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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.31 no.2 Braga dez. 2018

https://doi.org/10.21814/rpe.15746 

RECENSÃO

 

RIBEIRO DIAS, JOSÉ (2018). Na Rota do Mistério. Viver, saber, amar. Lisboa: Chiado Books

 

Justino Magalhães

Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação, Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, Portugal

 

José Ribeiro Dias acaba de publicar o livro Na Rota do Mistério. Viver, saber, amar (Chiado Books, 2018). Este livro contém a sistemática dos valores e princípios meta-educativos, éticos, morais, filosóficos, científicos que fundamentam o pensamento de Ribeiro Dias e com base nos quais estabeleceu o eixo pedagógico-antropológico-religioso que tem norteado a sua vida. Mas este livro está para além de referências biográficas e autorais. Há nele uma axiologia e uma meta-humanitude que dão substância e sentido à ligação entre o divino e o humano, à humana insaciedade para aproximar conhecimento e mistério. Se Deus não se confina à razão, nem se plasma na configuração e na realização humanas, também a humanitude não se consuma na confluência atomística de humanos. Perfectível, produto e sentido da interação dos humanos, a humanidade é mediação com Deus. Na Rota do Mistério integra e não se esgota na dialéctica fundamental viver, saber, amar.

Para Ribeiro Dias, teologia, filosofia, educação formam um complexo de revelação e busca de sentido, pensamento e saber, conhecimento e caminho, que uma sólida formação humanista, filológica, histórico-pedagógica e uma experiência de vida adensada e fecundada por distintos planos, itinerários e percursos, transformaram em coerência, progressão, sublimidade. Neste livro, Ribeiro Dias combina com raras mestria, saber e lucidez, e num absoluto comprometimento, o Eu Pessoal com o Eu Total. A educação é um caminho de humanização, composto por progressivas metamorfoses.

O livro é composto por Introdução, três capítulos (“Viver”, “Saber”, “Amar”) e conclusão-síntese. Das cinco centenas de páginas, mais de quatrocentas reportam aos três capítulos e são distribuídas de modo progressivo, fazendo jus ao acumulado da importância do tema com a informação crescente e a nuclearização da dialética – amar implica também viver e saber, não viver de qualquer modo ou conhecer sem a iluminação da sabedoria.

Em torno do “Viver”, o autor formula quatro perguntas capitais: viver privilegiando o quê? Que(m) somos? De onde vimos? Aonde vamos? São interpelações ao eu pessoal e ao eu social, ou melhor, questões que imbricam o pessoal e o social, nas distintas configurações que tal relação assumiu e assume. São questões a que a educação tem procurado dar resposta, seja como inevitabilidade, crescimento, formação, seja como objecto epistémico, cujas cientificidade, legitimidade, desenvolvimento e meta-humanitude tornaram extensiva às diferentes idades dos sujeitos e forçaram ao envolvimento das próprias universidades. De assunto privado, recaindo no alimentar e no cuidar, a educação tornou-se desígnio comunitário, nacional, universal, sendo matéria de proclamações e convenções universais e principal razão para a existência de instâncias transversais e uniformizadoras, com destaque para a UNESCO. A constelação etimológica formada pelos verbos alimentar, (fazer) crescer, conduzir, encontra relação com a cadeia sintagmática alimentar, raciocinar, pensar, cogitar, meditar. Aquela remete para o educador, esta para o educando, num diálogo (consciente) entre dar e receber. Deste modo, a educação dá substância e sentido ao viver; envolve saber e radica no amar, como enlace entre dar e receber.

“Saber” constitui o segundo capítulo do livro. No étimo indo-europeu sap encontra Ribeiro Dias uma aproximação entre saber e sabor (saborear) como duas formas de conhecer: a primeira, transmissível e universal, a segunda, pessoal e experiencial. Uma segunda antinomia que explora é a que distingue microcosmo e macrocosmo. São categorias a que aplica as dimensões do espaço e do tempo e que fazem parte de uma realidade ampla e comum - a vida. O conceito vida tem subjacente o processo de evoluir e crescer, e também as noções de início e de fim. Há uma ordem associada a vida – o ADN. Mas, adverte Ribeiro Dias, o processo natural não deixa de comportar Mistério, remetendo o leitor para o que designa “Mistério nas migrações animais” (p. 155): “Por terra, mar e ar, os animais de diferentes espécies deslocam-se, em cada ano, através do planeta… o que os faz correr?” (p. 156). É a vida, responde o autor, glosando a resposta mais comum e contrapondo que, no reino humano, aquele processo se desenvolve com consciência, liberdade, responsabilidade. A primeira destas vertentes vai da gestação até à abertura para a Transcendência, já na adolescência; a segunda vincula criação e formação, congregando a pedagogia; a terceira dimensão refere-se ao significado para a vida, que, como saber, implica razão e intelecto, e como amor se torna fonte do saber. Como se se tratasse duma teleologia substantivada numa síncrese processual, Ribeiro Dias conclui com um quase-postulado: “Quando, antes e para além de tudo quanto é saber; ao sentirmos o paladar do suco da seiva da vida, encontramos o sabor da alegria de amar” (p. 167).

A partir do ponto 2.3, “A humanidade: geografia, história, cultura e religião”, Ribeiro Dias apresenta, em modo de informação-explicação, a evolução da humanidade, recorrendo à História Global da Humanidade publicada com chancela da UNESCO. Ali recupera e explica as dimensões e as vertentes científicas – assim geografia, história, cultura, religião. A história é observação e lugar hermenêutico. Aos condicionalismos e aos arcaísmos, cedo contrapõe o autor o senso gregário, a fabricação de instrumentos, a cultura e a religião. As religiões tiveram origem nos grandes mitos do passado. Religiões e civilizações, aglutinando e sobrepondo-se às comunidades, constituíram grandes unidades da Humanidade. No longo ciclo que medeia entre a Revolução Neolítica (10.000 a.C.) e a Revolução Urbana (3.000 a. C.), as religiões dos grandes mitos deram lugar a “Religiões Culturais centradas no Presente”: Hinduísmo, Budismo e Zen, Taoismo e Confucionismo.

Ribeiro Dias procura argumentar que estas religiões culturais favoreceram o saber como acesso ao todo e às partes desse todo, mas quedavam-se em face do agir. Em seu entender, a cultura grega estabeleceu a oposição entre mito e logos, entre sentimento e conhecimento (p. 202). Socorrendo-se da Ilíada e da Odisseia, admite que “marcam já, de algum modo, a transição entre os dois mundos, do mito em que prevalecem os Antepassados e os deuses, para o logos em que o seu lugar vai sendo ocupado pelos humanos” (p. 202). Para Ribeiro Dias, com a cultura grega foi acentuado o paradoxo do logos presentista como base de conhecimento do humano sobre outros humanos e o absurdo de o homem estabelecer uma Teodiceia a partir de si. Assumindo o legado grego, o império romano não ficou liberto de tais paradoxo e absurdo. Mas foi ao redor do Mediterrâneo “que esta Religião Cultural começa a encontrar-se e debater-se com as Religiões Reveladas” (p. 206).

As Religiões Reveladas distinguem-se das outras no ser, que assenta no povo, no conhecer que alia memória e revelação, e concilia a razão humana com o “Desígnio de Deus”, no agir que, sob a forma de Mandamentos, congrega fazer e amar. São “Religiões reveladas abertas ao futuro”: Judaísmo, Cristianismo fragmentado em três grandes “Igrejas” (Ortodoxos, Católicos, Reformados), Islamismo. Entende Ribeiro Dias que a dura lição marcada pela busca de hegemonia religiosa e pelas disputas da economia, da política, da cultura reservam às religiões a busca de um entendimento dentro da Comunidade Humana. Ressalvando o caminho esboçado nas Convenções Internacionais, é, com efeito, na Ética fundada na noção de Deus e no enigma do bem e do mal que Ribeiro Dias perscruta a via de confluência. Através da revisitação das principais utopias como resposta ao desconcerto do mundo, e da enigmática sobre o bem e mal, aventura que “quem tudo procura abarcar, questionar, debater, compreender ao nível da razão-inteligência, nunca verdadeiramente será sábio” (p. 254).

E entra, assim, no terceiro capítulo do livro “Amar”, postulando que a meta do “autêntico saber” se adquire não pela Filosofia da Educação, mas pela Educação da Filosofia e que, centrando a lei do coração – receber e dar –, mais do que amar o saber, “importa saber amar” (p. 255). Se, no primeiro capítulo, Ribeiro Dias trouxe ao debate a educação e o pedagogo, no segundo capítulo trouxe o filósofo e o teólogo. Aquelas funções ditam profissões, mas Ribeiro Dias culmina o livro de virtualidades e manifestações que constituem, pela sublimidade e pelo comprometimento, a elevação do humano, plasmada nos mestres, nos artistas, nos místicos, nos profetas do amor. Para ganhar argumento, após revisitar o lugar da humana razão nos grandes períodos históricos, reposiciona-se e integra Na Rota do Mistério as dimensões da inteligência que emergem neste início de milénio: inteligência racional, emocional, social, espiritual, integral e revelada (p. 260).

O capítulo “Amar”, o mais longo do livro, está organizado em quatro díades: os Mestres e a Bondade; os Artistas e a Beleza; os Místicos e a Unidade; os Profetas e o Amor. Como se de universais se trate, Ribeiro Dias oscila no tempo, no espaço e no referencial teórico de modo agregativo e consequente, num registo discursivo também ele variado. Combina informação-projeção com uma poética do imaginário sempre elevando a linha do horizonte da humanidade, ao perscrutar o mistério e ao encontrar nele o lugar para o humano: “Viver da , Saber que o essencial é o Amor, pela Oração entrar na conjugação do verbo Amar” (p. 470). Este é um capítulo cujo resumo ou glosa trará um prejuízo enorme ao entendimento pelo leitor. Melhor que tudo é lê-lo. Há uma progressão naquelas díades, culminando em “Profetas e o amor”. Aqui, Ribeiro Dias como que sublima o destino à existência, a meta à relação. O amor é a relação. Mas não mais e não-só relação do Eu com o Todo. Antes e acima de tudo, relação do Todo-Mistério-Deus com os humanos. Esta é, em última instância, a razão de ser das Religiões. Sumariamente, encontra uma historicidade na constituição da Oração Trinitária Cristã, que glosa em sinonímias – Santíssima Trindade: Pai, Filho, Espírito Santo; Deus-Trindade-Amor; Trindade “membros do Corpo de Cristo - por Cristo, com Cristo e em Cristo – na comunhão do Espírito Santo, em relação com Deus nosso Pai Querido, nosso Abbá, Paizinho” (p. 451). Esta estrutura trinitária está também presente em duas religiões reveladas: Judaísmo e Islamismo. A estrutura trinitária (viver, saber, amar) subsume-se, por fim, em fazer em nome de; conhecer bem a condição e a tarefa pessoal; estar integrado no ritmo e repetir o cântico da Trindade.

Em Conclusão-síntese, Ribeiro Dias interpela o presente, como “Tempos de mudança”, traça uma breve panorâmica da instabilidade e regressa aos locais que o moveram ao longo do livro: temperar o olho da razão com a contemplação, sobrepor as tríades viver, saber, amar/fé, amor, oração.

Quanta informação se colhe no livro de Ribeiro Dias? Quantas obras e quantos os autores ali são referidos ou tão só congregados, através de cadeias de autores, correntes de pensamento, epistemologias? O que há de autobiográfico, plasmado ou tão só indiciado, neste livro? Que destinatário perspectivou Ribeiro Dias? De que modo gostaria de ser lido? O que há de criativo neste volume? Como está construído o argumento?

Quero crer que essas e outras questões que se colocam ao leitor letrado, ao académico cioso de uma leitura crítica e de um tirocínio intelectual são preocupações que pouco ou nenhum sono retiraram a Ribeiro Dias. Custou-lhe, sim, conviver de forma reiterativa e recorrente com inquietações fundantes sobre o sentido do humano e o destino da humanidade. Cedo decantou e gizou a dialéctica viver, saber, amar, mas a perplexidade, a complexidade, a busca de sentido forçaram à dúvida, a buscas, exercícios de diversas natureza e dificuldade, ensaiando configurações, alinhamentos, hierarquias. Fê-lo, observando, estudando, investigando, ensinando, enfim, vivendo, sabendo, amando.

Na Rota do Mistério é uma síntese, um caminho, um desígnio, um compromisso e se nela há um lugar para o autor é como “profeta do amor”. Ribeiro Dias parte da linguagem e volta à linguagem. Senhor de uma cultura tão ampla quanto profunda, dá curso a um classicismo exímio, submetendo os Grandes Textos a um olhar crítico e atual. Parte e regressa à linguagem através de um tirocínio filológico, que combina o etimológico e o semântico. A hermenêutica colhe na experiência do autor. Na esquemática do livro há uma espiral formada por Universo, Vida, Família Humana, que, em função do percurso e do conhecimento, a humana razão dimensionou em Geografia, História, Cultura, Religião. O vértice é reserva de Deus, que ao humano emana como Ética e pelo enigma do Bem e do Mal. Prerrogativas e laborações do humano, cultura e razão configuram o saber que se substantiva na Vida e se delimita face ao Mistério do Todo.

Neste livro, Ribeiro Dias estabelece um sentido e um horizonte para a humanidade e para cada humano como pessoa. Na Rota do Mistério, há um caminho que inclui viver, saber, amar. Ainda que esta seja a ordem referida no livro, não há entre estes verbos um sentido único, nem uma hierarquia. Nada fica fechado, não há caminhos únicos, não há irreversíveis. Há um horizonte que se eleva à medida do observador. Um horizonte que o Eu vislumbra e que o Todo ilumina. Há mediadores e há meios: a educação, a ciência, a religião. Os mediadores – assim os pedagogos, cientistas e artistas, místicos – são portadores da humana condição e da humana experiência. Cabe-lhes viver, conhecer, amar, ainda que de modo próprio.

No pensamento de Ribeiro Dias, há uma materialidade formada pelas dimensões de espaço, tempo, profundidade. São dimensões, porque podem ser observadas, medidas e representadas. E é justamente por isso que representam um complexo transversal à matéria e ao espírito, ao factível e ao dizível, ao permanente e ao mutável, constituindo contexto e substância, fator e produto, ajustando-se, condicionando e tornando possível a vida, seja como cosmos, matéria ou humanidade. Os verbos viver, saber, amar, formam a trilogia da condição e da progressão humanas.

Pela atmosfera de bem que transparece do livro, pela mensagem de esperança, pela economia dos enunciados e luminosidade dos argumentos apelando ao racional, pela frontalidade de uma vida-compromisso, pela sabedoria amadurecida pelo Outono de uma insaciável curiosidade e de uma inesgotável capacidade de problematizar, circunscrever o conhecido e vislumbrar o Enigmático, pelo testemunho narrado e depurado por uma vida tão profícua quanto irradiante, o livro Na Rota do Mistério: Viver, Saber, Amar só poderá incomodar o perverso e inquietar o negligente. O leitor convidado, o leitor crítico, o leitor, em suma, não deixará de se sentir apaziguado e envolvido nesta “profecia de amor”.

Aqui fica o meu testemunho de uma leitura enriquecida e apaziguadora, entretecida por um labor inteligente e por uma escrita fluente, criativa, esteticamente rigorosa, que só os Mestres prodigalizam. Na Rota do Mistério: Viver, Saber, Amar é uma dádiva que serena o autor e eleva o leitor. Bem haja.

 

Recebido em agosto de 2018

 

Aceite para publicação em agosto de 2018

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