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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.26 no.1 Braga  2013

 

O currículo de Ciências no 1º Ciclo do Ensino Básico — Estudo de (des)continuidades na mensagem pedagógica

Science curriculum for primary school — Study of (dis)continuities in the pedagogical message

Cours de sciences dans les premières années de scolarité — Étude de (dis)continuités dans le message pédagogique

 

Preciosa Silva, Ana Maria Morais & Isabel Pestana Neves

Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, Portugal

 

RESUMO

O estudo centra-se na análise do currículo de Ciências do 1º Ciclo do Ensino Básico. Analisa-se a diferença nas mensagens veiculadas pelos documentos Competências Essenciais - Estudo do Meio e Programa do Estudo do Meio relativamente ao que se ensina e à forma como se ensina e discutem-se as possíveis implicações dessa diferença nas práticas dos professores. Teoricamente, o estudo fundamenta-se em perspetivas psicológicas e sociológicas, com particular ênfase na teoria do discurso pedagógico de Bernstein, e metodologicamente recorre a uma metodologia mista. Relativamente ao que se ensina, analisou-se a complexidade dos conhecimentos de ciências e a complexidade das capacidades investigativas. Quanto à forma como se ensina, analisou-se as relações professor-aluno e escola-comunidade, e ainda as relações entre discursos e entre espaços. Os resultados mostram que o documento das Competências Essenciais apela mais à conceptualização das aprendizagens do que o Programa e veicula uma prática pedagógica mais centrada no aluno. Tratando-se de documentos que coexistem há dez anos, estas diferenças poderão estar a repercutir-se negativamente nas práticas dos professores e, também, na ação dos autores dos manuais escolares. O estudo fornece, assim, dados de reflexão sobre os princípios que norteiam o currículo de Ciências no 1º Ciclo e o seu possível reflexo no ensino e aprendizagem das Ciências.

Palavras-chave: Currículos; 1º Ciclo do Ensino Básico; Educação em ciências

 

ABSTRACT

The study is centred on the analysis of the science curriculum for primary school. The difference in the message transmitted by the curricular documents Essential Competences - Study of the Environment and Syllabus of the Study of the Environment with regard to the what and to the how of the teaching-learning process is analysed. Possible influences on teachers’ pedagogic practices are discussed. Theoretically, the study follows psychological and sociological perspectives, with particular emphasis on Bernstein’s theory of pedagogic discourse, and methodologically uses a mixed methodology. With regard to the what is taught, the complexity of scientific knowledge and the complexity of investigative competences were analysed. With regard to the how, teacher-student and school-community relations and also relations between discourses and between spaces were analysed. The results show that the Essential Competences document calls for a more conceptualized learning and for a pedagogic practice more children centred when compared with the Syllabus document. The coexistence of these documents for ten years may have been influencing negatively teachers’ pedagogic practices and also textbooks’ authors. The study gives therefore data for reflection on the principles that underlie primary science curriculum and their possible influence on science teaching and learning.

Keywords: Curricula; Primary school; Science education

 

RÉSUMÉ

Cet étude se fonde sur l'analyse du cours de sciences dans les premières années de scolarité. On analyse la différence dans les messages qui sont véhiculés par les documents Compétences Essentielles - Étude du Moyen et Programme de l'Étude du Moyen relativement à ce qui est enseigné et à la façon comme on enseigné  et se discute aussi les  incompatibilités qui  peuvent se faire de cette différence dans les pratiques des professeurs. Théoriquement, l'étude s’établi sur des perspectives psychologiques et sociologiques, avec un accent particulier sur la théorie du discours pédagogique de Bernstein, et méthodiquement il se sert d’une  méthodologie mixte. Par rapport à ce qu’on enseigne, on a analysé la complexité des connaissances sur les sciences et la complexité des capacités de recherche. D’après la façon dont nous enseignons, on a analysé les rapports professeur-élève et école-communauté, et encore plus les rapports entre les discours et les espaces. Les résultats nous font voir que le document des Compétences Essentielles en appelle plus à la conceptualisation des apprentissages que le Programme et véhicule une pratique pédagogique plus centré sur l'élève. S’agissant de documents qui coexistent depuis dix ans, ces différences pourront se répercuter négativement sur les pratiques des professeurs et aussi sur l'action des auteurs des manuels scolaires. L'étude fournit donc des données de réflexion sur les principes qui guident le cours de sciences dans le premier cycle et leur possible effet sur l'enseignement et l'apprentissage des sciences.

Mots-clé: Cours; Premières années de scolarité; Education en sciences 

 

Introdução

O currículo escrito é uma fonte documental que nos proporciona um importante testemunho da estrutura institucionalizada da educação. Ele contém os conhecimentos e as competências a desenvolver pelos alunos, os valores e as normas de conduta social. Como diz Goodson (1997), o estudo do currículo escrito promove o conhecimento relativamente aos valores e objetivos representados na educação.

Em Portugal, há cerca de dez anos, o currículo valorizava, segundo Leite (2006), uma cultura escolar que impunha como natural a existência de um currículo uniforme para todo o território português, detalhando, com pormenor, todos os seus elementos e os modos de os concretizar para, deste modo, os professores o implementarem tal como tinha sido concebido. Em 2001, com a publicação do D.L. 6/2001, de 18 de Janeiro, tentou-se alterar esta tradição ao passar-se para um modelo de flexibilização do currículo que abriria a possibilidade de cada escola organizar e gerir, autonomamente, o processo de ensino e de aprendizagem, tomando como referência os saberes e as competências nucleares a desenvolver pelos alunos. Por outras palavras, este modelo de gestão flexível do currículo daria a possibilidade de as escolas adequarem o processo de ensino-aprendizagem às necessidades diferenciadas de cada contexto escolar, traduzindo-se isso num aumento de autonomia para os professores.

No âmbito desta reorganização curricular foram definidas, para cada ciclo do Ensino Básico, as competências consideradas essenciais e estruturantes do desenvolvimento do currículo, incluindo um perfil de competências terminais para cada ciclo. Esta reorganização curricular contemplou ainda a definição de Orientações Curriculares, embora apenas para algumas disciplinas/áreas disciplinares. No 1º Ciclo do Ensino Básico permaneceram os programas anteriores à reestruturação curricular, havendo apenas a indicação de que estes programas deveriam ser reinterpretados à luz dos princípios do novo currículo nacional. O Programa do Estudo do Meio, que consta do documento Organização Curricular e Programas do 1º Ciclo (DEB, 2004), foi implementado em 1990, aquando da reforma do Ensino Básico e Secundário e, nessa altura, já representou uma continuidade do programa anterior de 1980 (Meio Físico e Social), permanecendo atualmente em vigor, em simultâneo, com o documento das Competências Essenciais para o Estudo do Meio.

Deste modo, no que diz respeito ao ensino das Ciências no 1º Ciclo do Ensino Básico, os professores orientam as suas práticas de acordo com dois documentos curriculares concebidos em tempos muito diferentes. Por um lado, o Currículo Nacional do Ensino Básico - Competências Essenciais para o Estudo do Meio (DEB, 2001), elaborado num quadro de gestão flexível do currículo, onde são referidos os princípios da flexibilização, adequação e diferenciação e, consequentemente, onde é pressuposto os professores terem um elevado grau de autonomia; por outro lado, o Programa do Estudo do Meio (DEB, 2004), concebido cerca de 20 anos antes do documento anterior, onde os princípios sobre educação em Ciências são diferentes dos valorizados nos últimos anos, a nível nacional e internacional (Cachapuz, Praia, & Jorge, 2004; DeBoer, 2000; Miller, 2006), e onde a flexibilização, a adequação e a diferenciação assumem também menor expressão.

Admitindo, como referem Fontes e Cardoso (2006), que a formação de professores nem sempre tem acompanhado as novas exigências da educação científica, possíveis inconsistências e descontinuidades no discurso pedagógico oficial (DPO) expresso nos currículos podem tornar ainda mais difícil o alcance dessas exigências. O estudo apresentado neste artigo centra-se na análise do discurso pedagógico oficial para o ensino das Ciências no 1º Ciclo do Ensino Básico, veiculado no Currículo Nacional do Ensino Básico - Competências Essenciais para o Estudo do Meio (DEB, 2001) e no Programa do Estudo do Meio (DEB, 2004), e faz parte de uma investigação mais ampla (Silva, 2010), realizada no âmbito do Grupo ESSA1, em que se analisou o modo como o discurso pedagógico oficial, a proficiência científica e as ideologias poderão influenciar as práticas pedagógicas de professores que, sem receberem formação específica, aplicam materiais curriculares concebidos de acordo com resultados de investigação, e as implicações dessas práticas na aprendizagem científica de alunos socialmente diferenciados.

O estudo aqui apresentado pretende dar resposta à seguinte questão: Em que diferem as mensagens veiculadas em documentos curriculares oficiais, concebidos em períodos distintos, mas atualmente coexistentes, quando se considera o que se ensina e a forma como se ensina e as implicações dessas diferenças de mensagem nas práticas dos professores e na aprendizagem dos alunos? No sentido de encontrar resposta a esta questão, definiram-se os seguintes objetivos: (1) analisar comparativamente a mensagem contida nos dois documentos curriculares oficiais, Competências Essenciais - Estudo do Meio e Programa do Estudo do Meio, em termos de o que é ensinado e de o como é ensinado; (2) refletir sobre a mensagem veiculada nos documentos curriculares à luz dos princípios valorizados atualmente no ensino das Ciências; (3) discutir, com base em resultados de investigação, as implicações das diferenças de mensagem dos dois documentos curriculares nas práticas dos professores e na aprendizagem dos alunos.

 

Enquadramento teórico

A investigação desenvolvida centrou-se em pressupostos psicológicos (Vygostky, 1978, 1996) e sociológicos (Bernstein, 1977, 1990, 2000), embora esteja particularmente baseada na teoria do discurso pedagógico de Bernstein (1990, 2000). De acordo com este autor, o discurso pedagógico oficial (DPO) pode ser definido pela relação entre o discurso instrucional e o discurso regulador (DI/DR), ou seja, pela relação entre os conhecimentos/competências a transmitir na relação pedagógica e os valores, atitudes e normas de conduta social, sendo que o discurso regulador está sempre subjacente ao discurso instrucional.

Segundo Bernstein (1990, 2000), no modelo do discurso pedagógico, podem ser considerados três níveis de análise: o da geração, o da recontextualização e o da transmissão. Os dois primeiros níveis dizem respeito ao contexto da produção e o terceiro nível diz respeito ao contexto da reprodução, indicando que o discurso pedagógico é determinado por um conjunto complexo de relações que pressupõem a intervenção de diferentes campos e contextos.

Relativamente à produção, no que se refere ao nível de geração, verifica-se uma interação entre os campos do Estado, da economia (recursos físicos) e do controlo simbólico (recursos discursivos), relacionados ainda com o campo internacional, resultando desta interação os princípios dominantes da sociedade, ou seja, o discurso regulador geral (DRG) que corresponde ao discurso oficial do Estado. Este discurso está institucionalizado em textos legais e administrativos como, por exemplo, a Lei de Bases do Sistema Educativo. Os princípios dominantes da sociedade (normas, valores, atitudes), ao integrarem o DRG, vão ser sujeitos ao campo de recontextualização oficial, onde se situam o Ministério da Educação e as respetivas secretarias de Estado, sofrendo, deste modo, uma primeira alteração, ou seja, uma primeira recontextualização. Este processo de ajustamento dos princípios dominantes a um novo contexto (sistema educativo) corresponde ao segundo nível de análise da produção do discurso pedagógico, sendo responsável pela produção do discurso pedagógico oficial (DPO), expresso no currículo escolar, nos programas e ainda em normas diversas. A produção deste discurso é, assim, resultante de diversas forças intervenientes num processo que envolve muitos conflitos, descontinuidades e ruturas entre os interesses dos diversos agentes envolvidos.

O discurso pedagógico oficial, uma vez produzido, entra no campo da recontextualização pedagógica, onde se incluem, por exemplo, os departamentos universitários de educação, as escolas de formação de professores, bem como os meios de comunicação especializada, sofrendo um segundo processo de recontextualização. Deste processo surge o discurso pedagógico de reprodução que, ao ser inserido nos contextos de reprodução pedagógica (diferentes níveis de ensino), pode ser sujeito a princípios de recontextualização dependentes do contexto específico de uma dada escola e, sobretudo, da prática pedagógica do professor que, por sua vez, é mediada por diferentes fatores.

O discurso pedagógico oficial, expresso nos documentos curriculares oficiais, pode ser analisado em termos de o que deve ser transmitido/adquirido e de como deve ser transmitido/adquirido. No primeiro caso, a análise pode centrar-se, por exemplo, no grau de exigência conceptual, isto é, no grau de conceptualização das aprendizagens expresso na complexidade dos conhecimentos e das competências a adquirir. A seleção da exigência conceptual, como dimensão de análise de o que, apoia-se nas ideias de Vygotsky (1978, 1996) ao considerar-se que ela pode promover o desenvolvimento de processos mentais elevados. No caso de o como o discurso pedagógico deve ser transmitido/adquirido, a análise pode centrar-se, de acordo com o modelo do discurso pedagógico de Bernstein (1990, 2000), nas relações que definem os contextos instrucional e regulador do ensino-aprendizagem. No âmbito do contexto instrucional podem ser analisadas relações entre sujeitos, entre discursos e entre agências. Nas relações entre sujeitos situa-se a relação professor-alunos, que pode ser perspetivada em função das regras discursivas (seleção, sequência, ritmagem e critérios de avaliação). Nas relações entre discursos situa-se a relação entre discursos da mesma disciplina (intradisciplinaridade) e a relação entre discursos pertencentes a disciplinas diferentes (interdisciplinaridade). Na relação entre agências está, por exemplo, a relação escola-comunidade, que pode ser analisada, indiretamente, a partir do apelo que a escola faz ao conhecimento não académico. No que concerne ao contexto regulador, podem ser analisadas relações entre sujeitos, isto é, entre professor e alunos e entre alunos, e ainda entre espaços (espaço do professor e dos alunos e espaço dos diversos alunos). No âmbito deste contexto, a relação entre sujeitos é vista quanto às regras hierárquicas.

Na caracterização das regras discursivas e hierárquicas utiliza-se o conceito de enquadramento, que nos dá a possibilidade de analisar, por exemplo, o grau de controlo que o professor e o aluno têm relativamente a cada uma das componentes que definem a prática pedagógica. A relação escola-comunidade, caracterizada com base nos conceitos de classificação e enquadramento, permite analisar o apelo que a escola faz ao conhecimento do quotidiano. Por outro lado, a caracterização da relação entre discursos e entre espaços, com recurso ao conceito de classificação, dá-nos a possibilidade de analisar, respetivamente, a organização discursiva e espacial em que se consubstancia a relação pedagógica. O conceito de enquadramento, ao analisar a natureza das relações de controlo entre categorias em interação, é considerado forte quando a categoria com maior estatuto na interação tem o controlo da relação. Contrariamente, é considerado fraco quando a categoria com menor estatuto também exerce algum controlo. A classificação, ao analisar as relações de poder entre categorias, é considerada forte se existirem fronteiras muito marcadas entre categorias com estatutos diferentes e é fraca se as fronteiras entre essas categorias estiverem esbatidas.

A análise curricular, segundo esta perspetiva, recai nos princípios pedagógicos que deverão orientar a aprendizagem dos alunos, permitindo discutir o significado sociológico da implementação desses princípios. Em termos globais, práticas pedagógicas caracterizadas por classificações e enquadramentos fortes correspondem a práticas didácticas, centradas no transmissor, enquanto práticas pedagógicas caracterizadas por classificações e enquadramentos fracos correspondem a práticas autorreguladoras, centradas no aquisidor. Entre estes dois tipos extremos ainda é possível haver modalidades de prática mista, caracterizadas nalgumas relações por classificações e/ou enquadramentos fortes e, noutras relações, por classificações e/ou enquadramentos fracos. De acordo com vários estudos (ex. Morais & Neves, 2003; Pires, Morais, & Neves, 2004; Morais & Neves, 2009; Silva, 2010), uma prática pedagógica mista com as características a seguir indicadas revelou-se favorável à aprendizagem de todos os alunos, nomeadamente dos mais desfavorecidos. As características dessa prática, para os contextos instrucional e regulador, são: (1) um controlo limitado dos alunos na seleção e sequência da sua aprendizagem; (2) um ritmo de aprendizagem que vá ao encontro das necessidades dos alunos, refletindo um enquadramento muito fraco na relação professor-aluno; (3) uma forte explicitação dos conhecimentos/competências a explorar, isto é, um enquadramento muito forte na relação professor-aluno, quanto aos critérios de avaliação; (4) uma inter-relação dos conhecimentos científicos, traduzida por uma fraca classificação entre eles; (5) um aproveitamento do conhecimento do dia a dia para tornar a aprendizagem dos conhecimentos científicos mais significativa, isto é, um enfraquecimento do enquadramento na relação escola-comunidade; (6) relações sociais de comunicação entre o professor e os alunos de natureza interpessoal, ou seja, um enquadramento fraco na relação professor-aluno, quanto às regras hierárquicas; (7) um enfraquecimento das fronteiras entre os espaços dos vários alunos e entre o espaço dos alunos e o espaço do professor.

 

Metodologia

Aspetos gerais

Neste estudo recorreu-se a uma metodologia mista que apresenta características associadas às abordagens qualitativa e quantitativa (Creswell, 2003; Morais & Neves, 2007; Tashakkori & Teddlie, 1998). Considera-se que a orientação metodológica desta investigação tem uma base fundamentalmente racionalista (característica de abordagens quantitativas), ao utilizar quadros teóricos de referência que serviram de base à conceção dos instrumentos de análise (mensagem presente nos documentos curriculares oficiais). Contudo, no que se refere ao processo de obtenção e tratamento dos dados, procedeu-se a uma análise interpretativa do texto curricular, a qual corresponde a um procedimento metodológico de natureza qualitativa.

Ao selecionar-se esta orientação metodológica, que conjuga aspetos das abordagens quantitativa e qualitativa, pretendeu-se uma relação dialética entre os conceitos teóricos que guiam a investigação e os dados empíricos em análise, traduzindo-se esta relação na construção de uma linguagem externa de descrição derivada da linguagem interna de descrição. A linguagem de descrição, segundo Bernstein (2000), é um instrumento de tradução em que uma linguagem é transformada noutra, correspondendo a linguagem interna às teorias e conceitos e a linguagem de descrição externa à interface que permite o diálogo entre os dados empíricos e a linguagem interna. Através desta dialéctica, segundo Morais e Neves (2003), as proposições teóricas, a linguagem de descrição e a análise empírica interagem, transformando-se mutuamente e, consequentemente, a precisão e a profundidade da realidade que se pretende compreender aumenta. Neste sentido, considera-se que as análises, norteadas por instrumentos construídos na base desta orientação metodológica que combina aspetos dos dois paradigmas de investigação (quantitativo e qualitativo), através do desenvolvimento de uma linguagem externa de descrição resultante da dialética entre os conceitos teóricos (linguagem interna de descrição) e os dados empíricos dos contextos em estudo, possuem um caráter menos subjetivo e mais distanciado de um processo de investigação puramente indutivista.

 

Parâmetros de análise

Neste estudo, como mostra a Figura 1, analisou-se o que e o como do DPO, veiculados nos documentos curriculares oficiais (Competências Essenciais para o Estudo do Meio e Programa do Estudo do Meio), tendo o que sido analisado, no Programa, no conjunto dos quatro anos do ciclo e também por ano de escolaridade.

 

 

Relativamente ao que se ensina, analisou-se a exigência conceptual, vista em termos de complexidade dos conhecimentos relacionados com as ciências e a complexidade das competências cognitivas de natureza investigativa. Quanto ao como se ensina, analisou-se, no âmbito do contexto instrucional, a relação de controlo entre professor-alunos para as regras discursivas (seleção, sequência, ritmagem e critérios de avaliação), a relação de controlo entre a escola e a comunidade (a partir da relação entre o conhecimento académico e o não académico) e a relação de poder entre discursos (intradisciplinaridade e interdisciplinaridade). No âmbito do contexto regulador de o como se ensina, analisou-se a relação de controlo entre professor-alunos e entre alunos para as regras hierárquicas e a relação de poder entre espaços (espaço do professor e espaço dos alunos e espaços dos vários alunos). Como foi referido no enquadramento teórico, para a análise das relações de controlo foi utilizado o conceito de enquadramento e para a análise das relações de poder o conceito de classificação.

Os dois documentos curriculares oficiais analisados integram conhecimentos de História, Geografia e Ciências, mas a análise incidiu apenas no domínio das Ciências, uma vez que a investigação se centrou neste contexto de aprendizagem. Assim, numa primeira fase, separou-se o texto relativo às Ciências, dividindo-se esse texto em unidades de análise, tendo cada uma delas sido definida como um excerto de texto, com um ou mais períodos, que, no seu conjunto, evidencia um determinado significado semântico (Gall, Borg, & Gall, 1996). Após a individualização das unidades, estas foram agrupadas, consoante a sua natureza, em três secções distintas (Conhecimentos, Finalidades e Orientações Metodológicas). Esta organização prende-se com o fato de serem dimensões que, habitualmente, fazem parte da estrutura dos documentos curriculares oficiais, independentemente de ser esta a designação utilizada, e também porque permitem o agrupamento de todas as unidades identificadas. Procedeu-se, posteriormente, à análise de todas as unidades em função dos parâmetros selecionados. Como algumas unidades de análise têm um sentido lato, ou seja, são unidades que, embora foquem o contexto das ciências, estão sobretudo dirigidas para o saber-fazer ou para o saber-ser, estas foram analisadas apenas quanto aos parâmetros relativos às relações que caracterizam o contexto regulador da prática pedagógica (regras hierárquicas e relação entre espaços). Por outras palavras, estas unidades de análise, por contemplarem essencialmente aspetos do contexto regulador, não foram analisadas quanto à complexidade dos conhecimentos e competências investigativas, nem quanto às relações que caracterizam o contexto instrucional da prática pedagógica (regras discursivas professor-aluno, relação entre discursos e relação escola-comunidade). São exemplos destas unidades de análise: selecionar jogos e brincadeiras, músicas, cores, frutos e animais, ou respeitar os interesses individuais e coletivos.

 

Conceção e aplicação dos instrumentos

Para analisar o DPO, presente nos documentos curriculares, conceberam-se dois grupos de instrumentos. Um deles visou a análise de o que do DPO e o outro a análise de o como do DPO. Para a análise de o que utilizaram-se dois instrumentos, um destinado à caracterização da complexidade dos conhecimentos científicos e o outro destinado à caracterização da complexidade das competências investigativas, tendo sido definidos, para cada instrumento, três indicadores (Conhecimentos, Orientações Metodológicas e Finalidades), coincidentes com as secções selecionadas. No que diz respeito aos instrumentos de análise de o como do DPO, procurou-se caracterizar, como se referiu anteriormente, as relações que definem os contextos instrucional e regulador do ensino-aprendizagem. Para o efeito, foram igualmente selecionados os indicadores Conhecimentos, Finalidades e Orientações Metodológicas e, para cada um deles, foi concebida uma escala que reflete diferentes graus de enquadramento ou de classificação, consoante a relação em causa diz respeito, respetivamente, à dimensão interacional ou organizacional.

 

Instrumentos de o que do discurso pedagógico oficial

O instrumento de análise da complexidade dos conhecimentos científicos contempla, para cada indicador, uma escala de 3 graus, tendo o conhecimento sido considerado tanto mais complexo quanto maior for o número de relações previstas2. O conhecimento mais simples corresponde aos factos e o mais complexo aos conceitos. Os factos podem decorrer da observação (conhecimento mais simples) ou resultar de uma relação entre factos do mesmo tipo (facto generalizado). O facto foi tomado como uma afirmação acerca de um acontecimento, fenómeno ou objeto, isento de interpretação e ideias preconcebidas (Afonso, 2008). O conceito foi considerado uma "construção mental, um grupo de elementos ou atributos partilhados por certos objectos ou eventos" (Brandwein et al., 1980, p. 12) e constitui uma ideia resultante da associação de vários factos ou de outros conceitos, podendo ter diferentes níveis de abstração, consoante a variedade de fenómenos relacionados.

Para caracterizar a complexidade das competências investigativas, o instrumento possui igualmente uma escala de 3 graus para cada um dos indicadores3. Na conceptualização desta escala teve-se presente a complexidade dos processos psicológicos exigidos aos alunos neste tipo de competências, sendo de sublinhar que as competências foram entendidas como "operações e processos intelectuais abstractos" (Arends, 1995, p. 396), cujos níveis de abstração são diferentes consoante os processos psicológicos envolvidos. Tomando como referência a Taxonomia de Bloom (Bloom, Engelhart, Furst, Hill, & Krathwohl, 1972), se os processos psicológicos envolvidos são simplesmente a memorização e a compreensão de nível mais elementar (translação), as competências são consideradas simples; no entanto, se os processos psicológicos envolvidos têm subjacente um nível de abstração superior, isto é, dizem respeito à compreensão de níveis elevados (interpretação, extrapolação) e à aplicação, síntese e avaliação, as competências são consideradas complexas. Optou-se por escalas, com apenas 3 graus, tanto para os conhecimentos científicos como para as competências investigativas, por se considerar que os documentos curriculares destinados ao 1º Ciclo do Ensino Básico possuem um número reduzido de conhecimentos de elevada abstração e de competências investigativas de grande complexidade.

Seguidamente apresentam-se dois excertos dos instrumentos de análise do que do DPO: um relativo à complexidade dos conhecimentos científicos (Tabela I), quando se consideram as unidades da secção Conhecimentos; outro relativo à análise das competências (Tabela II), quando se consideram as unidades da secção Orientações Metodológicas. Junto de cada excerto, apresentam-se exemplos de unidades de análise retiradas dos documentos curriculares, ilustrativas dos vários graus das escalas.

 

 

 

Instrumentos de o como do discurso pedagógico oficial

Contexto instrucional

Relação entre sujeitos: professor-aluno (regras discursivas)

As regras discursivas, na relação professor-alunos, foram vistas na globalidade, sem se proceder à sua análise individual, já que se estava perante um texto monológico em que é impossível encontrar elementos, ainda que indiretos, que permitam uma caracterização fiável de cada uma destas regras. O instrumento de caracterização das regras discursivas contempla, para cada indicador, uma escala com 4 graus de enquadramento (E++ a E--) em que, na conceção dos descritivos empíricos dos diferentes graus, se conciliou a explicitação dos conhecimentos a adquirir com o processo de aprendizagem. A explicitação dos conhecimentos permite a apreciação do controlo do professor e dos alunos ao nível dos critérios de avaliação, enquanto o processo de aprendizagem valorizado permite uma análise indireta do controlo do professor e alunos na seleção, na sequência e na ritmagem. Com efeito, o grau de enquadramento muito forte (E++) refere-se a situações em que os conhecimentos a adquirir estão discriminados e em que são valorizados processos de aprendizagem totalmente centrados no professor, quer ao macro-nível, quer ao micro-nível. Contrariamente, os descritivos empíricos correspondentes a um enquadramento muito fraco (E--) referem-se a situações em que os conhecimentos a adquirir não estão discriminados e em que são valorizados processos de aprendizagem totalmente centrados no aluno, quer ao macro-nível, quer ao micro-nível. Os descritivos empíricos respeitantes aos graus intermédios de enquadramento correspondem a situações em que a discriminação dos conhecimentos e/ou a valorização da participação dos alunos assumem expressões intermédias. Para ilustrar o instrumento, no que respeita às regras discursivas, apresenta-se, na Tabela III, um excerto do mesmo, assim como dois exemplos, retirados dos documentos, correspondentes às situações mais extremadas da escala. Na primeira situação não se prevê a intervenção do aluno, enquanto na segunda já se prevê.

 

 

Relação entre discursos

Para caracterizar a relação entre discursos (intradisciplinaridade e interdisciplinaridade), o instrumento possui, para cada um dos indicadores (Conhecimentos, Finalidades e Orientações Metodológicas), uma escala de 4 graus de classificação. Neste caso, partiu-se do significado teórico de classificação, ou seja, da visibilidade da fronteira entre os vários conhecimentos, para a definição empírica dos 4 graus da escala. Na intradisciplinaridade, o grau muito forte de classificação (C++) foi definido empiricamente pela ausência de relação entre os diferentes conhecimentos de Ciências e, na interdisciplinaridade, pela ausência de relação entre conhecimentos de Ciências e de outras áreas disciplinares. Contrariamente, o grau muito fraco de classificação (C--), na intradisciplinaridade, foi definido pela abrangência da relação entre temas de Ciências e, na interdisciplinaridade, por uma forte relação entre os conhecimentos de Ciências e os de outras áreas disciplinares. Os graus intermédios de classificação C+ e C- foram definidos por uma relação intermédia entre diferentes conhecimentos de Ciências (intradisciplinaridade) e entre conhecimentos de Ciências e conhecimentos de outras áreas disciplinares (interdisciplinaridade). Para ilustrar o instrumento apresenta-se um excerto do mesmo, relativo à intradisciplinaridade (Tabela IV) e à interdisciplinaridade (Tabela V), bem como dois exemplos dos graus da escala.

 

 

 

Relação escola-comunidade

Para caracterizar a relação escola-comunidade definiu-se, igualmente, para cada indicador uma escala de 4 graus. No entanto, para a descrição empírica destes graus partiu-se do significado teórico de classificação e de enquadramento. Admitiu-se que a relação escola-comunidade podia ser caracterizada a partir da relação entre o conhecimento académico e o não académico, considerando-se, para o efeito, que a classificação entre os dois tipos de conhecimento deveria ser sempre muito forte e que o enquadramento variava de acordo com o maior ou menor apelo ao conhecimento não académico. A classificação é considerada sempre muito forte, porque existe uma fronteira bem visível entre estes dois tipos de conhecimento, assumindo o conhecimento académico um estatuto mais elevado. Esta diferença de estatuto está patente no facto de a avaliação, no contexto escolar, incidir no conhecimento académico e não no conhecimento não académico.

A escala de enquadramento, que varia de acordo com a intensidade do apelo ao conhecimento não académico (conhecimento do dia a dia do aluno), reflete, assim, a interação/comunicação entre o contexto escolar e o contexto da comunidade. Se não há apelo a conhecimentos não académicos, isto é, a conhecimentos do dia a dia dos alunos, provenientes da sua vivência na comunidade, pressupõe-se que não há interação/comunicação entre a escola e a comunidade e, portanto, o enquadramento é muito forte (E++). Contrariamente, se há um forte apelo a conhecimentos não académicos, ou seja, a conhecimentos resultantes da vivência dos alunos na comunidade, pressupõe-se uma forte interação/comunicação entre a escola e a comunidade e o enquadramento é muito fraco (E--). Os graus intermédios referem-se a situações cujo apelo a esta inter-relação é mais ou menos limitado. O excerto da Tabela VI ilustra o instrumento, na relação escola-comunidade, sendo apresentados exemplos representativos dos extremos da escala.

 

 

Contexto regulador

Relação professor-aluno: Regras hierárquicas

Na relação professor-aluno, quanto às regras hierárquicas, o instrumento contém, para cada indicador (Conhecimentos, Finalidades e Orientações Metodológicas), uma escala também com 4 graus de enquadramento, cujo significado teórico foi o controlo na relação de comunicação entre professor e aluno, traduzido, empiricamente, pelo grau de intervenção/participação do aluno no processo de ensino-aprendizagem. Considerou-se que, se ao nível dos Conhecimentos e/ou das Finalidades e/ou das Orientações Metodológicas, são valorizados processos de ensino-aprendizagem totalmente centrados no professor, é porque não se pretende dar controlo ao aluno na relação de comunicação professor-aluno e, portanto, a relação de comunicação é dominada apenas pelo professor, sendo uma situação em que o enquadramento é muito forte (E++). Pelo contrário, se, ao nível dos Conhecimentos e/ou das Finalidades e/ou das Orientações Metodológicas, se valorizam processos de ensino-aprendizagem centrados no aluno, é porque se pretende que este tenha uma intervenção ativa no processo e, portanto, tenha controlo na relação de comunicação entre professor e aluno, sendo neste caso o enquadramento muito fraco (E--). Para os graus intermédios de enquadramento, os descritivos empíricos correspondem a situações em que se prevê a participação mais ou menos limitada dos alunos no processo de ensino-aprendizagem e, portanto, um controlo limitado nas relações de comunicação. De sublinhar que se trata de uma forma indireta de percecionar a relação de comunicação professor-aluno, visto estar-se perante um texto monológico, onde não é possível apreciar a intervenção direta dos sujeitos. Para ilustrar o instrumento relativamente a esta relação, segue-se um excerto do mesmo (Tabela VII) e exemplos dos extremos da escala, retirados dos documentos curriculares.

 

 

No primeiro exemplo é dada ênfase à ação do professor na gestão do processo de ensino-aprendizagem, deduzindo-se que o aluno tem um papel passivo e, portanto, o controlo da relação está centrado no professor. No segundo exemplo prevê-se um papel ativo do aluno, tendo este um elevado controlo na relação professor-aluno.

 

Relação aluno-aluno: Regras hierárquicas

Para a análise da relação de comunicação aluno-aluno, ou seja, para a análise das regras hierárquicas na relação aluno-aluno, o instrumento possui também, para cada um dos indicadores, uma escala de 4 graus de enquadramento. Na definição desta escala, partiu-se igualmente do controlo dos vários alunos na relação de comunicação aluno-aluno; no entanto, como o texto a analisar é monológico, os descritivos empíricos tiveram de ser concebidos a partir da natureza do processo de ensino-aprendizagem valorizado. Para qualquer um dos indicadores, admitiu-se que, se for valorizado um processo de ensino centrado no professor, a discussão entre os alunos não é privilegiada e, portanto, a possibilidade de interação entre eles será muito pequena, sendo o grau de enquadramento muito forte (E++). Contrariamente, admitiu-se que, se for valorizado um processo de ensino-aprendizagem centrado nos alunos, pode ocorrer discussão entre eles e, nesse caso, é provável haver uma forte relação de comunicação entre si, sendo o grau de enquadramento muito fraco (E--). Os graus intermédios da escala fazem referência a situações em que é previsível a interação entre os alunos, mas de uma forma mais ou menos limitada.

O excerto da Tabela VIII ilustra o instrumento na relação aluno-aluno, para as regras hierárquicas, seguindo-se exemplos retirados dos documentos, representativos dos graus mais extremados que se encontraram.

 

 

Nos dois exemplos, pela natureza do trabalho evocado, prevê-se que haja uma forte interação entre os alunos; no entanto, no segundo exemplo prevê-se que essa interação seja mais intensa porque se apela a um trabalho totalmente centrado no aluno.

 

Relação entre espaços

Para caracterizar a relação entre os espaços (espaço do professor e espaço dos alunos e espaço dos diversos alunos), o instrumento possui, para cada indicador, uma escala de apenas 2 graus, tendo-se partido do significado teórico de classificação para definir, empiricamente, estes graus. Atendendo a que a classificação indica o tipo de fronteira entre os contextos, uma classificação forte significa, nestas relações, uma fronteira bem demarcada entre os espaços e uma classificação fraca significa uma fronteira esbatida entre os espaços. Contudo, através de um texto monológico não é possível apreciar diretamente a fronteira entre os espaços, uma vez que não se tem acesso ao contexto no qual os sujeitos se movimentam. Deste modo, os descritivos empíricos, relativos a cada um dos graus da escala, basearam-se igualmente na natureza do processo de ensino-aprendizagem valorizado nas unidades de análise. Para cada um dos indicadores, o descritivo empírico, relativo à classificação forte (C+), refere-se a situações que valorizam os processos de ensino-aprendizagem totalmente centrados no professor, sendo previsível a demarcação de espaços e a ausência de partilha de materiais. Os descritivos empíricos relativos à classificação fraca (C) referem-se a situações que valorizam processos de ensino-aprendizagem totalmente centrados no aluno e onde se prevê a possibilidade de partilha de espaços e materiais. A opção por apenas 2 graus prende-se com a dificuldade em discernir, num texto monológico, as situações correspondentes aos graus intermédios.

Segue-se um excerto do instrumento, quando se considera a relação entre os espaços do professor e o espaço dos alunos (Tabela IX) e a relação entre o espaço dos vários alunos (Tabela X), assim como exemplos ilustrativos dos respetivos graus da escala.

 

 

 

Na primeira situação, a ação está centrada no professor, prevendo-se que este não partilhe materiais e espaços com os alunos. Na segunda situação, a ação está claramente centrada no aluno, sendo previsível esta partilha.

Após a análise de todas as unidades, contabilizou-se, para o que e para cada relação inerente ao como do discurso pedagógico, o total de unidades correspondentes a cada grau da escala e o total de unidades ambíguas. Algumas unidades de análise não foram classificadas relativamente a todas as relações, por se terem revelado ambíguas face a essas relações e/ou por não contemplarem elementos sobre essas relações. Em consequência disso, o total de unidades de análise classificadas difere consoante a relação em causa. Contudo, os dados relativos às unidades ambíguas não foram menosprezados. Eles foram contabilizados e ajudaram em algumas interpretações. Por fim, converteu-se o número de unidades de análise, correspondentes a cada grau da escala, em percentagem, com vista à normalização dos resultados e à sua comparação.

 

Análise dos resultados

Complexidade dos conhecimentos e competências investigativas

Ao comparar a complexidade dos conhecimentos expressos nos dois documentos curriculares (Fig. 2), de acordo com a escala concebida, verifica-se que esta complexidade é claramente superior no documento das Competências Essenciais. A maioria das unidades de análise deste documento apela a conceitos (Grau 3), enquanto a maioria das unidades de análise do Programa apela a factos específicos e a factos generalizados (Graus 1 e 2). Contudo, este nível de complexidade varia com a secção. O nível de complexidade dos conhecimentos, nos dois documentos, é superior nas secções Orientações Metodológicas e Finalidades.

 

 

Ao comparar a complexidade das competências investigativas dos dois documentos (Fig. 3), verifica-se, igualmente, que esta é superior no documento das Competências Essenciais. Neste documento, a maioria das unidades de análise (62%) veicula uma complexidade de grau 3, enquanto no Programa apenas 12% das unidades de análise expressam este grau. Tal como no caso dos conhecimentos, a complexidade das competências investigativas varia também com a secção, verificando-se que, em ambos os documentos, a complexidade das competências é sempre inferior na secção dos Conhecimentos.

 

Quando se considera a complexidade dos conhecimentos e das competências expressos no Programa, por ano de escolaridade (Fig. 4), constata-se que essa complexidade aumenta com o ano de escolaridade. No caso dos conhecimentos, observa-se que, no 1º ano, apenas 4% das unidades de análise da secção dos Conhecimentos (a única passível de ser analisada por ano de escolaridade) são de grau 3, enquanto no 4º ano este grau é expresso por 58% das unidades. No caso das competências (Fig. 4), o Programa não prevê, para os dois primeiros anos, o desenvolvimento de competências de grau 3, o que significa que não é pressuposto o desenvolvimento de competências relacionadas com os processos científicos, como sejam formulação de problemas, hipóteses, controlo de variáveis e planeamento experimental. Nos dois anos seguintes (3º e 4º anos), este tipo de competências representa apenas, respetivamente, 8% e 11% das competências investigativas.

 

 

Considerando que as competências investigativas são fundamentais para a compreensão da Ciência e para se alcançarem níveis elevados de literacia científica, ter-se-á de admitir que o Programa não está orientado nesse sentido, contrariando a mensagem do atual currículo de Ciências quando diz que o ensino da Ciência, na Educação Básica, visa proporcionar aos alunos a "aquisição das estruturas explicativas da Ciência, bem como dos procedimentos da investigação científica de modo a que os alunos se sintam confiantes na abordagem de questões científicas e tecnológicas" (DEB, 2001, p. 129).

Pelo anteriormente exposto, pode-se concluir que o nível de conceptualização das aprendizagens, quando visto a partir da complexidade dos conhecimentos e das competências, é maior no documento das Competências Essenciais do que no Programa e, em ambos os documentos, advém sobretudo da complexidade dos conhecimentos. No caso do Programa, este aspeto assume maior expressão porque a complexidade das competências é muito baixa, não se verificando competências de Grau 3 nos dois primeiros anos de escolaridade. 

 

Relações que caracterizam o processo de ensino-aprendizagem no contexto instrucional

Relação professor-alunos: Regras discursivas

As regras discursivas dizem respeito ao controlo que professor e alunos têm no processo de ensino-aprendizagem. Quanto a este aspeto, os resultados da análise dos dois documentos (Fig. 5) mostram que não é possível indicar com clareza quem deve ter o controlo desta relação. Em 57% (E- e E--) das unidades de análise das Competências Essenciais e em 49% das unidades de análise do Programa, o controlo da relação está centrado no aluno (E- e E--), não existindo, assim, tendências expressivas que evidenciem o tipo de controlo valorizado nos documentos, embora nas Competências Essenciais se verifique uma ligeira tendência para um controlo mais centrado no aluno.

 

 

Apesar de as regras discursivas nos poderem dar indicação da teoria de instrução, estes resultados não nos permitem afirmar com clareza a teoria veiculada pelos documentos curriculares. Esta dificuldade resulta, por um lado, da impossibilidade de se analisarem individualmente as regras discursivas (por se tratar de textos monológicos) e, por outro lado, da heterogeneidade da mensagem veiculada pelos documentos. Como se pode constatar na Fig. 5, o teor da mensagem varia com a secção, sendo a das Orientações Metodológicas a que, em ambos os documentos, mais se afasta das restantes secções. Aquela secção expressa, nos dois documentos, uma preocupação com a intervenção ativa dos alunos no processo de ensino-aprendizagem, contrariamente à secção dos Conhecimentos, que se afasta desta perspetiva, valorizando mais um controlo centrado no professor. Esta falta de uniformidade nas tendências emergentes das várias secções indica a valorização de diferentes processos de ensino-aprendizagem, dificultando a definição de uma teoria de instrução e também a interpretação da mensagem dos documentos, por parte dos professores, com reflexo nas suas práticas. Contudo, se considerarmos apenas a mensagem veiculada pelas secções Orientações Metodológicas e Finalidades, a mensagem torna-se mais uniforme. Neste caso, emerge uma tendência mais expressiva, em cada um dos documentos, que aponta para processos de ensino-aprendizagem centrados no aluno.

 

Relação entre discursos: Intradisciplinaridade e interdisciplinaridade

A mensagem que emerge da totalidade das unidades de análise classificadas em cada um dos documentos curriculares aponta para uma reduzida relação entre os conhecimentos científicos (Fig. 6) e também para uma fraca relação entre conhecimentos de Ciências e conhecimentos de outras áreas disciplinares (Fig. 7).

 

 

 

No que respeita à intradisciplinaridade, apesar de a mensagem global dos dois documentos apelar pouco à relação entre os conhecimentos (intradisciplinaridade), a secção das Orientações Metodológicas do documento Competências Essenciais realça essa preocupação, evidenciando que a mensagem não é uniforme nas várias secções do documento. Se considerarmos que para se alcançarem níveis elevados de literacia científica é fundamental a relação entre conhecimentos de Ciências, ter-se-á de admitir que nenhum dos documentos transmite uma clara preocupação nesse sentido. Terão de ser os professores a introduzir a intradisciplinaridade nas suas práticas, recontextualizando o discurso pedagógico oficial, o que só acontecerá se estes estiverem sensibilizados para a importância da mesma na aprendizagem dos alunos.

Relativamente à interdisciplinaridade, a mensagem global dos dois documentos valoriza-a pouco, sendo isso mais notório no Programa. Contudo, a mensagem global dos dois documentos não está uniformemente distribuída pelas diferentes secções, designadamente no documento das Competências Essenciais. Neste documento, a mensagem valorizada nas secções Orientações Metodológicas e Finalidades, ao apelar à interdisciplinaridade, contrasta com a da secção dos Conhecimentos e com a mensagem global.

É, no entanto, de salientar que, na análise da intradisciplinaridade e da interdisciplinaridade, se constatou um número muito elevado de unidades de análise ambíguas, o que pode ter influenciado a análise dos dados. Contudo, esta ambiguidade mostra, em si mesma, que não há uma verdadeira preocupação com este tipo de inter-relações no discurso pedagógico oficial.

 

Relação escola-comunidade

Como se pode constatar pela Fig. 8, em nenhum dos documentos há um verdadeiro apelo à inter-relação entre o conhecimento académico e o não académico.

 

 

A secção que, em ambos os documentos, dá mais importância à relação entre o conhecimento académico e o não académico é a das Orientações Metodológicas, embora apenas 24% das unidades de análise das Competências Essenciais e 25% das do Programa espelhem esta relação. Alguns dos exemplos dados nesta secção fazem referência ao quotidiano e à sua importância na aprendizagem dos alunos, mas não tornam explícita a relação que deve ser estabelecida entre o conhecimento académico e não académico. O facto de o conhecimento do senso comum aparecer desligado do conhecimento científico pode levar os professores a considerarem o primeiro como conhecimento académico, atribuindo-lhe esse estatuto, ou então a reconhecerem-no como não académico mas não o relacionarem com o académico por não estar explícita a relação entre ambos.

 

Relações que caracterizam o processo de ensino-aprendizagem no contexto regulador

Regras hierárquicas na relação professor-aluno e na relação aluno-aluno

As regras hierárquicas, quer na relação professor-alunos, quer na relação aluno-aluno, como se referiu na parte da metodologia, foram analisadas a partir dos processos de ensino-aprendizagem expressos nas unidades de análise, devido ao texto ser monológico e não exprimir as interações entre os sujeitos.

Como se pode verificar na Fig. 9, a mensagem do documento das Competências Essenciais é diferente da mensagem do Programa. No primeiro documento há uma tendência para um enquadramento fraco na relação professor-alunos, indicando que os alunos devem ter uma participação ativa nas relações de comunicação. No Programa, não há uma tendência definida, mostrando que este tipo de participação dos alunos não é tão valorizado como no documento das Competências Essenciais.

 

Na análise desta relação, a mensagem expressa nas diferentes secções dos documentos também não é uniforme, sendo a secção das Orientações Metodológicas a que mais privilegia, em ambos os documentos, a participação dos alunos nas relações de comunicação entre professor e alunos.

No que diz respeito às regras hierárquicas, na relação entre os alunos (Fig. 10), a mensagem que emerge do documento das Competências Essenciais não é clara, assumindo o enquadramento forte entre os alunos (E+ e E++) uma expressão próxima do enquadramento fraco (E- e E--). No Programa já se destaca uma tendência mais clara que aponta para uma relação caracterizada por fortes enquadramentos entre os alunos (61%). Contudo, nas Orientações Metodológicas de ambos os documentos, observa-se uma forte interação entre alunos que contrasta com a tendência global dos documentos.

 

 

Relação entre espaços (espaço do professor-alunos e espaços dos diversos alunos)

Ao analisar-se a relação entre o espaço do professor e os espaços dos alunos (Fig. 11), a mensagem que emerge do documento das Competências Essenciais aponta, claramente, para um esbatimento das fronteiras entre o espaço do professor e os espaços dos alunos. No entanto, no Programa, esta mensagem já não é tão evidente, pois está expressa em apenas 52% das unidades de análise, o que indica que, neste documento, não há uma orientação bem definida quanto à fronteira entre os espaços do professor e os dos alunos.

 

No que respeita à relação entre os espaços dos diversos alunos (Fig. 12), a mensagem a destacar, em ambos os documentos, aponta para fronteiras bem marcadas entre os espaços dos alunos, pressupondo que estes realizem as tarefas em lugares determinados, sem possibilidade de os alterar. No entanto, a tendência encontrada em cada documento não está distribuída uniformemente em todas as secções, sendo a tendência da secção Orientações Metodológicas a que mais se afasta da tendência global, à semelhança do que se verificou também na análise das outras relações. A diferença entre a mensagem global e a da secção das Orientações Metodológicas só não se torna ainda mais acentuada porque as outras duas secções ajudam a esbater a diferença. Há, efetivamente, um registo, comum aos dois documentos, que aponta a secção das Orientações Metodológicas como a que se aproxima mais do que é valorizado no ensino das Ciências (Miller, 2006; NRC, 1996).

 

 

A análise, descrita anteriormente, da mensagem valorizada pelos documentos curriculares, no que respeita à forma de ensinar (o como), encontra-se sistematizada na Tabela XI, sendo de sublinhar que na, organização dos resultados, se utilizou uma escala com apenas 2 graus para tornar mais percetíveis as tendências.

 

 

Conclusões

O estudo, desenvolvido no contexto do 1º Ciclo do Ensino Básico, procurou comparar a mensagem contida nos documentos curriculares Competências Essenciais - Estudo do Meio e Programa do Estudo do Meio, refletir sobre a mensagem veiculada nesses documentos à luz dos princípios valorizados atualmente no ensino das Ciências e discutir, com base em resultados de investigação, as implicações das diferenças de mensagem dos dois documentos nas práticas dos professores e na aprendizagem dos alunos.

Ao analisar os dois documentos curriculares, verifica-se que a mensagem pedagógica é diferente não só entre os documentos, mas também no seio deles próprios. Ela varia nas diferentes secções em que se analisaram os documentos, sendo a mensagem da secção dos Conhecimentos a que mais se afasta das restantes secções. A diferença entre os documentos diz fundamentalmente respeito à complexidade dos conhecimentos e competências que se pretende ensinar. O Programa, relativamente ao que se ensina, apela menos à conceptualização das aprendizagens do que o documento das Competências Essenciais. Se atendermos ao facto de a conceptualização das aprendizagens induzir a um tipo de perceção generalizante, com reflexo importante na conscientização dos processos mentais da criança (Vygotsky, 1996), o Programa prevê um menor desenvolvimento destes processos do que o documento das Competências Essenciais.

No que respeita à forma de ensinar, a análise comparativa dos documentos sugere que eles não veiculam exatamente a mesma teoria de instrução. De acordo com a análise das regras discursivas (Tabela XI), o Programa parece privilegiar menos uma teoria de instrução centrada no aluno do que o documento das Competências Essenciais, embora seja difícil perceber se valoriza uma pedagogia mista, pelo menos nos termos em que é referida em alguma literatura da especialidade (ex. Pires, Morais, & Neves, 2004; Morais & Neves, 2009). Se considerarmos que, no Programa, o enquadramento nas regras discursivas é tendencialmente pouco fraco, parece estar presente uma pedagogia mista; no entanto, quando se verifica que a relação entre discursos e a relação escola-comunidade são caracterizadas, respetivamente, por classificações e enquadramentos fortes, percebe-se que essa pedagogia não pode estar presente. Neste caso, a dificuldade em definir, com exatidão, a teoria de instrução resulta dos documentos curriculares serem textos monológicos, em que a interação entre os sujeitos teve de ser analisada indiretamente, não permitindo, por exemplo, verificar se o controlo previsto para os alunos nos critérios de avaliação é menor do que o previsto para as outras regras discursivas, nomeadamente para a ritmagem, sendo este aspeto importante na definição de uma pedagogia mista.

Uma reflexão sobre a mensagem dos documentos curriculares aponta ainda para que alguns princípios do discurso dominante no ensino das Ciências (NRC, 1996; Miller, 2006), como a literacia científica, não estejam valorizados de igual forma. Embora a análise dos documentos curriculares não tenha incidido diretamente sobre a literacia científica, se considerarmos que para o desenvolvimento desta é fundamental a compreensão de conceitos científicos, processos e métodos da Ciência (Miller, 2006), podemos concluir que o Programa contribui menos para a literacia científica do que o documento das Competências Essenciais. Com efeito, o Programa destaca pouco o conhecimento conceptualizado, as competências investigativas complexas, a intradisciplinaridade e a interdisciplinaridade, que são aspetos que contribuem para a promoção de níveis elevados de literacia científica. O Programa apenas prevê, de forma incipiente, o desenvolvimento de competências investigativas complexas nos 3º e 4º anos de escolaridade, estando não só a contribuir pouco para o desenvolvimento da literacia científica, como também a contrariar a mensagem do próprio currículo de Ciências do Ensino Básico.

Quanto às implicações das diferenças de mensagem dos documentos curriculares, admite-se que podem estar a refletir-se, direta e indiretamente, na prática dos professores e, consequentemente, na aprendizagem dos alunos. Estar-se-ão a refletir diretamente na prática dos professores atendendo a que alguns destes profissionais têm lacunas na sua formação científica e pedagógica (Fontes & Cardoso, 2006; Martins et al., 2005; Silva, 2010) e, perante mensagens diferentes, podem ficar confusos. Alguns professores poderão ter dificuldade em fazer uma análise crítica fundamentada dos documentos curriculares e em selecionar os aspetos pedagógicos mais favoráveis ao desenvolvimento da alfabetização científica dos alunos. Por exemplo, se os professores orientarem a sua prática pelo Programa, já que é o documento curricular oficial tradicionalmente mais utilizado pelos professores, poderão selecionar conhecimentos e competências de baixa complexidade, assim como atividades que envolvem pouca participação ativa dos alunos, afastando-se, assim, de um processo pedagógico favorável ao desenvolvimento de níveis elevados de alfabetização científica e também das próprias finalidades do currículo do Ensino Básico. De salientar que, se a exigência conceptual do documento curricular é baixa, provavelmente os professores irão desenvolver práticas com um nível de exigência conceptual igualmente baixo. Como se tem verificado em vários estudos (Alves, 2007; Calado, 2007), quando se passa dos documentos curriculares oficiais para os contextos de reprodução do discurso pedagógico, há uma recontextualização no sentido de uma menor exigência conceptual. Embora uma prática pedagógica de sala de aula possa reproduzir a mensagem do Programa e/ou do documento das Competências Essenciais, essa reprodução nunca é total, pois existe sempre um potencial espaço de mudança quando se passa de um contexto para o outro, mas que só será utilizado para promover uma prática conducente ao aumento de exigência conceptual se essa for a ideologia do professor e se este tiver competência científica e pedagógica para o fazer4. Se os professores possuem lacunas na sua formação, tendem a subverter este espaço de mudança, conferindo ao ensino-aprendizagem uma exigência conceptual mais baixa do que a veiculada pelo documento curricular.

Se, por um lado, admitimos que os professores podem ficar confusos perante a diferença de mensagens dos documentos curriculares, por outro, também teremos de admitir que podem ficar confusos com a inconsistência da mensagem no seio dos próprios documentos. Como se referiu anteriormente, para várias relações do contexto pedagógico, a mensagem que emerge das diferentes secções em que os documentos foram analisados não é igual, verificando-se mesmo mensagens contraditórias entre a secção dos Conhecimentos e as restantes secções. Estas diferenças nas mensagens dos documentos curriculares também se podem estar a refletir indiretamente na prática dos professores através dos manuais escolares. Os autores dos manuais tendem a recorrer mais frequentemente ao Programa do que ao documento das Competências Essenciais, talvez devido à natureza daquele documento e/ou à dificuldade em conciliarem princípios divergentes. Deste modo, como os professores recorrem aos manuais escolares para planificarem as suas aulas, até mais do que aos documentos curriculares oficiais, o reflexo da mensagem do Programa acaba por se repercutir, direta e indiretamente, na prática dos professores, ou seja, tem nela um efeito cumulativo. Uma possível forma de se tentar elevar o nível de conceptualização do ensino-aprendizagem seria a partir dos manuais escolares, sendo no entanto necessário que os seus autores recontextualizassem o discurso pedagógico oficial, no sentido de uma maior exigência conceptual. Contudo, como referido em Afonso (2008), ao conceberem os manuais escolares, os autores tendem a diminuir ainda mais a exigência conceptual veiculada no Programa.

Se nos abstrairmos dos reflexos das diferenças de mensagem dos documentos curriculares e nos centrarmos apenas nas características das mensagens, verificamos que nenhuma delas tem subjacente uma prática pedagógica mista com as características que vários estudos (ex. Morais & Neves, 2003; Pires, Morais, & Neves, 2004; Morais & Neves, 2009; Silva, 2010) têm revelado ter potencialidades para promover níveis elevados de literacia científica em todos os alunos, nomeadamente nos socialmente mais desfavorecidos (referida no enquadramento teórico). Se compararmos as características desta prática com as da prática veiculada nos documentos curriculares oficiais, observam-se diferenças notórias, designadamente na relação escola-comunidade e na relação entre discursos (intradisciplinaridade e interdisciplinaridade), sendo de salientar que a intradisciplinaridade é uma característica da prática que se tem revelado crucial na aprendizagem dos alunos (Pires, Morais, & Neves, 2004). O facto de os documentos curriculares não valorizarem aspetos da aprendizagem dos alunos que a investigação tem revelado importantes leva-nos a questionar, não só as diferenças de mensagem entre os documentos curriculares, mas também a importância do discurso pedagógico oficial na aprendizagem dos alunos. Importa refletir sobre as diferenças das mensagens dos documentos curriculares e sobre as características que apresentam e considerar que a coexistência de textos curriculares divergentes, já há dez anos, apela a uma urgente revisão dos mesmos.

 

Referências

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Recebido em Junho/2011

Aceite para publicação em Maio/2012

 

Notas

1 O Grupo ESSA – Estudos Sociológicos de Sala de Aula – constitui um grupo de investigação integrado no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e que pretende valorizar a perspetiva sociológica na análise da educação.

2 Os instrumentos completos podem ser consultados em Silva (2010) e ainda em http://essa.ie.ul.pt/materiais_instrumentos_texto.htm

3 Os instrumentos completos podem ser consultados em Silva (2010) e em http://essa.ie.ul.pt/materiais_instrumentos_texto.htm

4 De acordo com os resultados da investigação de Silva (2010), a proficiência científica e as ideologias dos professores, quando associadas, permitem que o professor reforce os princípios dos materiais curriculares que aplica, recontextualizando a sua mensagem no sentido de uma maior exigência conceptual.