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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.25 no.1 Braga  2012

 

Setor público e identidades profissionais em educação de infância: transformações e permanências na última década

Margarida Marta*; Amélia Lopes**

 

*Agrupamento Vertical de Olival, Portugal

**Universidade do Porto, Portugal 

 

RESUMO

Com o objectivo de aprofundar os efeitos das experiências de trabalho no sector público nas identidades de educadores de infância, neste artigo apresentam-se e comparam-se resultados de dois estudos – um realizado em 2002 e outro em 2009. No primeiro estudaram-se educadores com experiência apenas no sector público ou apenas no sector privado, e no segundo estudaram-se também percursos mistos. Nos dois casos, os dados foram recolhidos através do Inventário de Identidade Psicossocial de Marisa Zavalloni. Os resultados indicam a existência de aproximações entre as identidades típicas de cada sector, que podem ser imputadas ao carácter misto da maioria dos percursos, mas também, entre outros, às mudanças verificadas no sector público em função da criação dos Agrupamentos de Escola. Indicam também que as experiências no sector público se traduzem na emergência de uma identidade típica desse sector, a qual se orienta por princípios que usualmente definem a educação pública.

Palavras-chave: Construção de identidades profissionais; Educação de infância; Contextos de trabalho; Educação pública

 

Public sector and professional identities in pre-school education: transformations and continuities over the last decade

ABSTRACT

In order to explore the effects of work experiences in the public sector on the identities of pre-school teachers, this article presents and compares the results of two studies – one conducted in 2002 and another in 2009. The first studied pre-school teachers with experience in public sector only or in the private sector only, and the second studied also those with mixed career paths. In both cases, the data were collected through the Inventory of Psychosocial Identity of Marisa Zavalloni. The results indicated the existence of similarities between the typical identities of each sector, which can be attributed to the mixed nature of most career paths, but also, amongst others, to changes in the public sector based on the creation of grouped schools. They also indicate that work experience in the public sector is reflected in the emergence of an identity typical of this sector, which is guided by principles that usually define public education.

Keywords: Construction of professional identities; Pre-school education; Work contexts; Public education

 

Secteur public et identités professionnelles en éducation d’enfance: transformations et permanences durant la dernière décade

RÉSUMÉ

Dans le but d’approfondir les effets des expériences de travail dans le secteur public par rapport aux identités d’enseignants de Maternelle nous présentons et nous comparons, dans cet article, les résultats de deux études – une réalisée en 2002 et une autre en 2009. Dans la première étude, nous avons étudié les enseignants de Maternelle ayant de l’expérience seulement dans le secteur public ou seulement dans le secteur privé, et dans la seconde nous avons aussi étudié des parcours mixtes. Dans les deux cas, les données ont été recueillies au travers de l’Inventaire d’Identité Psychosociale de Marisa Zavalloni.

Les résultats indiquent l’existence d’approximations entre les identités typiques de chaque secteur, qui peut être attribuée au caractère mixte de la majorité des parcours, mais aussi, entre autres, aux modifications vérifiées dans le secteur public en fonction de la création de Groupements d’École. Ils indiquent aussi que les expériences dans le secteur public se traduisent par l’émergence d’une identité typique de ce secteur, lequel s’oriente selon des principes qui définissent, usuellement, l’éducation publique.

Mots-clé: Construction d’identités professionnelles; Éducation de maternelle; Contextes de travail; Éducation publique 

 

1. Introdução

A sociedade portuguesa faz hoje mais exigências à educação e particularmente à educação pré-escolar, considerada pela OCDE (2000, p. 202) "um alicerce vital de aprendizagem ao longo da vida [por se referir a uma fase de desenvolvimento fundamental] no sucesso posterior do indivíduo e da sociedade".

Em Portugal, a educação pré-escolar possui uma cobertura global de cerca de 70%, que é assegurada em igual medida pelo setor público e pelo setor privado (Marta & Lopes, 2008). O caráter público ou privado da educação não se relaciona apenas e diretamente com a denominação das suas estruturas concretas, pois, na sua dinâmica, como defende Nóvoa (2002), existem escolas públicas mais privadas do que as privadas e escolas privadas mais públicas do que as públicas. No entanto, no que diz respeito à educação pré-escolar, se tivermos em conta a história e a inserção de cada um dos seus setores, é possível considerar que a um esteja subjacente a filosofia de "serviço público" e a outro a de "serviço para clientes", mesmo tendo em consideração que uma grande parte das instituições privadas está sob a tutela pedagógica do Ministério da Educação (ME) atribuída pela Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar (Lei n.º 5/97, de 10 de fevereiro).

Como se diz no relatório já referido da OCDE (2000, p. 200), a "rede de estabelecimentos da solidariedade está melhor adaptada para apoiar as necessidades das famílias do que para desenvolver os aspectos educativos [enquanto que] na rede pública tende a acontecer o inverso". Neste sentido vão os resultados do estudo de Marta (2003), que realçam que as instituições privadas (Instituições Privadas de Solidariedade Social - IPSS), mesmo sujeitas às mesmas regulamentações das públicas, refletem um tipo de organização diferente, que se repercute de forma clara na construção da identidade profissional dos seus educadores.

Com efeito, como afirmam Estêvão e Afonso (1991, p. 155), o contexto organizacional parece interferir na construção da identidade profissional dos educadores, através dos "processos de socialização profissional e de construção das identidades sociais ligadas aos locais de trabalho". No estudo de Marta (2003), já mencionado, a identidade dos educadores do setor público diferencia-se bem da dos do setor privado. Trata-se de uma identidade que emergiu no pós 25 de Abril de 1974, que relaciona a atividade educativa com a construção da profissão e que se define como uma identidade de projeto, referido ao contexto social e comunitário, e se realiza num trabalho educativo centrado em metodologias ativas e participativas.

Dado que o fortalecimento da dimensão formativa e desenvolvimental é um dos grandes desafios que hoje se colocam à educação pré-escolar, seria desejável que a identidade referida se generalizasse aos educadores de toda a educação pré-escolar, sobretudo se quisermos que ela seja "a primeira etapa da educação básica no processo de educação ao longo da vida" (Lei n.º 5/97). Também o relatório da OCDE (2000) evidencia a educação de infância como uma questão de interesse público, devido à organização da sociedade, à evolução do papel da mulher no mundo do trabalho e à consciencialização política dos seus direitos.

No entanto, apesar da existência de um movimento que insiste em alertar para a importância de se dar prioridade à educação pré-escolar tendo em vista uma "cultura de iniciativa, de responsabilidade e de cidadania activa" (Portugal, 2007, p. 1), atualmente, as políticas educativas parecem tender a responder mais aos grandes interesses económicos do que à importância da formação integral dos cidadãos. Com efeito, como afirma Estêvão (2004, p. 101), embora os discursos da autonomia, que acompanham as políticas ditas de descentralização, possam veicular valores ligados à justiça, "nada garante que a própria descentralização não seja assumida como um princípio institucionalizador do mercado dentro da lógica neoliberal ou como uma técnica de gestão atenta aos interesses dos cidadãos consumidores".

Foi neste contexto que nos pareceu crucial, com vista a esclarecer progressivamente o lugar da educação pré-escolar na construção de uma narrativa coerente da educação pública, indagar sobre o impacto das experiências de trabalho no setor público na construção de identidades profissionais de educadores de infância. Para o fazermos, tivemos em conta os resultados de uma pesquisa que desenvolvemos em 2002, onde, através do estudo de percursos de educadores de infância apenas no setor público (11 sujeitos) e apenas no setor privado (11 sujeitos) – "percursos puros" –, foi possível identificar identidades típicas de cada um dos setores e dar conta das suas diferenças.

Como já apontámos, a identidade típica do setor público surgia com contornos muito próximos do que o discurso da educação pública reivindica para os educadores. Procurámos então conhecer, num estudo desenvolvido em 2009, que tipo de impacto tinham as experiências de trabalho no setor público na construção das identidades dos educadores, estudando, com o mesmo quadro teórico-metodológico, "percursos mistos", ou seja, com experiências de trabalho no setor público e no setor privado. Simultaneamente, tínhamos ainda a oportunidade de indagar sobre as transformações verificadas nas identidades dos educadores de infância em consequência das mudanças organizativas e de carreira entretanto ocorridas.

Neste artigo, apresenta-se a pesquisa realizada em 2009 e os seus resultados. Estes resultados são comparados com os resultados do estudo de 2002 e as diferenças são analisadas e interpretadas em função do objetivo que nos orienta. Começamos por referir-nos ao quadro teórico e à metodologia utilizada.

 

2. Identidade profissional, construção de identidades e seus contextos

Sendo nosso intuito estudar o impacto dos contextos de trabalho na construção da identidade dos profissionais, interessam-nos, teoricamente, abordagens que dão conta do caráter interativo, ecológico e situado dessa construção, e ainda perspetivas sobre as organizações escolares.

Ao elaborar a sua teoria sociológica da identidade, Claude Dubar (1997) distingue as teorias funcionalistas, nas quais se defende que a identidade se estabelece precocemente como resultado de uma socialização entendida como interiorização do social, e as teorias da construção social da realidade, nas quais a identidade é um processo contínuo, ou seja, uma construção, que decorre das interações dos indivíduos com os contextos socialmente estruturados. Situando-se nesta perspetiva, e sustentando-se no pensamento de Georges Herbert Mead (1962), Jean Piaget (1977a, 1977b, 1985) e Jürgen Habermas (1987, 1989), entre outros, Claude Dubar (1997, p. 110) sublinha que "não se faz a identidade das pessoas sem elas e [que] não se pode dispensar os outros para forjar a sua própria identidade". Com efeito, a construção da identidade profissional é definida por Claude Dubar (1997) como uma dupla transação, ou seja, convocando duas transações em simultâneo: uma transação interna e uma transação externa. A transação interna (subjetiva ou biográfica) estabelece-se, no indivíduo, entre a necessidade de salvaguardar uma parte das suas identificações anteriores (identidades herdadas) e o desejo de construir para si novas identidades no futuro (identidades visadas); a transação externa (objetiva ou relacional) estabelece-se entre o indivíduo e o ambiente, as instituições ou outros com os quais entra em interação. Entre as duas transações pode existir encontro ou desencontro. Em caso de desencontro, os indivíduos tendem a adotar estratégias de acomodação – de ajustamento das suas identidades visadas às identidades no momento possíveis, no contexto – ou de assimilação – de ajustamento das identidades no momento possíveis, no contexto, às suas identidades visadas. A identidade constrói-se, portanto, como processo de adaptação de si em função das identidades presentes nos contextos e/ou de adaptação dos contextos pelas identidades das pessoas que neles vivem. Daí que a construção de identidade possa resultar em simultâneo na formação (ou confirmação) das pessoas e na transformação (ou reprodução) dos contextos.

Numa abordagem sócio-crítica das organizações escolares, diz Estêvão (2004) que é nos "mundos de vida" e na sua natureza sistémica que os indivíduos coordenam as suas acções, pelas interações que estabelecem entre si. Tendo por foco de análise as políticas de autonomia, Estêvão (2004) identifica quatro tipos de "mundos": o mundo mercantil, o mundo cívico, o mundo industrial e o mundo doméstico. O mundo mercantil rege-se pelo imperativo da concorrência, o mundo cívico é regulado pelo imperativo da solidariedade e da cidadania, o mundo industrial orienta-se pelo imperativo da eficácia, e o mundo doméstico é associado ao imperativo do amor à criança, da confiança e da proximidade. Segundo o autor (ibid.), as escolas, públicas ou privadas, devem ser vistas como espaços de vários "mundos", na medida em que a lei aplicada a todos poderá ser interpretada e vivida de formas diferentes, originando diversas maneiras de ser e de estar na profissão/na escola.

Assim, no caso da educação de infância em geral e na atual conjuntura, em termos de hipótese, o mundo doméstico estaria patente no modo como os educadores, no seu trabalho, se referenciam ao amor às crianças e na importância que atribuem ao seu desenvolvimento e ao contexto comunitário e familiar. As lógicas do serviço público, entretanto, enfatizariam a racionalidade cívica, realçando a promoção da igualdade, a cidadania e o interesse geral orientado para o "ethos de serviço público"; as lógicas privadas, apelando à eficácia, à eficiência e ao máximo rendimento direcionado para o "ethos do serviço ao cliente" (ibid.), enfatizariam o mundo mercantil. Contudo, devido à (re)organização estrutural e/ou pedagógica ocorrida nos setores público e privado e dados os discursos da mercadorização se fazerem sentir em geral, e não apenas no setor privado, poderemos encontrar em cada setor racionalidades inscritas em diversos mundos.

O nível organizacional, enquanto espaço da transação relacional, tem especificidades, mas deve ser visto na interação que estabelece com os níveis individual e interpessoal ou de pequeno grupo, por um lado, e com o nível societal, por outro. Com efeito, como defende Lopes (2009) pretendendo sublinhar como os modelos culturais e as políticas educativas podem exercer influência nos processos de construção da identidade, a identidade dos educadores é, em termos estruturais e dinâmicos, um constructo ecológico, isto é, a sua compreensão requer a convocação de todo o cenário de desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1979), constituído por vários níveis, simultaneamente interdependentes e com especificidades. Segundo a mesma autora, a identidade profissional dos educadores é simultaneamente individual e coletiva (Lopes, 2008). Ao nível individual ela "é uma das identidades sociais da pessoa, dependente da identidade pessoal como um todo" e das identidades coletivas possíveis para o grupo profissional presentes na cultura, e que se traduzem, localmente, em "sistemas de ação e interpretação [dos] atores em interação social" (ibid., p. 3). Por isso, "em cada desempenho coletivo estão presentes as identidades individuais, assim como em cada desempenho individual estão presentes as identidades coletivas e as demais dimensões da identidade individual (ibid., p. 3).

Na linha interacionista simbólica que inspira estas perspetivas sobre a identidade profissional dos educadores e a sua construção, o Self tem uma origem social (forja-se na interação) e é plural (Hewitt, 1991). A identidade pessoal corresponde, neste quadro, a uma organização típica e relativamente durável (mas mutável) das diversas identidades sociais da pessoa (mãe, filha, amiga, militante política, educadora, etc.). A identidade profissional é uma dessas identidades sociais da pessoa, que adquire saliência no quadro profissional (informado pelos modelos culturais nesse campo de atividade), mas sempre relacionada com as restantes. Por isso, a identidade social ou psicossocial exprime, como dizem Zavalloni e Louis-Guérin (1984, p. 17), "a interação entre os componentes sociais e pessoais da identidade".

Fortemente influenciada pela teoria das representações sociais de Serge Moscovici (1969), com quem trabalhou, Zavalloni (1979) considera a identidade social uma estrutura cognitiva ligada ao pensamento representacional, cujo conteúdo e dinâmica emergem da biografia pessoal e da história social. Partilhando com Moscovici (1969) a ideia (entre outras) de que as representações sociais são formas de pensamento individual partilhadas por grupos (partilha que os define), Marisa Zavalloni (Zavalloni & Louis-Guérin, 1984) criou um método – o "método da contextualização representacional" – para aceder à identidade social através das representações dos indivíduos sobre a sua pertença a grupos sociais.

 

3. O Método da Contextualização Representacional

A abordagem ego-ecológica de Marisa Zavalloni (Zavalloni & Louis-Guérin, 1984), porque toma como ponto de partida as diversas pertenças dos indivíduos e o seu posicionamento nelas, permite-nos atingir a identidade profissional dos grupos e pessoas. O foco de análise é a interação entre as dimensões pessoais (intrapsíquicas) e as dimensões coletivas (interpsíquicas) de uma identidade; a identidade pessoal possui recordações e imagens de uma história pessoal ligada a uma história coletiva e, por sua vez, a identidade coletiva orienta e participa diretamente na formação da identidade pessoal, produzindo condições para a transformação de conhecimentos e juízos privados sobre si, o outro e a sociedade (por exemplo, o 25 de Abril e a posterior criação dos Cursos de Educação de Infância nas Escolas do Magistério, que deu novas possibilidades de escolha às educadoras de infância).

Zavalloni e Louis-Guérin (1984) consideram existir um "lugar" no indivíduo onde se realizam as interações indivíduo-meio – o Meio Interior Operatório (MIO) –, sendo possível, por isso, estudar a construção da realidade social através da consciência individual. A identidade psicossocial – expressiva dessas interações – é constituída por relações mais ou menos estabilizadas entre representações de si, do outro e da sociedade. O Método da Contextualização Representacional (MCR) permite aceder a essas representações. Trata-se de um método ideográfico e compreensivo que visa descobrir os princípios gerais a partir de estruturas psicológicas individuais. O seu foco é a identidade psicossocial ou Meio Interior Operatório (MIO) e o seu procedimento consiste, em termos genéricos, em recodificar as pertenças sociais objetivas, ligando-as às representações de si, dos outros e da sociedade.

O método – correspondente ao processo de recodificação – tem duas etapas e desenvolve-se em três fases. Numa primeira etapa, os inquiridos preenchem um inventário ("inventário de identidade psicossocial") e, numa segunda etapa, são entrevistados a partir das suas respostas. O preenchimento do inventário permite-nos aceder aos grupos de pertença objetivos, tal como nomeados pelos sujeitos (por exemplo, para a pertença ocupacional, os educadores tanto podem escrever que são educadores de infância, apenas, ou que são educadores de infância do setor público ou, ainda, que são educadores de infância do jardim X ou Y). Para cada grupo de pertença, distingue-se depois entre as condições "nós" e "eles/as" (por exemplo, "nós, os educadores de infância, somos…" e "eles, os educadores de infância, são…"); para cada uma destas condições, os inquiridos devem escrever palavras ou pequenas frases caracterizadoras (as "unidades representacionais" – UR). Por exemplo, "nós, as educadoras de infância, somos criativas, ativas, comprometidas" e "elas, as educadoras de infância, são pouco lutadoras, dedicadas, dependentes".

A primeira fase é coincidente com o preenchimento do inventário, a partir do qual conhecemos a identidade social objetiva dos indivíduos e as suas diversas pertenças (ou ecologia social), mas também os mecanismos de exclusão e inclusão (nomeadamente através das respostas às condições "nós" e "eles"), as UR que lhes correspondem e as respetivas "propriedades elementares" – aplicação ou não a si e seu caráter positivo ou negativo –, pois os respondentes devem anotar no inventário se a UR se lhes aplica ou não, e se tem, para eles, uma ressonância afetiva positiva, negativa ou neutra.

Na segunda fase, já através de entrevista (cf. Zavalloni & Louis-Guérin, 1984), procura-se aceder à significação das "unidades representacionais" a três níveis. O primeiro diz respeito à identidade social subjetiva (ou microcosmos social), a que se acede através da recodificação dos grupos de pertença (A quem se refere exatamente? Que imagens lhe vêm ao espírito quando pensam neles/nelas?). O segundo incide na distribuição de todas as UR no espaço elementar da identidade (Fig. 1), espaço criado por quatro quadrantes resultantes da interseção ortogonal de dois eixos: o da afetividade (positivo/negativo ou bom/mau) e o da identidade (identificação/oposição ou Self/Outro). Desta forma, é possível conhecer a relação entre a identidade pessoal e a identidade do grupo. Num terceiro nível, procura-se saber se o significado de uma UR que se aplica a si e ao grupo tem o mesmo significado nos dois casos, especificando-se semelhanças e diferenças.

 

Figura 1

O espaço elementar da identidade

 

A última fase diz respeito à configuração conceptual e emocional inerente ao "meio interior operatório" e visa um aprofundamento exaustivo da identidade psicossocial do indivíduo.

No nosso estudo, usámos uma versão adaptada de Zavalloni e Louis-Guérin (1984) e de outras adaptações anteriores do mesmo (Marta, 2003). O inventário de identidade psicossocial que utilizámos é constituído por grupos de pertença e "conceitos" (espaços semânticos no sentido que têm no Diferencial Semântico de Osgood, Suci e Tannenbaum, 1957). Os grupos de pertença considerados foram: "ocupação", "colegas do agrupamento de escolas/instituição", "educador do setor (público/privado)". Os conceitos considerados: "1.º setor de trabalho", "2.º setor de trabalho", "as reformas educativas" e "agrupamentos de escola/instituição". No caso dos conceitos, as condições "Nós" e "Eles" foram substituídas pelas condições "O melhor de…" e "O pior de…".

 

4. Características dos inquiridos

Em 2009 participaram no estudo 36 educadores de infância, na sua maioria com percursos mistos. No Quadro 1 caracterizam-se os inquiridos em algumas variáveis relevantes.

 

Quadro 1

Caracterização dos sujeitos inquiridos

 

Interessa desde já realçar que, neste estudo, os educadores do setor privado possuem idades bastante mais baixas (entre 26 e 29 anos) do que os do estudo realizado em 2002, onde as idades se situavam no intervalo 28-39. Trata-se, portanto, de uma população jovem, com um tempo de serviço entre os 6 e os 9 anos. As idades dos educadores do setor público situam-se no intervalo 37-54 (no estudo de 2002 situavam-se no intervalo 32-43), a que corresponde um tempo de serviço entre os 16 e os 33 anos1. Os respondentes dos dois setores surgem, pois, mais distintos do que no estudo de 2002. Aparentemente, a população do setor público surge mais velha e a do setor privado mais nova, parecendo existirem agora diferenças de geração entre os educadores do setor privado e os do setor público. O setor privado parece ter sido a porta de entrada na profissão para a maioria dos educadores inquiridos.

 

5. Apresentação de resultados e discussão

Neste ponto apresentamos os resultados do estudo realizado em 2009, comparando-os com os do estudo de 2002 e interpretando convergências e divergências à luz do objetivo perseguido.

 

5.1. Aspetos comuns aos educadores dos dois setores

Os dados recolhidos no estudo de 2002 e no estudo de 2009 indicam a existência de um núcleo comum e específico nos profissionais de ambos os sectores, que resulta da dupla transação identitária. Indicam também a existência de especificidades dos setores, público e privado, que têm subjacentes a sua história, as suas políticas e as interações (pessoais, interpessoais e simbólicas) que cada educador estabelece com a sua profissão, com as comunidades com que trabalha e com o seu grupo de pares. Os educadores de ambos os sectores, e nos dois estudos, atribuem muita importância ao desenvolvimento da criança – que ocupa o lugar central na sua identidade profissional. É em torno das crianças que se estabelecem as ligações entre os diversos intervenientes no processo educativo (onde se incluem as famílias e a comunidade).

Todos definem o "ser criativo" como dimensão-chave do exercício da profissão, enquanto condição de inovação e meio de multiplicar as experiências quotidianas, de forma a estimular o pensamento divergente. Percebe-se, entretanto, que o conceito de criatividade não possui o mesmo significado para todos os inquiridos. Os significados atribuídos ao conceito parecem estar, implícita ou explicitamente, ligados aos modelos pedagógicos da formação inicial, da formação complementar, às conceções dos educadores enquanto pessoas e profissionais e aos contextos de trabalho onde desenvolveram e/ou desenvolvem a sua ação.

 

5.2. A identidade social objetiva

A identidade social objetiva refere-se às unidades representacionais (UR) apresentadas mediante a colocação dos grupos de pertença ou "conceitos" como estímulos.

No que respeita aos grupos de pertença "ocupação" e "colegas do agrupamento/instituição", verifica-se existir, em 2009, nos educadores do setor público, uma maior variabilidade – relativamente à que é apresentada pelos educadores do setor privado nos dois estudos. As UR apresentadas pelos educadores do setor público no estudo de 2009 são: "Educadores de Infância", "Educadores", "Colegas do Agrupamento", "Professores". No setor privado, a variabilidade resume-se a duas possibilidades, quer nas respostas à condição "Nós", quer nas respostas à condição "Eles": "Educadores de Infância" e "Colegas da Instituição".

No grupo de pertença "educador do setor…", todos os educadores respondem de acordo com o setor em que trabalham no momento e se identificam com ele. No conceito "1.º setor de trabalho", verifica-se, nos educadores atualmente no setor público, que 20 tiveram como 1º setor de trabalho o privado e 5 o público; dos educadores atualmente no privado, 3 referem o público como 1º setor de trabalho. No conceito "2.º setor de trabalho", as respostas surgem como o reverso do anterior: 20 inquiridas atualmente no setor público têm o público como 2º setor de trabalho e 3 atualmente no setor privado têm como 2º setor de trabalho o privado.

Em síntese, os dados relativos à identidade social objetiva revelam consonância entre os dois estudos na maioria dos parâmetros, à exceção dos educadores do setor público no grupo de pertença "ocupação", onde se verifica um aumento de variabilidade, que poderá dever-se às transformações operadas na inserção dos jardins de infância públicos com a criação dos Agrupamentos de Escola.

 

5.3. A identidade social subjetiva: espaço elementar de identidade

A identidade social subjetiva analisa-se a partir da recodificação dos grupos de pertença e dos "conceitos". Os inquiridos qualificam as UR em termos de egomorfismo/alomorfismo – aplicação a si (S) e aplicação ao outro (O) – e de ressonâncias afetivas (positivas e negativas), permitindo colocá-las nos quatro quadrantes do espaço elementar da Identidade (S+, S-, O+ e O-).

Grupo de pertença "ocupação"

O Self dos inquiridos do setor público no que respeita à pertença profissional (ocupação) apresenta-se com uma vertente positiva e uma vertente negativa. No pólo positivo, veem-se como "orientadoras do saber e das aprendizagens", "inovadoras", "investigadoras"; no outro pólo, surgem características muito negativas que se referem a um grupo de diferenciação: "autoritárias em demasia" e "distantes". Já o Outro é considerado apenas na sua componente positiva: "compreensivas", "meigas" e "afáveis". No setor privado, os educadores surgem com um Self muito valorizado e uma identificação à profissão ligada às crianças: o ser "criativo" e o ser "carinhosa" são a tónica dominante. Ao Outro atribuem também características positivas: fazer um trabalho com "simpatia" e serem "brincalhonas". Nos educadores deste setor parece não existir grupo de diferenciação.

Tal como no estudo anterior (Marta, 2003), o grupo dos educadores do setor privado apresenta uma representação da ocupação mais coesa e mais baseada em aspetos da relação interpessoal. Também como no estudo anterior, a representação da ocupação dos educadores do setor público é, mais do que no privado, marcada por uma definição profissional, a qual, também como no estudo anterior, parece trazer consigo a existência de um grupo de diferenciação, que possui as características consideradas negativas.

Grupo de pertença "colegas do/a agrupamento/instituição"

As respostas dos educadores no setor público permitem distinguir dois grupos: um de identificação – "trabalhadoras" e "originais" – e um de dissociação – "passivas" e "reprodutoras". Os educadores no setor privado, em geral, identificam as colegas como "responsáveis" e "trabalhadoras" no desenvolvimento do trabalho com as crianças. No entanto, no que concerne a questões relacionadas com o método de trabalho, a apreciação assume uma perspetiva negativa e até agressiva: "imaturas" e "individualistas".

Se nos educadores do setor público a diferenciação se relaciona, mais uma vez, com a visão que têm da profissão e do profissional de educação de infância – atividade, investimento e inovação –, nos educadores do privado a diferenciação relaciona-se com o método de trabalho pedagógico (provavelmente atravessado por questões de idade e experiência). Comparando com o estudo anterior, verifica-se existir, nos educadores do setor privado, uma mudança de postura. No estudo anterior, as características distintivas baseavam-se mais nas relações interpessoais estabelecidas entre os adultos ("conflituosas", "falsas") e menos nas questões pedagógicas.

Grupo de pertença "educador do setor…"

Nos educadores do setor público existe um grupo de identificação: "grupo proactivo", "profissionais de educação". Há características positivas também relacionadas com a profissão, mas atribuídas ao Outro, tais como "atualizadas" e "informadas". O grupo de dissociação é qualificado com características negativas relacionadas, mais uma vez, com a forma de estar na profissão – "acomodadas", "resistentes à mudança". Estes mesmos inquiridos distinguem dois grupos ao qualificarem os educadores do privado: um de tipo negativo, mas ligado à instituição – "menos autónomas" – e outro de tipo positivo – "orientadas", "cumpridoras" e "no setor privado existem excelentes profissionais".

Os educadores no privado identificam-se com um grupo a que atribuem características positivas e negativas. As primeiras relacionam-se com a postura no trabalho – "empenhadas" e "dinâmicas" – e as segundas com a "falta de formação", o não "reconhecimento do seu trabalho" e a "excessiva carga horária". O grupo de dissociação aparece com características negativas ligadas à forma como se relacionam no trabalho: "competitivas" e "trabalhadoras individualistas". Os inquiridos do setor privado atribuem aos educadores do setor público características positivas, que gostariam de ter – "informação", "atentas às novas pedagogias" –, relacionadas com o trabalho realizado com maior liberdade de escolha. As características menos positivas referem-se à "burocracia" e ao "trabalharem menos horas diretamente com as crianças".

Comparando com o estudo anterior (Marta, 2003), parece existir uma mudança de atitude e de perceção que resulta numa aproximação das perspetivas dos dois grupos. No estudo anterior, os dois setores apareciam como grupos de oposição: "fechadas" e "pouca consciência profissional" são exemplos de UR usadas pelos educadores do setor público em relação aos do setor privado; e "autoritárias", "arrogantes" e "senhoras" são exemplos de UR usadas pelos educadores do setor privado em relação às educadoras do setor público. O desvanecimento da oposição pode ser imputado quer ao facto de os percursos serem, na maioria, mistos, quer às mudanças verificadas nos contextos de trabalho do setor público (com a integração nos Agrupamentos e o aumento da burocracia e da carga de trabalho). Pode ainda ser imputado à idade dos educadores do setor privado (potenciais educadores do setor público?) e às próprias mudanças geracionais (com origem na cultura, mas também, possivelmente, e entre outros, na formação inicial).

Mas a perceção que os educadores têm de cada setor de trabalho mantém-se diferente, e a diferença vai no mesmo sentido. Nos educadores atualmente no setor público, é a visão do educador de infância como profissional que continua a organizar grande parte das representações. O grupo de dissociação tem características que põem em causa esse perfil. Os educadores do setor privado valorizam-se pela forma como desenvolvem o seu trabalho pedagógico com as crianças, aspeto que é agora (em 2009) o núcleo da definição identitária destes educadores (antes ocupado pelas relações interpessoais entre pares); o grupo de dissociação surge apenas em relação a esse núcleo identitário. O setor público parece continuar a ser atrativo no que respeita à liberdade de opção no trabalho, mas menos atrativo devido à burocracia.

Conceito "1.º setor de trabalho"

Para a grande maioria dos inquiridos, o privado foi o primeiro setor de trabalho. Os que atualmente estão no setor público podem agora estabelecer comparações. Assim, o melhor do "1.º setor de trabalho" refere-se a: "relações interpessoais", "as primeiras colegas", "as aprendizagens com as colegas", a "continuidade do grupo de crianças". O pior refere-se ao "ambiente de trabalho, passível de ser gerador de zunzuns" e a "falta de material".

Os inquiridos de momento no privado salientam como o melhor do seu setor de trabalho a "equipa educativa" e a "autonomia que temos na sala". Como o pior destacam o "trabalho excessivo" e a "falta de formação".

Curiosamente, os educadores agora no setor público valorizam no primeiro setor de trabalho (o privado, na maioria) o mesmo que os educadores do privado valorizavam no estudo de 2002: as relações interpessoais entre pares. Algo de semelhante acontece com o que consideram mais negativo. Para os educadores no setor privado, o primeiro contexto de trabalho é, na maioria, o próprio setor privado. Mais uma vez se detetam sinais da deslocação identitária já referida anteriormente: agora é a autonomia no trabalho pedagógico com as crianças o referente valorizado, e menos as relações interpessoais com as colegas de trabalho, identificadas por "equipa educativa". Aparentemente, este é agora o pilar da identidade profissional, lugar que surge como espaço de autonomia e, portanto, fonte de profissionalização. Esta ênfase dada ao trabalho pedagógico na sala de aula como espaço de autonomia poderá relacionar-se com o possível aumento da procura do setor público (dadas as novas condições de acolhimento nesse setor e as decisões relativas à universalização da educação pré-escolar a partir dos 5 anos), que levaria as Direções do setor privado a investir mais na dimensão educativa nos jardins de infância e, portanto, a reconhecer as educadoras como profissionais. Talvez possamos inferir que as Direções (re)formularam a sua atitude perante os profissionais, as famílias e as próprias crianças.

Conceito "2.º setor de trabalho"

Para os inquiridos do setor público, o "2.º setor de trabalho" (o público) corresponde a uma visão mais construtiva e a uma atitude mais desafiante – "abertura a novas práticas" e "novas experiências". O pior desse setor diz respeito ao "excessivo número de reuniões" e ao "trabalho burocrático", que impedem os educadores de refletir mais sobre as suas práticas. De entre os educadores no momento no setor privado, apenas três têm experiência nos dois setores (primeiro o público e depois o privado). Falam positivamente deste novo contexto, realçando a possibilidade de "estabilidade profissional" e de "aplicar o que aprendi". Ressentem-se da "falta de hora não direta" e de não "trabalharem menos horas com as crianças" (tendo provavelmente o público por referência).

Aparentemente, reaparecem no segundo setor as características já identificadas em cada setor, embora pareça também que as profissionalidades se misturam: as experiências do privado estão presentes nos educadores no público e as experiências do público estão presentes nos educadores no privado.

Conceito "as reformas educativas do pré-escolar"

Tendo em conta as reformas educativas dos últimos anos, os inquiridos no setor público elegem positivamente "a constituição dos agrupamentos" e o "Estatuto da Carreira Docente". Consideram como o ‘Pior’ das reformas o "corte do artigo 185 (dispensa para formação contínua)", "o aumento da idade da reforma" e a "hierarquia da carreira docente". Se as primeiras dão maior visibilidade à educação de infância e a aproximam dos professores dos outros graus de ensino, as segundas podem induzir acomodação e desinvestimento profissional. Os inquiridos no setor privado privilegiam "a inclusão das crianças com NEE" e a "valorização da educação pré-escolar". Em contrapartida, não consideram que a "universalidade da frequência do jardim de infância aos 5 anos" seja uma boa decisão, receando provavelmente a migração de crianças para jardins de infância da rede pública.

As reações a estas reformas na condição ‘Pior’ parecem depender da identidade prévia de cada setor, reagindo os do setor público aos perigos de desprofissionalização e os do setor privado aos perigos do seu próprio desaparecimento. As reações na condição ‘Melhor’ indiciam que os educadores do setor público consideram positiva para os educadores no setor público a sua aproximação aos outros níveis de ensino, através dos Agrupamentos. Nos educadores do setor privado, a condição ‘Melhor’ faz emergir de novo a centralidade da relação pedagógica com as crianças (agora em função das crianças com NEE); a importância dada à educação pré-escolar é vista como promessa de melhoria das suas condições de trabalho.

Conceito "o meu/minha agrupamento/instituição"

Os inquiridos no setor público, no que respeita ao seu Agrupamento, colocam na condição ‘Melhor’ a "troca de experiências" e a "(relação) cordial e diplomática"; na condição ‘Pior’ salientam "a falta de articulação entre os diferentes níveis" e o "pouco poder de decisão". Os inquiridos no setor privado referem como ‘Melhor’ na sua instituição o "bom ambiente de trabalho" e a "autonomia que temos na sala". Na condição de ‘Pior’, os inquiridos referem-se aos "baixos salários", à "falta de reconhecimento" e à "falta de comunicação entre educadores e direção".

No estudo anterior, as crianças, a comunidade e o envolvimento em projetos eram pilares da construção da identidade do educador da rede pública, a que se aliava a grande margem de liberdade de ação. Para os educadores do setor público, a inserção em Agrupamentos parece trazer consigo o risco de perda de autonomia, mas também vantagens em termos de integração no percurso da educação básica. Para os educadores no setor privado, os problemas apresentados pelas instituições parecem ser persistentes (por relação com o estudo anterior), à exceção da "autonomia na sala de aula", que aparece como novidade, demonstrativa de que algo pode estar a mudar no setor privado.

 

Conclusões

Foi nosso intuito conhecer que tipo de impacto tinham as experiências de trabalho no setor público da educação pré-escolar na construção das identidades dos educadores, comparando resultados de dois estudos realizados em diferentes momentos – no início e no final da primeira década do séc. XXI. O estudo, realizado com educadores a trabalhar no setor privado e no setor público, permitiu-nos uma aproximação a essa questão através das transformações verificadas nas identidades dos educadores de infância em consequência das mudanças organizativas e de carreira entretanto ocorridas. Tornaram-se, assim, mais visíveis alguns dos fios condutores da construção das identidades profissionais de educadores de infância do setor público e do setor privado na primeira década do séc. XXI, marcada por fortes mudanças na educação em geral e na educação de infância em particular.

Não pretendemos, nesta conclusão, fazer generalizações, mas contribuir, através dos dados fornecidos, para a elaboração dos modos como os contextos sociais, políticos e profissionais, e sobretudo as políticas educativas, em geral e para o ensino pré-escolar em particular, favoreceram ou desfavoreceram a construção de uma profissão forte e esclarecida e uma educação de qualidade – que, no caso do pré-escolar, passa, na base, pela assunção da sua vertente educativa, muito para além da assistencial.

As sínteses parciais e sequenciais que fomos realizando permitem-nos afirmar que a identidade típica dos educadores estudados é ainda expressiva de grandes diferenças nos princípios por que se rege a educação oferecida em cada setor, dependente sobretudo de formas organizativas e finalidades distintas. É ao setor público que mais corresponde o "ethos do serviço público", caracterizado aqui pela referência à comunidade educativa, regida pela procura de uma maior proximidade aos agentes e sujeitos educativos, numa vertente que privilegia a democracia, a participação e a emancipação. É também nos educadores do setor público (mesmo com percursos mistos) que se continua a encontrar de forma mais clara uma identidade em que os educadores, não só se reconhecem como profissionais, como perseguem princípios de educação que vão para além do caráter mais ou menos agradável das relações estabelecidas. As experiências de trabalho no setor público parecem, portanto, corresponder à formação desse tipo de identidade e as identidades dos educadores do setor público aparecem como uma base importante para a coerência da educação pública.

A integração da educação de infância pública nos Agrupamentos de Escola parece ter introduzido algumas alterações na identidade dos educadores deste setor, as quais, por um lado, fazem diminuir (sem eclipsar) a sua dimensão projectual e reflexiva (em favor da burocratização), mas, por outro, a colocam diretamente no percurso da educação pública. Enfim, a integração na educação básica coloca a educação de infância num registo mais burocrático e industrial, mas aumenta a sua relevância para uma narrativa coerente da educação pública.

Entretanto, embora ao setor privado possa corresponder mais o "ethos do serviço para clientes", o registo doméstico-cívico parece predominar sobre o industrial-mercantil da competitividade e do rendimento. Com efeito, não se encontram, pelo menos através do estudo das identidades dos educadores e com a metodologia utilizada, sinais claros do mundo mercantil no setor privado, a não ser no que respeita à competição por públicos próprios, que aumentou com as transformações operadas no setor público. No entanto, nesse caso, a necessidade de públicos no setor privado parece contribuir para o alargamento do espaço de profissionalização dos educadores desse setor, nomeadamente através da autonomia dos educadores no trabalho pedagógico de sala. A identidade profissional centrada nas relações interpessoais entre os educadores, como refúgio contra as prescrições das Direções ou como resposta necessária aos pais, com vista à manutenção dos empregos, parece dar lugar a uma identidade com jurisdição profissional própria – a autonomia no trabalho pedagógico.

As transformações verificadas na educação pré-escolar nos últimos dez anos traduziram-se, portanto, numa aproximação das identidades dos educadores dos dois setores. De destacar, neste aspeto, o facto de o aumento (ou o possível aumento) da procura do setor público provocar no setor privado o desenvolvimento de lógicas educativas em detrimento das lógicas assistenciais, criando espaços de profissionalismo aos seus educadores – aqui entendido na sua aceção geral de possibilidade de autonomia e decisão em aspetos nucleares da qualidade da atividade. Com efeito, o estudo indica que a integração da educação pré-escolar pública no rio da educação básica teve efeitos profundamente positivos na melhoria da educação de infância em geral, ao "obrigar" as instituições privadas a fortalecerem a componente educativa da educação de infância, contribuindo, portanto, para responder ao apelo de António Nóvoa (2002) quanto à necessidade de construção de uma narrativa coerente da educação pública. Este resultado é importante também porque contraria o que tem sido o discurso dominante dos últimos anos sobre a "nova gestão pública", que considera que a qualidade do setor público, na saúde e na educação, aumenta pela adoção de esquemas de gestão típicos do setor privado. Na verdade, uma forte e genuína educação pública parece ser a melhor maneira de melhorar a qualidade da educação em geral.

Mas os resultados, nas suas nuances, indicam igualmente que poderemos vir a assistir a um reforço do mundo mercantil na educação de infância, sobretudo se se concretizar a livre escolha, voltada para responder mais às necessidades dos grandes interesses económicos do que à importância da formação integral dos cidadãos. A livre escolha, relacionada também com a postura dos pais e suas imagens da escola, pode dar origem a escolas elitistas, por um lado, e a guetos, por outro, gerando desigualdades na distribuição do serviço educativo e dificuldades na qualidade da educação nas comunidades locais. Nos dias de hoje, já se assiste a situações problemáticas com as mudanças de endereços para forjar um lugar num jardim de infância de eleição.

Historicamente, a educação de infância surge para responder aos intentos de uma classe social com poder económico. Daqui também a importância de se refletir sobre o perigo de o poder económico transformar a educação pré-escolar da rede pública em organizações com referenciais subordinados à lógica de um serviço para clientes, em que o "(…)‘bem comum educativo’ para todos é substituído por ‘bens’ diversos, desigualmente acessíveis" (Barroso, 2005, p. 742).

 

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Recebido em Janeiro/2010

Aceite para publicação em Maio/2012

 

NOTA

1 Esta distribuição das idades dos inquiridos parece, assim, encontrar correspondente nos dados divulgados no Perfil Docente 2007/2008, divulgado pelo GEPE/ME – Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação/Ministério da Educação (2010), onde se verifica que a geração mais nova trabalha no setor privado e a geração mais velha no setor público.