola pública com sucesso para todos, nem sempre a maioria dos pais consegue acompanhar, dadas as baixas qualificações escolares que, quanto muito, alcançam nalguns casos o 12º ano.

Em suma, relativamente às profissões dos pais, enquanto nas escolas privadas, a maioria exerce profissões liberais ou detém um estatuto profissional elevado, nas escolas públicas a maioria é composta por trabalhadores de serviços e outros não qualificados. Em termos de recursos por parte dos pais ou encarregados de educação, enquanto nas escolas privadas eles detêm maior poder económico (Parque) ou posse de capital cultural (Eugénio de Andrade), nas escolas públicas os recursos são mais modestos, escassos ou ausentes, designadamente os escolares, quer no meio urbano, quer sobretudo no meio suburbano ou periférico.

 

3. Observações finais

Como os autores evidenciaram, o conceito de excelência é ambíguo e polissémico. Talvez um estudo mais detalhado sobre as condições materiais do contexto escolar, dos incentivos e motivações dos professores e sobretudo das classes de pertença dos pais e respectivos recursos detidos (económicos, sociais, culturais e políticos) poderia contribuir para aprofundar e explicar a diversidade e a polissemia da excelência. Por seu turno, a justa reivindicação de identidades em torno dos diferentes ethos ou representações culturais dos actores deverá ser articulada e aprofundada com as condições objectivas de vida de todos os actores e sobretudo com os contextos societal e organizacional, de modo a explicar a ambiguidade e polissemia do conceito de excelência. Em abono da verdade, importa referir todavia que, para além do continuum pedagogia-performance, os autores avançam e salientam na parte final os dois tempos da organização escolar: o da modernidade e capitalismo organizado e o da (dita) pós-modernidade e capitalismo tardio.

Apraz-me ainda registar que os autores, não tendo a pretensão de generalizar estes resultados para o conjunto de escolas, visam apenas, de modo talvez demasiado modesto, que o seu trabalho seja útil para que a educação ocorra de modo transparente e reflexivo. É incontornável que os autores deram um enorme contributo no conhecimento e na desconstrução dos contornos e das polissemias da excelência escolar. Por fim, importa salientar que os autores evidenciam como o trabalho sobre o objecto da excelência escolar e académica constitui o iceberg de um campo vasto de combate ideológico: conceito de meritocracia versus a preocupação central da justiça distributiva e social.

 

Notas

1    Levando em linha de conta o importante contributo do falecido Prof. Stephen Stoer na modelação das ideias veiculadas neste livro, os autores prestam-lhe deste modo mais uma homenagem ao seu trabalho. Embora não tenha privado de perto com ele como colega no quotidiano, tive todavia o prazer de ler alguns dos seus trabalhos, devendo evocar também o conhecimento mais próximo numa viagem ao Brasil no Congresso Portugal-Brasil na Fundação Joaquim Nabuco no Recife em 2000.

2   Este conceito hoje cada vez mais vulgarizado, bem presente em economistas de referência como o prémio Nobel Amarthya Sen (1999), na sua excelente obra Desenvolvimento como Liberdade, evidencia como esta, para além do seu significado jurídico-formal, só será real, desde que os grupos e indivíduos tenham a capacitação de dispor de recursos para desenvolver-se como cidadãos com direitos efectivos. Em abono da verdade, diga-se, porém, que o conceito de empoderamento, apresentado como novidade e quase lema político-institucional, reivindicado pelas instâncias oficiais, designadamente a União Europeia, é bem velhinho e remonta a Max Weber (1978) quando apresenta o poder de disposição (verfugungsgewalt) ou capacitação, capacidade ou controlo sobre recursos como um dos conceitos centrais da sua obra.

 

Bibliografia

BERNSTEIN, Basil (1976). Class, Codes and Control. Londres: Routledge

SEN, Amarthya (1999). Development as Freedom. Oxford: Oxford University Press.

WEBER, Max (1978). Economy and Society. In G. Roth & C. Wittich (eds.), Berkeley y Los Angeles: University of California Press.

 

Manuel Carlos Silva

Departamento de Sociologia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho (mcsilva@ics.uminho.pt).