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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.31 no.1 Braga jun. 2018

https://doi.org/10.21814/rpe.14241 

RECENSÃO

BOFF, EVA TERESINHA & DEL PINO, JOSÉ CLAÚDIO (2018). Processo interativo de formação docente: Uma perspectiva emancipatória na constituição do currículo escolar. Curitiba: Appris Editora.1

 

Marcele Homrich RavasioLeandro Jorge Daroncoii

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÌ, Brasil

ii Instituto Federal Farroupilha - IFFar, Brasil

 

O livro Processo interativo de formação docente: Uma perspectiva emancipatória do currículo escolar resulta da Tese de Doutorado de Eva Terezinha de Oliveira Boff, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Brasil, orientada por José Cláudio Del Pino. Representa uma obra que transpõe o reducionismo e o simplismo sobre o fazer docente, ao apresentar novas perspectivas para refletir e viabilizar um currículo associado à vida dos sujeitos em processo de aprendizagem formal, vislumbrando assim a formação integral – científica, crítica, politizadora, autônoma e emancipatória. A tese recebeu o prêmio de Menção Honrosa pela Capes em 2011, o que legitima sua relevância cientifica amparada em ampla substancialidade, intensidade teórica, rigor metodológico, coerência, argumentação e organização estrutural – coesão e clareza textual.

O objeto de estudo da investigação foca no processo interativo de formação docente por meio da produção e reorganização do currículo escolar, na forma de Situação de Estudo1 (SE). Este objetivo centra-se, sobretudo, na análise crítica sobre as contribuições e limites do processo interativo presente na formação docente (universidade e escola), na busca constitutiva de um professor-pesquisador – autor e ator –, de seu fazer cotidiano escolar e para a produção de um currículo emancipatório na forma SE. O livro desenvolve-se em torno de três SE a partir da produção, planejamento, análise e desenvolvimento, momentos estes vinculados por uma espiral de ciclos autorreflexivos, conforme propõem Carr e Kemmis (1988). Para análise crítica sobre as contribuições, potencialidades e os limites do processo de constituição de um currículo politizador e emancipatório, foi constituído um espaço interativo repleto de apropriação e produção de saberes. Nesse sentido, o livro versa sobre as contribuições na área do currículo, com vistas à formação integral do sujeito em formação – professor e estudante, assim como se debruça a capturar o impacto de tal processo na formação continuada docente.

No primeiro capítulo, os autores abordam a Formação Docente: problemática, desafios e possibilidades. Nele demonstram a intensa herança metodológica, na prática docente, dos modelos tradicionais de ensino do século XX; para isso, situam tanto os elementos históricos presentes na formação acadêmica do docente, quanto indicam a predominância da racionalidade técnica enquanto método de ensino. Essa perspectiva tecnicista privilegia as dimensões instrumentais, utilitárias e econômicas da educação e desconsidera as situações reais do cotidiano de vida dos sujeitos, e, como efeito, contribui para que o professor ocupe o lugar de mero transmissor de conhecimentos já produzidos, retirando-lhe assim a autonomia para construção dos saberes inerentes à sua profissão, visto que: pressupõe a superioridade do conhecimento teórico sobre o saber prático; valoriza o trabalho individual, compartimentado no isolamento disciplinar em detrimento ao coletivo; privilegia os programas externos ao meio escolar, furtando-se da reflexão crítica sobre o fazer cotidiano em detrimento da autonomia, do questionamento, da pesquisa e da produção de um conhecimento escolar genuíno.

No sentido de instigar e possibilitar a formação docente a olhar as diversas dimensões constitutivas da sala de aula – contextos sócio-político e sociocultural -, os autores apontam a experiência da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, a qual historicamente tem vindo a aproximar e articular ensino, pesquisa e extensão a formação docente. Todavia, neste percurso histórico, a instituição sofreu os efeitos da alternância de gestão do poder público federal, uma vez que a educação no Brasil raramente foi entendida e tratada como política de Estado, mas restringiu-se a integrar o aparelho ideológico dos grupos ora constituídos no e sobre o poder estatal. Este processo produziu uma série de descontinuidades e a necessidade de readaptar ou mesmo recomeçar as perspectivas da formação docente. Os autores narram a fundação do Grupo Interdepartamental de Pesquisa sobre Educação em Ciências (GIPEC-UNIJUÍ) neste contexto, ao situar movimentos para o estabelecimento de um espaço de pesquisa em educação. Assim, o grupo passou a propor, desenvolver e investigar uma concepção de ensino que visa contemplar a complexidade do trabalho escolar, ancorada em perspectivas concretas para viabilizar o processo de gênese dos conceitos científicos na escola e o consequente desenvolvimento cognitivo dos sujeitos em processo formativo. Surgiu, então, a SE como forma de situar e orientar o estudo em contexto permeado por uma vasta gama conceitual em diferentes campos da ciência, de forma a permitir a análise interdisciplinar.

Desta maneira, a característica central do currículo na concepção da SE é a constituição coletiva da ressignificação conceitual, das estratégias e metodologias de ensino com a participação efetiva de professores da educação básica em formação continuada, na qual estes profissionais tornem-se sujeitos atores e autores de seu processo de ensino e aprendizagem e apropriem-se da real possibilidade de efetivar tais concepções em sala de aula. Trata-se de um efetivo protagonismo docente.

No segundo capítulo, nomeado Escola como espaço interativo de produção de conhecimento, os autores compartilham a experiência de produção de módulos triádicos –professores da universidade, professoras da escola básica e licenciandas. Nele, os autores indicam que a experiência revelou que as interlocuções em assimetrias permitiram o desencadeamento de diálogos na direção da constituição de um processo formativo e emancipatório, conforme características da pesquisa em ação, que necessariamente ocorre em trabalho colaborativo. O trabalho coletivo contribuiu para a ampliação da capacidade crítica do professor, visto que o questionamento de um dos atores gera novos questionamentos nos outros, rompendo assim a tradicional compartimentação escolar e emergindo para a reflexão, a complexidade da escola e seu entorno. Os autores destacam que, para manter um grupo com essas características, torna-se necessário uma construção permanente de relações estabelecidas pelo diálogo problematizador. Assim torna-se fundamental o respeito em relação às experiências e vivências de cada sujeito que constitui o ambiente escolar, tornando-se uma aprendizagem na vivência coletiva, ainda que, por vezes, seja necessário transpor barreiras e dificuldades relacionais entre os diferentes pensares, para o estabelecimento de uma relação dialógica coletiva.

No terceiro capítulo, os autores buscam tratar O currículo nos diferentes tempos e lugares: uma possibilidade de transformação do espaço real de sala de aula, ao apresentar elementos que emergiram a partir das problematizações oriundas dos diálogos, sustentados e orientados nos pressupostos do educar pela pesquisa, construindo um currículo na perspectiva transformadora do espaço real de sala de aula. No limiar do capítulo, os autores apresentam alguns aspectos históricos sobre a estruturação dos currículos no decorrer da História da Educação Brasileira, e as implicações do modelo da racionalidade técnica que predominou no decorrer do século XX, e cuja herança estrutural e conceptiva, em geral, prolonga-se à atualidade. Argumenta-se também sobre as transformações no currículo, possibilitadas pelo processo interativo constituído no ambiente escolar, com foco no espaço real de sala de aula, ao considerar os enunciados das professoras que buscam indicar a superação da racionalidade técnica. Apresenta-se, ainda, o processo de reestruturação curricular norteado pelo planejamento, produção, desenvolvimento e análise das SE, e suas contribuições para a construção de um currículo integrador e integrado e formação continuada de professores, por meio da escuta e reflexão de todas as vozes envolvidas neste processo.

Nesta perspectiva, a concepção curricular proposta na obra remete a um currículo que considera os sujeitos – formadores/professores, professores e estudantes – articulados à sua vida social, o que significa pensar em um currículo relacionado ao contexto sócio-político e sociocultural no qual estes sujeitos integram. Assim, os autores apontam que as interações triádicas contribuem para romper com a hierarquia do saber acadêmico sobre o saber prático, pois, pelo questionamento sistemático, torna-se possível estabelecer a convergência entre teoria e prática; pois se a teoria alimenta as metodologias de ensino e as práticas pedagógicas, estas, por sua vez, permitem a ressignificação da própria teoria ou mesmo a emergência de novas proposições teóricas. Desta maneira, o professor-educador inserido efetivamente no espaço de sala de aula exerce a função de agente histórico transformador.

No quarto capítulo, intitulado Processo interativo: uma possibilidade de constituição de um docente pesquisador de seu fazer cotidiano escolar, argumenta-se sobre as interlocuções decorrentes do processo interativo na modalidade triádica – professores da educação básica, da universidade e em formação inicial – como possibilidade de constituição de um professor mais reflexivo e pesquisador do seu fazer cotidiano escolar; problematizam-se ainda as características conceituais de professor reflexivo e professor pesquisador.

O conceito de professor reflexivo surge em resposta aos diversos questionamentos quanto à formação docente baseada na orientação de racionalidade técnica, que encontra oposição em diversos autores-pesquisadores, entre eles, Schön (2000), Zeichner (1993), Giroux (1997), que propõem um modelo que permita ao professor refletir sobre suas práticas cotidianas de ensino e aprendizagem. Nessa perspectiva, destacam-se as características do educar pela pesquisa como movimento que concebe o professor como um sujeito histórico, portanto, em constante formação, e defende-se que o processo de pesquisa na ação possibilita a formação de um profissional que evolui ao dialogar e refletir coletivamente junto as diversas áreas do conhecimento. Portanto, trata-se de uma reflexão sobre a prática, embasada na experiência e vivência cotidiana escolar conectada, orientada e articulada pelas teorias em educação. Vislumbra-se assim, um profissional da educação que reflita sobre seus saberes obtidos da prática e compreendidos à luz de uma teoria, articulados por múltiplas interlocuções. Essa capacidade de articulação do conhecimento prático ao teórico contribui significativamente para a emancipação dos sujeitos, ao integrar espaços coletivos movidos por intencionalidades afins no processo de produção de conhecimentos inerentes ao pensar e fazer docente. Os autores defendem ainda que o professor precisa estar permanentemente inserido à formação pela pesquisa como processo de construção e reconstrução das práticas educativas

Assim, os sentidos e significados atribuídos aos diálogos decorrentes do processo interativo indicam que a efetivação de interações entre as diferentes áreas e níveis de conhecimento, permeada por influências mútuas, tem demonstrado possibilidades de constituição de professores mais reflexivos e críticos, que refletem e pesquisam sobre sua prática, promovendo a produção de conhecimentos que se integram ao contexto escolar.

O processo dialógico fundamentado em argumentos do educar pela pesquisa apresenta potencialidades aos professores da educação/escola básica, inclusive de elaborar, de forma compartilhada e interdisciplinar, materiais didático-pedagógicos de ensino que possam materializar e aproximar a realidade social e o mundo da cultura do contexto da escola em que atuam. Este rompimento paradigmático permitirá aos professores superar a socialização do conhecimento de forma mecânica, acrítica e desprovida de compreensão dos fundamentos dos conceitos e conteúdos ensinados, para tornarem-se sujeitos reflexivos e pesquisadores de seu fazer cotidiano escolar.

Para finalizar, os autores lançam Um olhar sobre o processo de pesquisa na ação, indicando que as aprendizagens construídas pela mediação de diferentes sujeitos potencializam a constituição de professores pesquisadores e de suas práticas educativas, fundamentadas na compreensão e respeito aos dizeres e fazeres do outro e na consciência do inacabado. Isso significa a constituição de um sujeito dialógico que aprende a aprender com o outro.

Através da pesquisa, os autores procuraram demonstrar que, mesmo diante dos limites de natureza diversas nas condições de trabalho docente, em especial nas escolas públicas, faz-se possível transformar a realidade escolar por meio da ação colaborativa focada no propósito da construção conjunta de alternativas didático-metodológicas à educação básica. Nesta direção, a elaboração, o planejamento e o desenvolvimento de SE pode constituir um dos caminhos possíveis.

Em geral, os processos de formação docente constituíram-se através de uma multiplicidade de reflexões, proposições e mesmo ações circundadas pela insegurança, instabilidade, angústia e resistência diante das possibilidades de mudança, situação que condicionou o professor a distanciar-se da teoria, da ressignificação conceitual e da própria prática cotidiana. Nesse sentido, na SE foram identificados limites no decorrer do processo, que implicaram recuos, mas não inviabilizaram a continuidade ou impediram o enfrentamento dos desafios. Os recuos não significaram ruptura do processo, mas, apenas, um andar mais lento, mas sempre em movimento, como declaram os autores, que no processo em movimento, também procurou movimentar-se, buscando compreender que cada sujeito faz seu percurso em tempos e momentos diferentes, porque tem experiências diversas, conflitos e desejos distintos que merecem respeito.

A inserção da pesquisa na prática docente desenvolve a capacidade de ler criticamente a realidade, reconstruir as condições de participação histórica, e sobretudo despertar e motivar nos estudantes o interesse pelas coisas do mundo real – política, sociedade, cultural, entre outras dimensões. Além disso, a pesquisa do professor possibilita rever conceitos, conteúdos e a própria metodologia de ensino, na busca por uma maior excelência no processo de ensino e aprendizagem. A pesquisa do professor, em um processo formativo, necessita, portanto, do uso de recursos culturais como a linguagem, a escrita e a leitura, cuja apropriação contribui para a formação docente através da pesquisa. A linguagem permite a comunicação, mas também constitui-se em ferramenta de organização do pensamento e de trocas efetivas que possibilitam a constituição do sujeito. A leitura permite ampliar os horizontes, ter outros olhares, outras compreensões sobre o mundo real. A escrita permite imaginar o outro, que escuta, opina, participa, mas também se cala; o ato de imaginar o outro produz desconfiança e faz o pesquisador refletir sobre aquilo que escreve, e por isso busca a perfeição. A partir dos ensinamentos de Marques (2001), os autores indicam que, no ato de escrever, a presença do leitor faz com que o autor expresse ideias e sentimentos que, certamente, não experimentaria se, do outro lado, não houvesse leitores. Sendo assim, o autor torna-se seu primeiro leitor, ampliando as possibilidades de reflexão crítica sobre sua narrativa e daquilo que precisa mudar na sua própria prática docente.

Por fim, os autores salientam a complexidade e singularidade do trabalho docente, cujo êxito não se encontra em modelos preestabelecidos, em especial através das concepções educacionais baseadas na racionalidade técnica. A aprendizagem é construída por meio da mobilidade e circulação de saberes no âmbito de um processo interativo de formação docente focado permanentemente no questionamento reconstrutivo que o processo de pesquisa na ação docente é dinâmico, em constante movimento. Assim, a formação docente com base nos princípios do educar pela pesquisa se caracteriza como uma espiral de ciclos autorreflexivos em um movimento sempre inacabado.

 

Referências

Carr, W., & Kemmis, S. (1988). Teoría crítica de la enseñanza: La investigación-acción en la formación del profesorado. Barcelona: Martinez Roca.         [ Links ]

Giroux, H. A. (1997). Os professores como intelectuais: Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Marques, M. O. (2001). Escrever é preciso: O princípio da pesquisa. Ijuí: Unijuí         [ Links ].

Schön, D. A. (2000). Educando o profissional reflexivo. Um novo design para o ensino aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.         [ Links ]

Zeichner, K. M. (1993). A formação reflexiva de professores: Ideias e práticas. Educa. Lisboa.         [ Links ]

 

Recebido: abril 2018

Aceite para publicação: abril 2018

 

Nota

1 Situação de Estudo (SE) é uma orientação para o ensino e a formação escolar que supera visões anteriores, na medida em que articula saberes e conteúdos de ciências entre si e, também, com saberes cotidianos trazidos das vivências dos alunos fora da escola, permitindo uma abordagem com característica interdisciplinar, intercomplementar e transdisciplinar.

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