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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.30 no.2 Braga dez. 2017

https://doi.org/10.21814/rpe.10844 

ARTIGOS

A base de conhecimentos e a identidade de mentores participantes do Programa de Formação Online de Mentores da UFSCar-Brasil

The knowledge base and the identity of mentors participating in the Online Mentor Education Program from UFSCar-Brazil

La base de conocimientos y la identidad de los mentores que participan en el Programa de Formación Online para los Mentores de la UFSCar-Brasil

 

Paula Grizzo Gobatoi & Aline Maria de M. R. Realiii

Universidade Federal de São Carlos, Brasil

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar a base de conhecimentos de professores experientes e participantes do Programa de Formação Online de Mentores da UFSCar-Brasil, bem como responder à seguinte questão: quais dos conhecimentos específicos, pedagógicos e sobre a função de mentor, que o auxiliarão a desempenhar a nova função, podem ser apreendidos nos professores experientes, participantes do Programa de Formação Online de Mentores? O Programa é responsável pela formação de mentores, sua proposta curricular é flexível e foca o desenvolvimento profissional de professores experientes. A investigação qualitativa baseou-se na análise descritivo-interpretativa das narrativas presentes em quatro atividades, realizadas durante o processo formativo, de quatro participantes. Foram analisados conhecimentos pedagógicos gerais, conhecimentos de conteúdo específico, conhecimentos pedagógicos do conteúdo, conhecimentos sobre formação e atuação docente e, por fim, conhecimentos sobre a função de gestor, de mentor e da escola. Como resultado, percebe-se que a base de conhecimentos atribuída ao mentor se assemelha à dos profissionais gestores e formadores de professores, ainda que a prática da mentoria e em sala de aula seja importante para que a base seja continuamente remodelada e aperfeiçoada para melhorar o desempenho do mentor e, possivelmente, dos professores iniciantes por ele acompanhados.

Palavras-chave: Programa de Formação Online de Mentores; Identidade docente; Base de conhecimentos para o ensino

 

ABSTRACT

This article aims to analyze the knowledge base of experienced teachers and participants of an Online Mentor Education Program from UFSCar-Brazil and to answer the question: what specific, pedagogical and mentoring skills, that will assist the mentor to fulfill a new role, are evidenced by the experienced teachers participating of Online Mentor Education Program? This mentor training program has a flexible curriculum and focuses on the professional development of experienced teachers. The qualitative research was based on the descriptive and interpretative analysis of four narratives from four selected participants from a wider group and written during the training. It analyzed pedagogical knowledge, specific content knowledge, pedagogical knowledge content, knowledge about training and teaching practice and knowledge of the manager role, mentor and school. As results, the data analysis shows that the mentor knowledge base resembles the professional managers’ and teacher educators’. However, teaching and mentoring practice is important so that this knowledge base is continuously remodeled and improved, thus improving the mentors’ performance and, possibly, of beginning teachers accompanied by them.

Keywords: Online Mentor Education Program; Teacher identity; Knowledge base for teaching

 

RESUMEN

El objetivo de este artículo es analizar la base de conocimientos de profesores experimentados del Programa de Formación en línea de Mentores de la UFSCar-Brasil y responder a la pregunta: qué conocimientos específicos, pedagógicos y sobre la función de mentor, que lo ayudarán a desempeñar la nueva función, pueden se aprehender en los profesores experimentados participantes del Programa de Formación en línea de los Mentores? El programa tiene una propuesta curricular flexible y enfoca el desarrollo profesional de profesores experimentados. La investigación se basó en el análisis descriptivo-interpretativo de las narrativas de cuatro participantes seleccionados y referentes a cuatro actividades realizadas durante la formación. Se analizaron conocimientos pedagógicos generales, conocimientos de contenido específico, conocimientos pedagógicos del contenido, conocimientos sobre formación y actuación docente y, por fin, conocimientos sobre la función de gestor, de mentor y de la escuela. Como resultado, se percibe que la base de conocimientos atribuida al mentor se asemeja a la de los profesionales gestores y formadores de profesores, aunque la práctica de la mentoria y en el aula es importante para que la base sea continuamente remodelada y perfeccionada para mejorar el desempeño del mentor y, posiblemente, de los profesores principiantes por él acompañados.

Palabras-clave: Programa de Formación Online de los Mentores; Identidad docente; Base de conocimientos para la enseñanza

 

Introdução

O presente artigo tem como objetivo central analisar a base de conhecimentos para o ensino (Shulman, 1986) de professores experientes, participantes do Programa de Formação Online de Mentores da UFSCar (PFOM). Trata-se de uma pesquisa-intervenção realizada ao longo de um processo formativo online, focado no desenvolvimento profissional de professores experientes para atuarem junto a professores iniciantes, auxiliando-os nas dificuldades típicas desta etapa da carreira. Currículo flexível, conteúdos definidos processualmente, ênfase em atividades relacionadas à mentoria e foco no desenvolvimento profissional de professores experientes via Internet são características do Programa. De modo específico, pretende-se responder à seguinte questão: quais são os conhecimentos específicos, pedagógicos, sobre a função de mentor – componentes da identidade docente –, que auxiliarão a desempenhar a nova função, que podem ser apreendidos nos professores experientes participantes do Programa de Formação Online de Mentores?

O desenvolvimento profissional docente é compreendido como um processo contínuo (Cole & Knowles, 1993), que se inicia antes mesmo de o professor ingressar na formação inicial, quando ainda é aluno da educação básica, e se dá durante toda sua trajetória pessoal e profissional, considerando formações, relacionamento com os pares e experiências profissionais (Mizukami et al., 2000). É natural considerar que a formação docente, apesar de ser um processo comum a todos os professores, é específica para cada indivíduo, já que cada sujeito possui vivências diferentes (Tancredi, 2009). Conhecimentos prévios sobre o ensinar são importantes para a aprendizagem e práticas docentes, pois requerem habilidades complexas e conhecimentos que deem suporte ao professor durante sua adaptação e dinâmica de trabalho.

Ao ingressar na carreira, frequentemente o professor iniciante se depara com contextos escolares específicos e, usualmente, experimenta um choque ao vivenciar uma rotina escolar diferente da idealizada na formação inicial. Huberman (1992) define esta etapa da carreira como fase de exploração, pois se caracteriza por exigir conhecimentos que, muitas vezes, não foram aprendidos na formação inicial. Este período constitui-se numa fase mais complexa do desenvolvimento profissional docente, ao mesmo tempo que é importante para a estruturação das práticas docentes (Nono & Mizukami, 2006). Geralmente, este é um processo marcado por angústias, dilemas, frustrações, preocupações, o "choque do real" (Huberman, 1992, p. 39) e tensões (Marcelo García, 1999). Nono e Mizukami (2006) indicam que a fase inicial pode causar desilusão e desconforto perante a profissão, podendo levar o professor a abandonar sua carreira antes mesmo de ter certa experiência, caracterizando-a como uma etapa de sobrevivência. Por outro lado, Huberman (1992) destaca ainda que esta etapa não implica obrigatoriamente na desistência da carreira por conta das dificuldades vivenciadas, nem tampouco é caracterizada por uma progressão cronológica, uma vez que alguns profissionais podem experimentar essas sensações negativas, outros não. Adicionalmente, alguns podem permanecer nesta fase por mais tempo do que outros. De acordo com o autor, a sensação de descoberta, experimentada em paralelo com as dificuldades, pode contribuir para a superação ou minimização das características negativas deste período, também caracterizado pelos sentimentos de entusiasmo, experimentação, responsabilidade, profissionalismo e por fazer o professor iniciante se sentir parte de um corpo docente. Diante disso, receber apoio de um profissional mais experiente talvez alivie as tensões e angústias dessa fase.

Uma estratégia ainda pouco explorada no Brasil (Migliorança, 2010) é o acompanhamento dos profissionais inexperientes por mentores, ou seja, professores experientes e veteranos nas atividades docentes (Tancredi & Reali, 2011), com vistas a auxiliar a minimização das dificuldades. Nesse ínterim, iniciativas de mentoria não só auxiliam o desenvolvimento profissional de professores em início de carreira, como também promovem o aprendizado e reflexões sobre a própria prática aos mentores, que também são beneficiados pelo processo. Entretanto, ser mentor não é uma tarefa trivial e intuitiva. É necessário que o mentor também vivencie um período de formação e suporte contínuo para o desenvolvimento de novas habilidades, conhecimentos e compreensões relacionados ao acompanhamento de professores iniciantes (Villani, 2002).

Estes aspectos mantêm relação estreita com os propósitos da intervenção e pesquisa relatada. Conhecer de modo detalhado a composição da base de conhecimentos (Shulman, 1986) de mentores é importante para o planejamento de processos formativos como o PFOM, evento construído baseando-se nos conhecimentos e habilidades de que um mentor necessita, visando o desenvolvimento de professores experientes para orientarem e acompanharem professores em início de carreira. Ter conhecimento sobre a base de conhecimentos também é importante para elucidar as necessidades formativas de professores experientes, já que este tema praticamente não é investigado no contexto de pesquisa brasileiro (Dal-Forno & Reali, 2009).

 

Identidade docente de professores experientes e a base de conhecimentos do mentor

A identidade docente é definida de diversas maneiras na literatura. Embora seja presente em professores iniciantes ou experientes, ela não é fixa e, sim, dinâmica, pois se desenvolve ao longo da experiência pessoal e profissional do professor (Beijaard, Meijer, & Verloop, 2004). A identidade docente também é composta por fatores como conhecimentos, habilidades, contextos históricos e socioculturais (Beijaard et al., 2004), emoções (Flores & Day, 2006), crenças, valores, experiências prévias, bem-estar emocional, reconhecimento social da profissão (Marcelo & Vaillant, 2009). Acredita-se que, assim como o desenvolvimento profissional, a identidade é construída ao longo das trajetórias pessoal e profissional, passando pela formação inicial, continuada, prática docente, reflexões e interações existentes nestes espaços (Timotsuk & Ugaste, 2010).

Ao longo de seu desenvolvimento profissional, ao ter contato com outros professores, alunos, sociedade ou com a escola e seus outros componentes, os docentes desenvolvem novos quadros referenciais, de maneira que os novos conhecimentos advindos destas experiências possam ser incorporados à sua base de conhecimentos (Mizukami, 1996). Os conhecimentos desenvolvidos durante sua trajetória pessoal e profissional chocam-se, muitas vezes, com novos conhecimentos, remodelando o quadro referencial, mediando a prática e a teoria e influenciando sua identidade docente. Ou seja, os docentes desenvolvem uma base de conhecimentos para o ensino (Shulman, 1986) que será continuamente construída junto à sua identidade, ao exercerem a prática e participar de formações, inclusive da formação inicial.

Aparentemente, professores iniciantes e experientes possuem certas diferenças em suas bases de conhecimento, justamente por possuírem experiências e tempos de atuação profissional distintos, o que pode significar diferentes concepções sobre o ensinar, distintas competências profissionais, bem como necessidades formativas específicas (Reali, Tancredi, & Mizukami, 2008). Ter vivenciado mais situações e por mais tempo, todavia, não garante que professores experientes sejam mais eficientes, tampouco determina que os iniciantes não saibam ensinar. Estes aspectos sugerem que professores mais experientes possuem um quadro de conhecimentos mais amplo, pois favorecidos por um repertório de conhecimentos e práticas maior perante as situações de ensino (Pacheco & Flores, 1999).

A base de conhecimentos para o ensino é definida por Shulman (1986) como o conjunto de conhecimentos, habilidades e competências que um professor deve ter para ensinar seus alunos (Mizukami, 2004), que se modifica e complementa ao longo da experiência. Considerando que o mentor é um professor de outros professores, entende-se que sua base de conhecimentos deve ser aquela esperada de um professor experiente, acrescida de outros conhecimentos necessários para ensinar a ensinar (Tancredi & Reali, 2011). Diante disso, o conhecimento de conteúdo específico diz respeito aos conteúdos das disciplinas que o professor ensina. Envolve conceitos que o professor não deve apenas saber, mas também compreender. Incluem-se aqui conhecimentos acerca de como ensinar o conteúdo em diferentes contextos, classes e populações de alunos. Já o conhecimento pedagógico geral envolve o domínio de habilidades e conhecimentos relacionados aos processos de ensino e aprendizagem, de desenvolvimento dos alunos, conhecimentos dos contextos, manejo de sala de aula, entre outros. O conhecimento pedagógico do conteúdo é de interesse especial, pois distingue o conhecimento característico de professores com certa experiência daqueles iniciantes. Este tipo de conhecimento é caracterizado pela organização de assuntos de maneira compreensível para os alunos; é a reunião de diferentes tipos de representações formuladas ou construídas pelo professor com a prática ou com a pesquisa; é o desenvolvimento de estratégias metodológicas próprias, melhorando outros conhecimentos da base. Também consiste de compreensões a respeito das dificuldades dos alunos em relação a determinado assunto, bem como suas concepções e preconceitos acerca de temas a serem ensinados. É um tipo de conhecimento que inclui o domínio de técnicas de ensino mais eficientes e apropriadas, é de autoria do professor e essencial para o processo de aprendizagem da docência, além de configurar a distinção entre professores experientes e iniciantes (Mizukami, 2004; Shulman, 1986, 1987).

Para ser um mentor, o professor experiente necessita construir conhecimentos referentes à sua atuação e desenvolver uma identidade diferenciada daquela construída ao longo de sua carreira. Essa reconstrução de identidade significa desenvolver novos conhecimentos, vivenciar novas experiências e ampliar o autoconhecimento (Beijaard et al., 2004). Tancredi e Reali (2011), num estudo sobre um Programa de Mentoria voltado para os anos iniciais, analisaram a base de conhecimentos essencial a um mentor, destacando que esta é semelhante à dos formadores de professores, e, como esta, também está sujeita a modificações e ampliações durante a prática. Considerando que "as pessoas constroem seu próprio conhecimento com base em conhecimentos anteriores e em suas experiências pessoais" (Tancredi & Reali, 2011, p. 35), a base de conhecimentos do professor experiente servirá de ponto de partida para a construção e desenvolvimento da base do mentor, complementando-a com novas habilidades, competências e compreensões. Pode-se adicionar conhecimentos referentes a ensinar a ensinar (Tancredi & Reali, 2011) àqueles necessários ao exercício da atividade de mentor, relevantes à constituição de sua identidade, além dos conhecimentos de conteúdo específico, pedagógicos gerais e pedagógicos do conteúdo.

Conhecimentos necessários aos mentores são compostos também por habilidades e competências que os auxiliam a exercer o seu papel e estando, dentre eles: a integridade, habilidade em saber ouvir, sinceridade, entusiasmo, competência de ensinar, ser confiável e receptivo, ter otimismo, se dedicar à profissão, entre outras (Villani, 2002). Ao ensinar o professor iniciante, é importante que o mentor domine o conteúdo específico da matéria. O conhecimento de conteúdo pedagógico também deve ser sabido pelos mentores, já que, ao lidar com o professor iniciante, o mentor também lida indiretamente com os alunos deste. Do mesmo modo, conhecimentos pedagógicos acerca dos alunos devem ser construídos junto ao professor iniciante, o que é indicado por Tancredi e Reali (2011) como um conhecimento de segunda ordem. O mentor também constrói conhecimentos pedagógicos sobre o professor iniciante, que vão auxiliá-lo a desenvolver atividades formativas que promovam o seu aprendizado da docência.

 

Programa de Formação Online de Mentores e a formação para o apoio profissional

O Programa de Formação Online de Mentores (PFOM)1foi desenvolvido por um grupo de pesquisadoras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar - Brasil), no interior do estado de São Paulo. O PFOM teve seu planejamento iniciado em novembro de 2013 como uma proposta de caráter construtivo-colaborativo (Mizukami et al., 2000) de pesquisa-intervenção que objetivou a investigação, a formação de professores e o desenvolvimento profissional dos participantes do processo. Nesta pesquisa foram considerados os participantes de um dos dois grupos participantes (G2), constituído por professores experientes e ocupantes de cargos de gestão escolar. Este grupo foi construído através de uma seleção realizada no site Portal dos Professores2, provenientes de diversas cidades brasileiras. Por conta do alto número de inscrições, decidiu-se adotar outros critérios de seleção: preferencialmente ocupar o cargo de coordenador pedagógico; em segundo lugar, foi dada prioridade a diretores, vice-diretores, orientadores pedagógicos e supervisores de ensino; atuação mínima de dez anos na educação básica; experiência mínima de dois anos no cargo atual; já ter realizado curso a distância; ter domínio do pacote Office e possuir acesso à Internet. Foi ainda considerado o IDEB3 do município, dando prioridade para IDEBs mais baixos. Este grupo iniciou as atividades em novembro de 2014.

O Programa foi estruturado em quatro módulos: o Módulo I abordou discussões acerca da trajetória pessoal e profissional dos participantes e letramento digital, explorando as expectativas dos participantes em relação à formação. Já o Módulo II focou o início da carreira docente e o apoio recebido durante esse período, possibilitando a discussão sobre as funções, a base de conhecimentos e a identidade do mentor. Em seguida, o Módulo III explorou conteúdos teóricos sobre necessidades formativas do início da carreira docente, ao mesmo tempo que os professores iniciavam suas ações de mentoria. Por fim, o Módulo IV estimulou reflexões sobre os conteúdos trabalhados ao longo do Programa, sendo também o momento em que os mentores avaliaram seu trabalho junto aos professores iniciantes, colocando em prática os planejamentos elaborados no Módulo III.

As atividades formativas do Programa envolveram discussões em fóruns, registros reflexivos em diário, entrega de tarefas, análise de casos de ensino, troca de e-mails entre os participantes e feedback formativo. Todas as atividades foram planejadas de maneira colaborativa entre os membros da equipe de formação, baseando-se em um currículo flexível, que levou em consideração as necessidades e demandas trazidas pelos mentores em formação. Os participantes foram acompanhados e orientados por quatro tutoras, responsáveis pelas análises das atividades realizadas e por um feedback posterior.

 

Metodologia de pesquisa

A presente investigação configura-se como qualitativa (Lüdke & André, 1986), tendo sido a análise de dados baseada na abordagem descritivo-interpretativa do material produzido pelos participantes do Programa de Formação Online de Mentores. As informações são analisadas com foco sobre o contexto dos participantes, dando-se maior atenção aos significados dados por cada um deles em seus respectivos relatos e reflexões, considerando, em igual medida, a interpretação dos investigadores (Santos, 2009). Esta análise fundamentou-se em relatos e narrativas dos participantes em fóruns de discussão, diários reflexivos e entrega de tarefas, caracterizando uma análise documental (Lüdke & André, 1986).

Destaca-se que os professores participantes possuíam mais de quinze anos de experiência docente. Foram analisados os materiais produzidos por quatro participantes (um participante acompanhado por cada tutora). O pequeno espaço amostral, característico da pesquisa qualitativa, reflete que o propósito desta investigação não é generalizar os resultados encontrados para toda a população de mentores e, sim, analisar especificamente os resultados provenientes de cada sujeito (Patton, 1990). Para a seleção das atividades foi utilizada a purposeful sampling (Patton, 1990), que considera casos ricos em informações específicas como fontes de dados. Entre as possibilidades que esta técnica envolve, a utilizada para selecionar os sujeitos é uma aproximação à snowball sampling do mesmo autor, que supõe a localização de informantes ricos em informações, indicados por outros membros do grupo. Neste caso, através da observação dos dados de cada participante do Programa, por meio de informações fornecidas pelas tutoras responsáveis pelas orientações e acompanhamento dos participantes, fez-se a seleção intencional pelos quatro sujeitos que estavam respondendo de maneira mais satisfatória aos objetivos do PFOM, bem como aos objetivos da pesquisa e que foram apontados pelas tutoras. O critério utilizado para analisar o desempenho dos mentores foi a realização de todas as atividades até o final do Módulo II, último módulo antes do início da atuação como mentor, e, além disso, os Módulos I e II, que ofereceram a formação teórica e apresentaram atividades com reflexões acerca da trajetória pessoal e profissional, responsáveis por fornecer dados sobre a identidade dos sujeitos e seus conhecimentos.

A análise documental deu-se pela abordagem descritivo-interpretativa e analisou quatro atividades dos Módulos I e II: 1) Atividade 1.2 do Módulo I, chamada Socialização sobre o contexto de atuação profissional, que consistiu em um fórum de discussões, no qual os participantes poderiam se conhecer e narrar sua trajetória pessoal profissional; 2) atividade 3.1 do Módulo I, intitulada Memorial reflexivo da trajetória profissional, que permitiu que os participantes revisitassem e fizessem uma análise reflexiva sobre toda a sua trajetória pessoal e carreira profissional; 3) na Atividade 1.1 do Módulo II, nomeada Discussão sobre o apoio profissional (ou sua ausência) no início da carreira docente, os participantes deveriam fazer uma reflexão sobre os auxílios recebidos no início de sua carreira ao assistirem o filme "Escritores da Liberdade"4; e 4) atividade 2.1 do Módulo II, chamada Leitura e Análise pessoal de um texto sobre a aprendizagem e profissionalização docente, e que consistia em ler um artigo sobre os conhecimentos necessários a um professor, na elaboração de um texto relatando os principais conhecimentos que foram necessários a eles quando iniciaram a carreira, bem como na explanação de quais foram as principais fontes de aprendizagem da docência. Nestas fontes foram privilegiados dados que contivessem informações a respeito dos conhecimentos e dados sobre a identidade dos sujeitos, considerando-se todas as fontes como narrativas e equivalentes perante a análise de dados.

Os dados coletados nas respostas das quatro atividades foram inseridos no software NVIVO, um programa direcionado para a análise qualitativa de dados que permite uma ampla classificação manual de dados. De acordo com a literatura (Mizukami, 2004; Shulman, 1987; Tancredi & Reali, 2011), foi criada a categoria Conhecimentos. Os critérios de inclusão das narrativas nesta categoria foram: conhecimentos adquiridos a partir da formação e experiência profissional do professor, que possam estar relacionadas à sua base de conhecimentos para o ensino, assim como os provenientes da literatura, os quais utiliza para justificar suas reflexões. A partir da leitura dos dados classificados nessa categoria, foram criadas as subcategorias: conhecimento pedagógico geral; conhecimentos de conteúdo específico; conhecimentos pedagógicos do conteúdo; conhecimentos sobre a formação e atuação docente; e conhecimentos sobre a função do gestor, do mentor e da escola. Dentro do software, criou-se uma pasta para cada participante, nas quais foram inseridas as respostas das atividades. Para a classificação, um nó representando a categoria ‘Conhecimentos’ foi criado no software. A classificação foi realizada após uma leitura atenta dos dados. No final das classificações, o software gerou um arquivo com todos os excertos classificados como conhecimentos. A partir destes arquivos, os excertos foram reclassificados em subcategorias. A análise dos dados se deu pela interpretação dos excertos subcategorizados, buscando-se sempre pontos convergentes, divergentes e padrões nas respostas.

 

Resultados: Os conhecimentos de quatro professores experientes

Caraterização dos participantes

Maurício5 tem 48 anos e reside em uma cidade no interior do estado de São Paulo. Foi criado numa zona rural, onde estudou até a antiga 4ª série do ensino fundamental. Para continuar sua escolarização, sete anos depois de concluir a 4ª série, influenciado por seminaristas que visitavam a fazenda onde vivia, retomou os estudos em uma cidade próxima. Passou por diversas dificuldades até ingressar no ensino superior em História. Foi professor substituto na rede estadual paulista e na antiga FEBEM6, além de ser professor efetivo na rede municipal e coordenador pedagógico na rede estadual. Atualmente, Maurício é coordenador da área de História na Secretaria de Educação de seu município.

Sofia tem 40 anos, é residente de uma cidade do interior de São Paulo e foi influenciada pela mãe a ingressar no magistério para ser professora. Possui graduação em Matemática e Pedagogia. Atuou como professora substituta na rede municipal da cidade em que reside e como professora de Matemática na segunda etapa do ensino fundamental da rede estadual. Tem experiência como coordenadora pedagógica, vice-diretora e diretora, função que ocupa atualmente em uma escola de educação infantil da rede municipal.

Clarisse tem 47 anos, também reside no interior do estado de São Paulo e sempre gostou de ir à escola. Por conta de uma escolha da mãe, foi matriculada no magistério. Após concluir o curso, permaneceu afastada da escola por um período, mas alguns anos depois ingressou na carreira docente, atuando como professora em diversos contextos: substituta em uma escola rural muito precária e professora de uma escola de periferia em um bairro violento e dominado pelo tráfico de drogas. Ingressou no curso superior de Pedagogia e assumiu o cargo de direção em outra escola de ensino fundamental do governo estadual, também de periferia e com problemas de tráfico, o que quase a fez desistir da profissão. Atualmente, é supervisora de ensino em seu município.

Helena tem 51 anos, também é residente de uma cidade do interior do estado de São Paulo e seus pais tinham pouca escolarização. Formou-se no magistério e iniciou a carreira docente como professora eventual, contexto em que teve muitas dificuldades, que quase a levaram a desistir por conta do pouco respeito que os alunos tinham por ela. Cursou Pedagogia e também foi professora na FEBEM, uma experiência que considerou desafiadora. Alguns anos depois, ingressou no sistema SESI7, onde atuou como professora por quinze anos. No final deste período, assumiu o cargo na coordenação pedagógica da educação infantil, o que representou outro desafio, pois não tinha experiência ou formação para tal cargo. Atualmente, é coordenadora pedagógica na Secretaria de Educação de seu município.

 

Conhecimentos e identidade dos professores experientes

Os conhecimentos, assim como a identidade docente, não são solidificados ou estáticos. São dinâmicos, se mostram em constante construção e transformação, ocorrendo ao longo do desenvolvimento profissional docente (Beijaard et al., 2004; Huberman, 1992; Marcelo García, 1999). Esta constante construção sofre diversas influências provenientes da trajetória pessoal e profissional do professor, considerando sua infância e experiência como aluno (Beijaard et al., 2004), acontecimentos marcantes, emoções experimentadas dentro e fora do ambiente escolar (Flores & Day, 2006), formação inicial, crenças e valores construídos ao longo da vida (Zare-ee & Ghasedi, 2014), e outros aspectos de seu percurso.

Entende-se que as diferenças na base de conhecimentos são os elementos que diferenciam os professores, qualquer que seja seu grau de experiência. Concebe-se que a base de conhecimentos de professores experientes configura-se mais ampla do que a de professores iniciantes (Tancredi & Reali, 2011), além de que os primeiros possuem uma experiência prática e tempos de reflexão maiores do que os segundos. Roldão (2007) vai nesta direção e fala sobre a especificidade do conhecimento profissional de professores experientes citando a capacidade analítica desses profissionais como um "gerador de especificidade" (p. 100) e, consequentemente, da prática reflexiva. Considerando esse contexto, é compreensível que professores experientes atuem como mentores, já que a aprendizagem da docência pelos iniciantes implica na mudança ou complementação da base de conhecimentos para o ensino, o que pode ser auxiliado por profissionais mais experientes, ou seja, os mentores, que possuem sua base mais ampla e composta por conhecimentos elencados nas análises a seguir.

 

Conhecimentos pedagógicos gerais

Para analisar os conhecimentos pedagógicos gerais, considerou-se os excertos dos participantes acerca dos processos de aprender e ensinar, relacionados aos alunos e seu comportamento, e sobre a sala de aula; também sobre culturas, políticas públicas educacionais, entre outros (Shulman, 1986). Os participantes demonstram este tipo de conhecimento ao refletirem sobre o envolvimento do professor com seus alunos como elemento importante para o processo de ensino e aprendizagem:

E uma das coisas que contribuíram para encontrar o caminho da paz foi que comecei a observar algumas coisas nos alunos. . . . Essas observações serviram para estreitar o diálogo com os alunos na sala; não que tenha resolvido tudo, mas que me permitiram utilizar outras estratégias além de colocar o aluno pra fora toda vez que ocorria alguma coisa. (Maurício – Atividade 2.1 do Módulo I)

Existe um distanciamento muito grande entre professores e alunos. É necessário diminuir esse distanciamento. Tirar um tempo para ouvir os alunos, estabelecer troca de experiências, são meios que ajudam a construir o respeito. (Maurício – Atividade 1.1 do Módulo II)

Apesar da abertura quantitativa das escolas aos alunos de diferentes condições financeiras, sem impedir o acesso por falta de uniformes ou material, percebo a dificuldade de alguns profissionais em dar vez e voz aos alunos, respeitando-os como parceiros dentro de um projeto educativo que visa a emancipação humana. (Clarisse – Atividade 1.2 do Módulo I)

Ao longo de sua experiência, através da observação e reflexão sobre sua própria prática, Maurício construiu conhecimentos pedagógicos gerais que o auxiliaram a rever e modificar suas ações, resultando na melhoria nas condições de ensino e de aprendizado de seus alunos. Este apontamento vai ao encontro do que Tancredi e Reali (2011) indicam: que a base de conhecimentos de formadores é mais complexa do que a de professores. Eles aprendem com a prática, reorganizando seus recursos de modo a que seja possível atender as demandas e reconhecer os processos pelos quais os alunos aprendem. Essa forma de raciocínio pode ser observada na narrativa acima destacada e no destaque abaixo, em que Maurício e Clarisse salientam a importância de se dar ouvidos e voz aos alunos, no processo de ensino e aprendizagem, como uma ferramenta de construção de respeito mútuo.

Nas narrativas dos sujeitos também é possível perceber sua consideração em relação à cultura e às origens de seus alunos. A existência dessa nuance entre os estudantes deve ser levada em conta pelos professores, pois exige "formas específicas de ensinar" (Tancredi & Reali, 2011, p. 38), causando impactos nas práticas de ensino do professor e na aprendizagem dos alunos. Para o mentor, este tipo de conhecimento é muito relevante, já que o mesmo será modelo para professores iniciantes e, também, para que os mentores desempenhem seu papel com sensibilidade (Tancredi & Reali, 2011).

 

Conhecimento de conteúdo específico

A análise desta categoria considerou conhecimentos relacionados ao domínio de conteúdo da disciplina que o professor ensina, que inclui conceitos, procedimentos e teorias presentes na base de conhecimentos do professor; este não deve apenas conhecer esses conteúdos, mas também compreendê-los (Mizukami, 2004). Dominar o conteúdo específico é um aspecto importante da atuação do mentor, uma vez que uma de suas funções é auxiliar o professor iniciante a ensinar certos conteúdos aos seus alunos, sendo necessário, para isso, compreender os conceitos, tópicos e teorias. Nas narrativas de Maurício e Helena é possível observar suas angústias em relação às lacunas referentes ao domínio de conteúdo quando eram professores iniciantes, acarretando em insegurança no momento de ensinar.

Essa foi uma etapa difícil [o início da docência]. . . . Difícil pelo fato de que, para ensinarmos, precisamos de um plano onde o conteúdo, os objetivos e estratégias estejam articulados. . . . Em primeiro lugar porque não tinha o domínio do conteúdo da disciplina. (Maurício – Atividade 2.1 do Módulo 2)

Primeiramente, achava que se soubesse o conteúdo da matéria conseguiria ‘dar aula’ e o aluno iria aprender. Não é bem assim que a aprendizagem acontece. Isso não é suficiente! Reconhecer que não é assim é um fator importante. (Helena – Atividade 2.1 do Módulo 2)

A relevância deste conhecimento é apontada por Mizukami (2004), que considera o conteúdo específico importante, mas não suficiente na ausência dos outros tipos de conhecimento da base (conhecimento pedagógico geral e conhecimento pedagógico de conteúdo). Apenas saber o conteúdo específico não garante que o professor ensine ou que o aluno aprenda, não bastando também para que o professor seja um formador. Por outro lado, não dominar o conteúdo específico, a organização, a relação entre as teorias e conceitos pode fazer com que o próprio mentor ensine o professor iniciante de maneira errada no momento das orientações. Ter a consciência da necessidade de se dominar os conceitos e o conteúdo da matéria é relevante para que o mentor seja capaz de diagnosticar as necessidades formativas do professor experiente, atuando para que ele supere esta barreira.

 

Conhecimento pedagógico de conteúdo

De acordo com Shulman (1986), este tipo de conhecimento é construído pelo próprio professor durante sua carreira, é baseado na experiência e está relacionado às estratégias e metodologias de ensino que o professor utiliza ao ensinar. Por esse motivo, este tipo de conhecimento é considerado novo quando desenvolvido, pois é o próprio professor que o constrói, sendo de "sua autoria" (Mizukami, 2004, p. 40), representando como ensinar, um dos principais aspectos da identidade docente do professor experiente. Nos excertos abaixo, os participantes mostram que desenvolveram conhecimentos pedagógicos do conteúdo durante sua experiência, sugerindo reflexões sobre suas práticas, o que pode ter ocasionado mudanças na sua base de conhecimentos:

Minhas aulas começaram a ficar mais interessantes para os alunos depois que consegui, além do texto, utilizar imagens, vídeos, ilustrações, exemplificar assuntos, etc. Isso já com quatro anos de docência. Nessa altura já estava mais tranquilo e até criava dinâmicas para ensinar (Maurício – Atividade 2.1 do Módulo 2)

sendo fundamental mencionar que todo professor precisa ser munido de conteúdos compatíveis com seu grau de docência, ser comprometido, reflexivo e emocionalmente equilibrado para iniciar sua longa caminhada rumo a novas técnicas e metodologias de ensino, estas auxiliando na contextualização de seus conhecimentos como mediador consciente. (Sofia – Atividade 2.1 do Módulo 2)

Percebe-se que Maurício e Sofia apontam conhecimentos sobre a relevância de se diversificar as aulas e ensinamentos. Essa aprendizagem se dá por meio do desenvolvimento de conhecimentos pedagógicos do conteúdo, que tratam de compreensões a respeito do nível de dificuldade dos tópicos, maneiras diversas de representação de conteúdos que, possivelmente, originaram-se em sua prática docente, por meio de reflexões ou através de pesquisas (Shulman, 1987). O processo reflexivo está intimamente relacionado às mudanças na base de conhecimentos para o ensino, que são mediadas pelo processo de raciocínio pedagógico (Shulman, 1987), processo que, de acordo com Roldão (2007), está aproximado do modelo do professor reflexivo de Schön (1987). A autora ainda indica que o conhecimento que advém da prática não é um conhecimento comum ou trivial, mas sim um conhecimento resultante da "reflexão analítica de professores competentes – reflexão e competência que implicitamente convocam, de forma integrada, as categorias que em Shulman aparecem na forma de componentes" (Roldão, 2007, p. 99).

O processo de raciocínio pedagógico relaciona-se ao descrito por Mizukami (2004): "como os conhecimentos são acionados, relacionados e construídos durante o processo de ensinar e aprender" (p. 40). A prática da reflexão permite que o professor modifique sua base de conhecimentos e construa novos, que, ao irem ao encontro daqueles já existentes, dão sentido à prática e reformam o quadro referencial do professor, influenciando na contínua construção de sua identidade (Gobato, 2016). Roldão (2007) refere-se ainda à aprendizagem da docência e à capacidade de transformação de conteúdo específico como geradores de especificidade do conhecimento docente, que pode caracterizar um profissional experiente:

Não é a perícia técnica da aula, tampouco a pura inspiração criativa, que fazem a especificidade do saber docente. E, contudo, o conhecimento profissional (do professor, do médico, entre outros) exige sem dúvida o rigoroso domínio de muito saber técnico (como fazer) e o domínio de uma componente improvisativa e criadora ante o "caso", a "situação", que podemos chamar de "artística". Mas só se converte em conhecimento profissional quando, e se, sobre tais valências (técnica e criativa) se exerce o poder conceptualizador de uma análise sustentada em conhecimentos formalizados e/ou experienciais que permite dar e identificar sentidos, rentabilizar ou ampliar potencialidades de acção diante da situação com que o profissional se confronta (Roldão, 2007, p. 100).

Para que o mentor seja capaz de ensinar o iniciante a ensinar, é imprescindível que ele domine conhecimentos pedagógicos do conteúdo, já que estes são necessários: para ensinar o conteúdo ao iniciante; para oferecer diferentes metodologias de ensino; para reconhecer a importância da reflexão sobre a ação; e, além disso, para que o mentor domine diferentes estratégias de ensinar.

 

Conhecimentos sobre formação e atuação docente

O Programa possibilitou que os participantes refletissem sobre seus processos formativos como professores e sua trajetória profissional (essa reflexão foi estimulada, por exemplo, na Atividade 3.1 do Módulo I, intitulada Memorial reflexivo da trajetória profissional), de modo que os levasse a compreender as dificuldades que os professores iniciantes poderiam encontrar e a refletir sobre o processo de aprendizagem da docência. Os mentores demonstraram compreender a formação docente como um período longo e contínuo, exibindo conhecimentos acerca da atuação, que são importantes informações a serem consideradas no momento de ensinar a ensinar. Certamente alguns desses conhecimentos foram construídos ao longo de seus muitos anos de carreira como professores e acionados no momento de realização da atividade:

Começamos a nos construir como professores muito antes de entrar na universidade, já que, para atuarmos, servimo-nos também de nossa cultura pessoal, que provém de nossa história de vida. (Maurício – Atividade 3.1 do Módulo 1)

no universo infantil, todas as fontes de informação podem ser buscadas, favorecendo, antes de tudo, a vivência da criança. O professor não é o único retentor do saber dentro da sala de aula. (Sofia – Atividade 3.1 do Módulo 1)

As leituras e estágios são muito importantes na formação humana, inclusive de educadores, visando a melhoria do ensino. (Sofia – Atividade 1.2 do Módulo1)

A aprendizagem profissional da docência se inicia antes da escolha pela profissão, quando ainda é aluno. (Clarisse – Atividade 2.1 do Módulo 2)

Para atuar como um mentor "é fundamental que o formador conheça seu aluno-professor, acesse seus conhecimentos, descubra o que devem aprender e em seguida desenvolva ou adapte um currículo voltado para a aprendizagem dos conteúdos definidos como necessários" (Tancredi & Reali, 2011, p. 39). O mentor deve possuir conhecimentos pedagógicos gerais sobre os professores iniciantes que irá acompanhar. O conhecimento a respeito da formação docente é considerado como pertencente a este espectro, uma vez que os mentores deverão diagnosticar as necessidades formativas dos iniciantes. Ao compreender a formação e as necessidades de seus colegas inexperientes, será possível que os mentores entendam como estes aprendem – desenvolvendo um conhecimento pedagógico sobre o iniciante – e sejam capazes de planejar atividades efetivas para o desenvolvimento profissional dos mesmos.

 

Conhecimentos sobre a função de gestor, de mentor e da escola

Concorda-se com Vaillant (2002) quando afirma que a identidade docente também pode ser observada nas representações que o indivíduo constrói sobre sua profissão. Dessa forma, os conhecimentos acerca da função como gestor escolar, como mentor e sobre a própria escola podem ser considerados importantes pontos de destaque na construção da identidade do mentor. Os mentores demonstram conhecimentos deste tipo, sugerindo que compreender seu papel como formadores pode tornar mais simples sua atuação como mentores:

Refletir e rever conceitos, procurando novas maneiras de aprender e ensinar, é essencial a todo o educador, e, no tocante ao papel de mentor, adquirir um bom desenvolvimento de sua competência profissional . . . se torna primordial, merecendo destaques alguns itens como a aprendizagem do educador, conhecimento profissional, além de motivar seus colegas de profissão sobre sua verdadeira função de educador no processo de ensino-aprendizagem. (Sofia – Atividade 2.1 do Módulo 2)

No final de 2002, realizei o concurso para supervisora de ensino e assumi na diretoria de. . . . Converso com as equipes escolares nas visitas de acompanhamento, realizo uma escuta atenta e busco orientá-las nas suas dúvidas e problemas. Lavro o termo, sim, mas com as ações acordadas entre nós. O que tento não fazer é ‘apontar o dedo’ e ir embora, como fizeram comigo. (Clarisse – Atividade 3.1 do Módulo 1)

Ser coordenador pedagógico é estar envolvido no processo de ações políticas desenvolvidas no âmbito da escola de educação infantil, respeitar as diretrizes da Política Educacional e a legislação em vigor. . . . Com o conhecimento adquirido, estou à frente da coordenação pedagógica do município trabalhando na Secretaria de Educação e com a função de estabelecer metas e linhas de ações adequadas para alcançar objetivos estabelecidos, buscando sempre uma integração com as equipes escolares e visando uma educação de qualidade. (Helena – Atividade 3.1 do Módulo 1)

Beijaard et al. (2004) apontam a identidade docente como uma junção entre aquilo que o professor acredita ser sua função e as crenças da sociedade acerca do seu trabalho. O mesmo pode ser dito sobre a identidade do mentor, levando em conta o que o mesmo entende como suas tarefas, baseado em suas experiências pessoais e profissionais. As narrativas indicadas, além de ilustrarem alguns dos conhecimentos dos participantes a respeito de suas funções como gestores e mentores, permitem observar outros conhecimentos, apontados por Tancredi e Reali (2011) como necessários ao mentor, como, por exemplo, ter "competência organizacional, comunicativa e reflexiva" (p. 42); levar em consideração as crenças, conhecimentos, desafios e ações de professores iniciantes durante sua prática; conhecer-se a si mesmo; ter consciência sobre seu papel formador e realizar autocríticas que auxiliem seu trabalho.

Ao encontro disso, Flores e Day (2006) consideram a identidade docente como um aspecto que vai além da criação de sentido e reinterpretação de valores. A identidade envolve constantes negociações e mudanças mediadas pelas experiências dentro e fora da escola. Nesse sentido, Flint, Zisook, e Fisher (2011) apontam que a construção da identidade envolve relações pessoais e profissionais que permeiam e modelam a maneira de pensar, agir e ser dos sujeitos. Essas observações sobre o conhecimento dos mentores, sobre sua própria função e sobre a escola demonstram conhecimentos necessários ao mentor, que compõem sua identidade, cujo desenvolvimento permanece em construção.

 

Considerações finais

Em suma, para desempenhar a mentoria, o mentor deve ter um vasto repertório em sua base de conhecimento, a fim de acionar seu processo de raciocínio pedagógico e, consequentemente, ensinar a ensinar (Dal-Forno & Reali, 2009). O "conhecimento da experiência" (Tancredi & Reali, 2011, p. 42) é considerado igualmente importante e apontado como um elemento imprescindível para conhecimentos práticos e para o desenvolvimento da base de conhecimentos do mentor, embora a prática na mentoria seja importante para que a base seja continuamente remodelada e aperfeiçoada. Essas mudanças podem melhorar o desempenho do mentor e, indiretamente, o dos professores iniciantes por ele acompanhados. É importante ressaltar que o mentor também possui necessidades formativas e que seus conhecimentos são limitados. Ele deve ser considerado um profissional que também está em constante desenvolvimento, com a identidade ainda em construção, além de ser um indivíduo totalmente apto a aprender com suas novas experiências e a ampliar ainda mais sua base de conhecimentos.

Nesta perspectiva, lembra-se que uma das principais características dos processos de mentoria é o desenvolvimento profissional e a aprendizagem do próprio mentor, concomitante à aprendizagem do professor iniciante (Tancredi, Mizukami, & Reali, 2012). Possuir conhecimentos de conteúdo específico é importante; porém, não é suficiente quando os outros conhecimentos (pedagógicos e pedagógicos do conteúdo) estão ausentes, já que saber o conteúdo não garante que o professor saiba ensinar. Por essa razão, o mentor deve dominar a base de conhecimentos para o ensino e, ainda, possuir habilidades de ensinar a ensinar. Os conhecimentos pedagógicos de conteúdo, que são constituídos na experiência e advêm de processos reflexivos, proporcionam habilidades de ensinar de diferentes maneiras um mesmo conteúdo.

Os participantes demonstraram dominar esse conhecimento e possibilitaram a percepção de que o desenvolveram ao longo de sua experiência, através de tentativas, erros, frustrações e sucessos. Ter conhecimentos pedagógicos de conteúdo é importante para a função de mentor, já que eles se depararão com professores inexperientes que, possivelmente, não possuem um repertório complexo e, portanto, ainda não desenvolveram estratégias de ensino diferenciadas. Esse tipo de conhecimento também é imprescindível para os mentores, uma vez que ensinar a ensinar não é uma ação trivial, e sim que demanda reflexão e estratégias diferenciadas e baseadas no conhecimento pedagógico do conteúdo.

Nesse sentido, conhecer os aspectos da formação docente e as características do início da docência, além de permitir que o mentor compreenda como o professor aprende e possa planejar atividades de formação adequadas, propicia ao mentor se colocar no lugar do professor iniciante, levando-o a compreender as dificuldades e necessidades deste período. Compreender estes aspectos pode facilitar o papel da mentoria, já que o mentor deve ser, além de um apoio profissional, um apoio emocional e conselheiro. Dessa forma, conhecer as dificuldades e necessidades é importante para que ele seja solidário.

Por fim, conhecer as próprias funções é essencial para os mentores, uma vez que para ensinar é necessário compreender a necessidade e a importância do ensino e da educação. Também é importante para reconhecer as funções do novo papel e consolidar sua nova identidade de mentor. Os conhecimentos são um aspecto essencial da identidade do mentor e servirão de base para que exerça suas funções, que serão modelos de atuação e de ensino. Os mentores que foram analisados nesta pesquisa demonstraram parte dos conhecimentos necessários para sua futura função; porém, ainda se encontram na etapa inicial de sua função. Dessa forma, espera-se que, com sua prática, novos conhecimentos sejam aprendidos e ensinados, modificando também sua identidade profissional.

 

 

Referências

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Notas

1 Projeto intitulado "Formação Online de Mentores: Base de conhecimentos – identidade profissional – práticas", financiado pelo CNPq e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Carlos em 10 de dezembro de 2013, sob o parecer número 482.325.

2http://www.portaldosprofessores.ufscar.br.

3Índice de Desenvolvimento da Educação Básica Brasileira.

4Direção: Richard LaGravenese. EUA: Paramount Pictures, 2007. 122 min. DVD, legendado, Color, Wide Screen.

5Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos participantes.

6Fundação Estadual para o Bem do Menor, instituição para menores de idade em privação de liberdade.

7Rede de ensino público para filhos de funcionários conveniados ao Serviço Social da Indústria (SESI)

 

Endereço para Correspondência

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Paula Grizzo Gobato, Rua Pedro Martini, 623 – Santa Angelina, Araraquara – SP – Brasil, CEP 14802-190. Email: paula.grizzo@gmail.com

 

Recebido em fevereiro 2017

Aceite para publicação em outubro 2017

 

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