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Revista Portuguesa de Educação

versión impresa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.33 no.1 Braga jun. 2020

https://doi.org/10.21814/rpe.18825 

ARTIGOS

 

A difusão da obra pedagógica de Dewey em Portugal: O contributo de Adolfo Lima

The diffusion of Dewey’s pedagogical work in Portugal: The contribution of Adolfo Lima

La difusión del trabajo pedagógico de Dewey en Portugal: La contribución de Adolfo Lima

La diffusion du travail pédagogique de Dewey au Portugal: La contribution de Adolfo Lima

 

Rui Trindadei
https://orcid.org/0000-0001-8740-5382

iUniversidade do Porto, Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE), Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Portugal.

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

É a difusão da obra de Dewey por parte de Adolfo Lima que constitui o tema nuclear deste artigo. Um artigo que resulta de um trabalho de análise dos textos de A. Lima e de algumas das obras emblemáticas de Dewey, de forma a promover-se um processo de interpelação que, para além de revelar algumas das estratégias do processo de apropriação da obra de Dewey, por parte do pedagogo português, revelou, igualmente, as tensões epistemológicas e concetuais e, ainda, algumas das zonas de sombra da reflexão e das propostas do Movimento da Escola Nova que, deste modo, adquiriram uma maior visibilidade através daquele processo de interpelação.

Palavras-chave: John Dewey; Adolfo Lima; Movimento da Escola Nova

 

ABSTRACT

Dewey’s work in Portugal began to be disseminated by the Portuguese pedagogue Adolfo Lima from the pedagogical reflection that he performed under the influence of New Education Fellowship ideas and proposals. This work was carried out from the analysis of Lima’s books and papers and the reading and analysis of Dewey’s most important books to produce an interpellation process which intends to reveal the strategies used by Lima to appropriate Dewey’s work, the epistemological and conceptual tensions that emerged in the context of such process and some of the darker areas of New Education Fellowship pedagogical ideas and proposals that acquire visibility with that interpellation process.

Keywords: John Dewey; Adolfo Lima; New Education Fellowship

 

RESUMEN

El primer momento de la difusión de la obra de Dewey en Portugal se debió al pedagogo portugués Adolfo Lima. Para comprender como este trabajo fue realizado, fueron leídos y analizados los libros y artículos escritos por A. Lima como algunas de las obras emblemáticas de J. Dewey, con el objetivo explícito de promover un proceso de interpelación de la lectura producida por el educador portugués. Fue a partir de la realización de este conjunto de tareas que se intentó revelar las estrategias del proceso de apropiación de la obra de Dewey que Lima utilizó, las tensiones epistemológicas y conceptuales y algunas zonas de sombra de la reflexión y propuestas de acción pedagógica del Movimiento de la Escuela Nueva que adquirieron visibilidad con aquél proceso de interpelación.

Palabras clave: John Dewey; Adolfo Lima; Movimiento de la Escuela Nueva

 

RÉSUMÉ

Le premier moment de la diffusion du travail de John Dewey au Portugal était due à le pédagogue portugais Adolfo Lima, au sein de la réflexion pédagogique qu’il a produit. Ainsi, on a décidé d’analyser des livres et articles écrits par A. Lima et les œuvres emblématiques de J. Dewey pour promouvoir un processus d’interpellation qui a révélé les stratégies du processus d’appropriation du travail de Dewey par A. Lima, les tensions épistémologiques et conceptuelles et certain zones d’ombre de la réflexion et des propositions de la Ligue Internationale pour l’Éducation Nouvelle qui ont émergé au cours de cette processus d’interpellation.

Mots-clés: John Dewey; Adolfo Lima; Ligue Internationale pour l’Éducation Nouvelle

 

A relação entre o pedagogo português Adolfo Lima e a obra de John Dewey é o tema central deste texto, já que, segundo Jorge Ramos do Ó (2005), se não fosse Lima “Dewey permaneceria praticamente desconhecido em Portugal até pelo menos à primeira metade do século XX” (p. 111).
De facto, foi só após 1974 que, no nosso país, o pensamento pedagógico de Dewey adquiriu relevância e, sobretudo, uma maior visibilidade, como fonte de inspiração e instrumento de legitimação de algumas decisões políticas de natureza curricular nos anos referentes à escolaridade obrigatória (Roldão, 1994), em iniciativas relacionadas com o desenvolvimento de projetos que foram desenvolvidos na área da educação para a cidadania (Bento, 2001) ou na reflexão acerca da gestão e organização do trabalho pedagógico, nomeadamente através da difusão e utilização da Metodologia de Projeto. Antes de 1974, e a partir da década de 30, o regime político ditatorial que vigorou em Portugal pode ser entendido como o fator que, ao obstaculizar a divulgação das obras dos pedagogos relacionados com o Movimento da Escola Nova1, impediu a divulgação da obra de Dewey, a qual só era conhecida em círculos bastante restritos de docentes, relacionados, em geral, com a formação inicial de professores (Mogarro, 2006).
Por isso é que o processo de apropriação do pensamento de Dewey protagonizado por Adolfo Lima merece ser valorizado como um investimento pioneiro, justificando-seque constitua o objeto de reflexão deste texto. Responde-se, assim, por um lado, à escassez dos trabalhos de análise sobre “a receção do pensamento e da obra de Dewey pelos intelectuais e pedagogos portugueses” (Madeira, 2009, p. 151) e, por outro, discute-se, a partir da relação intelectual entre as obras de Lima e de Dewey, as propriedades e as condições do desenvolvimento do discurso pedagógico português anti-instrucionista, inventariando e refletindo sobre as suas preocupações, potencialidades, tensões e equívocos.

 

1. Adolfo Lima e a difusão da obra de Dewey

Adolfo Lima foi, com Álvaro Viana de Lemos, António Sérgio e Faria de Vasconcelos, “um dos membros da mais notável geração de pedagogos portugueses, que representaram a Educação Nova no país” (Mogarro, 2006, p. 234). Nascido em Lisboa, em 28 de maio de 1874, Lima notabilizou-se pela reflexão e pelo trabalho pedagógico que protagonizou, relacionados, de algum modo, com os seus vínculos ao movimento anarquista português e à sua atividade como sindicalista. Escreveu livros, colaborou em publicações de natureza pedagógica e foi o fundador e diretor da Educação Social: Revista de Pedagogia e Sociologia, uma revista pedagógica que foi publicada entre 1924 e 1927 (a partir deste momento designada, apenas, por Educação Social). Para além disso, assumiu um papel destacado na Escola Oficina n.º 1, em Lisboa, onde foi responsável por iniciativas diversas que expressavam os seus vínculos ao Movimento da Escola Nova (Lima, 1924a). Entre 1918 e 1921 assumiu o cargo de diretor da Escola Normal de Lisboa, tendo sido preso, posteriormente, em outubro de 1927, devido à sua atividade como militante da União do Professorado Primário (Candeias, 2003).

É a relação deste pedagogo com a obra de Dewey que será o objeto de análise deste artigo, partindo de duas premissas propostas por Jorge do Ó: (i) foi Adolfo Lima que, em Portugal, começou por conferir visibilidade a essa obra; e (ii) foi John Dewey que contribuiu, de forma decisiva, para configurar a abordagem e o pensamento pedagógico de A. Lima.

Para realizar um tal trabalho decidi analisar as principais obras do pedagogo português, as quais vão sendo referenciadas à medida que se partilhar os resultados deste trabalho

A análise da Educação Social permitiu verificar que Dewey é citado por Lima nos seguintes artigos: (i) “Dr. Eduardo Claparède” (1924b); (ii) “Dr. Ovídio Decroly” (1924c); (iii) “John Dewey” (1924d); (iv) “A Autonomia dos Educandos e as Associações Escolares: As Solidárias” (1925a, 1925b, 1925c); (v) “Factos & Documentos” (1925d); (vi) “Aos Amigos da ‘Educação Social’” (1926); e (vii) “O Sistema Decroly” (1927b). Dewey é igualmente referido na mesma revista noutros três artigos que não são da autoria de Lima: (i) “As Tendências Científicas da Pedagogia Contemporânea” (Magalhães, 1924); (ii) “A Nova Orientação do Ensino da História” (Santa Rita, 1925); e (iii) “Higiene do Trabalho Manual” (Camoesas, 1926). Finalmente, há um pequeno excerto da obra de Dewey, Democracia e Educação, numa secção intitulada “Página Selecta (autores antigos e modernos)” (p. 30), inserida na revista n.º 3 (pp. 29-30) que foi publicada em 1925.

No livro Educação e Ensino: Educação Integral (Lima, 1914a) não há referências a Dewey, acontecendo o mesmo na obra O Ensino da História (Lima, 1914b), ainda que neste trabalho se possa reconhecer a proximidade entre as ideias dos dois autores. Entretanto, no primeiro volume da Metodologia (Lima, 1927a) há referências a Dewey quando Lima confronta, nas páginas 43 e 44, duas perspetivas da filosofia contemporânea relacionadas com o papel a atribuir à Ciência, onde a abordagem de Dewey é incluída no grupo das perspetivas epistemológicas que se opõem às propostas de inspiração positivista. Em duas notas de rodapé, relacionadas com esta reflexão, apresenta-se uma breve biografia de Dewey e uma curta nota acerca de um prefácio redigido por Claparède para a tradução francesa da obra A Criança e a Escola. Para além disso, há uma outra referência a Dewey num capítulo, do referido livro, intitulado “A ordem lógica e cronológica das ciências” (p. 119), onde este autor é incluído no grupo dos mais “prestigiosos investigadores e vulgarizadores” (p. 123) da Psicologia, uma “nova ciência, baseada e fundamentada na Fisiologia” (p. 123). Finalmente, Dewey é objeto de um confronto com Stanley Hall no âmbito de uma discussão acerca “do paralelismo da evolução da espécie e da do indivíduo” (p. 336).

No segundo volume da Metodologia (Lima, 1932), Dewey foi objeto de várias referências quando Lima explicou o “processo concêntrico” (p. 24) como suporte dos “métodos ativos” (p. 24). É na continuidade desta reflexão que Lima relaciona J. Dewey com Claparède, Ferrière, Eislander, Montessori e Decroly para defender que todos estes pedagogos “vêem aplicar à educação e ensino as leis da ‘associação de ideias’ da psicologia filosófica e experimental” (p. 41), argumento este que retoma na página 57 para, posteriormente, se referir, apenas, ao “método de projeto recomendado por J. Dewey” (p. 80). Por fim, Dewey volta a ser objeto de atenção, através de “J. Fontegne” (p. 328), “Professor Richards” (p. 329) e “Jacqmann” (p. 330), autores a que A. Lima recorre para defender que os trabalhos manuais “visam ou devem visar uma finalidade social” (p. 327) e, por isso, é necessário que a Escola se possa assumir como uma “Escola-Oficina” (p. 327).

Nos dois volumes de Pedagogia Sociológica: Princípios de Pedagogia e Plano de uma Organização Geral da Educação (Lima, s.d., 1936), a partir deste momento designados, apenas, por Pedagogia Sociológica, podem ser encontradas diversas referências a Dewey. No primeiro volume (Lima, s.d.), é incluído na lista dos autores que “dão à Pedagogia outra característica: consideram-na especialmente sob o aspecto sociológico” (p. 19). Na página 30, numa secção intitulada “Factos & Documentos”, há uma lista bibliográfica onde se podem encontrar dois livros de Dewey: Escola do Amanhã e Escola e Sociedade, na sua tradução em castelhano. Na mesma obra, Lima (s.d.) elenca alguns dos nomes daqueles, entre os quais se encontra Dewey, que, em França, Itália, Bélgica, Alemanha, Inglaterra, EUA, Suíça e Áustria, foram os responsáveis pelo desenvolvimento dos projetos educacionais que se opunham ao “tradicionalismo escolar” (p. 148). Na página 316 há uma lista bibliográfica referente às “Escolas Sociais”, onde se identificam 16 textos escritos por Dewey. A mais importante e longa referência ao pedagogo norte-americano, produzida por Lima, é feita numa secção situada entre as páginas 342 e 362 do volume em análise. Uma referência inserida num texto, “Escolas orgânicas ou de educação orgânica” (p. 342), onde se encontra uma fotografia do pedagogo norte-americano e onde Lima afirma que é “com J. DEWEY que a Escola Social assume a plena e reflectida consciência da sua filosofia pedagógica e a sua realização integral nas ‘escolas orgânicas’ – as escolas-granjas, as escolas-oficinas” (p. 342). Em seguida, acede-se a uma biografia de Dewey (entre as páginas 342 e 345), a mesma que já havia sido publicada na revista Educação Social, intitulada “John Dewey” (Lima, 1924d). Nesta mesma secção, entre as páginas 345 e 349, encontra-se, ainda, uma citação de Ferrière acerca do pedagogo que introduz a tradução do texto “O meu credo pedagógico”, o qual precede a reflexão de Lima sobre o “Método de Projetos”. Finalmente, Dewey é referido num texto onde Lima defende que a “concepção funcional de educação caracteriza a Pedagogia norte-americana e encontra-se brilhantemente exposta nas obras de J. DEWEY, IRVING-KING, W. JAMES, DE GARMO, O’SHEA” (p. 440).

No segundo volume da Pedagogia Sociológica (Lima, 1936) há uma primeira referência a Dewey, através do confronto que T. Simon estabelece, no campo da Pedagogia Experimental, entre a abordagem iniciada por Binet, cuja finalidade seria a de “medir os factos pedagógicos, estudar as suas condições e determinar as suas leis” (p.137), e uma outra que “consiste em ensaios para romper os hábitos clássicos da Pedagogia e, principalmente, para substituir o verbalismo do ensino por uma participação activa da criança e por processos de auto-educação” (p. 137). Para T. Simon, Dewey e Decroly deveriam ser vistos como os primeiros subscritores da segunda abordagem, a qual, segundo o mesmo Simon, “deriva de ROUSSEAU” (p. 137). A segunda referência acerca de Dewey aparece, na referida obra, numa nota de rodapé onde Adolfo Lima apresenta as conceções de diversos autores sobre educação que visavam ilustrar o que ele designava como a “teoria da perfeição social” (p. 193), à qual opõe a “teoria da perfeição subjetiva” (p. 193).

 

2. Dewey e a abordagem psicopedagógica em Educação: Uma problemática a discutir

Perante estes dados é possível afirmar que A. Lima assumiu um papel pioneiro na disseminação da obra de Dewey em Portugal, ainda que seja necessário discutir se o pedagogo norte-americano alguma vez foi, como Jorge do Ó afirma, o “conceptual personage” (Ó, 2005, p. 112) do pedagogo português e se, por isso, o pensamento pedagógico de A. Lima foi construído em função da influência decisiva daquela obra.

Trata-se de uma opção cuja justificação decorre da análise mais ampla da obra de A. Lima e do papel que, nomeadamente, Claparède e Ferrière assumem na construção da mesma, a qual não pode ser ignorada pela importância que assumiu na relação que o pensador português estabeleceu com o pensamento e a obra de Dewey.

Segundo Tröhler (2005), constata-se que aqueles pedagogos suíços encontraram na obra do pedagogo norte-americano uma proposta concetual que lhes serviu para legitimar a abordagem educativa psicopedagógica que os próprios difundiram. No caso de Claparède, verifica-se que este atribui a Dewey a identificação de “um dos problemas nucleares da educação, nomeadamente, o fenómeno genético funcional” (Tröhler, 2005, p. 68). O mesmo aconteceu com o incremento de referências por parte de Ferrière, o qual passou a considerar Dewey como o “descendente espiritual de Rousseau” (Tröhler, 2005, p. 76).

Independentemente da necessidade de se problematizar tais afirmações, o que importa, neste momento, é chamar a atenção para o facto de Lima reproduzir esta leitura da obra de Dewey. Fá-lo quando define uma tal obra como “genética, funcional e social” (Lima, 1924d, p. 22; s.d., p. 343), reproduzindo fielmente a perspetiva de Claparède sobre a mesma (Tröhler, 2005). Fá-lo também quando, entre outras coisas, identifica Dewey como um “biologista” (Lima, 1927a, p. 44).

De acordo com este conjunto de constatações, ganha força a hipótese de que a apropriação da obra de Dewey, por parte do pedagogo português, parece ser o resultado de uma “traveling library” (Popkewitz, 2005, p. 8)2 que teve em Genève o seu epicentro, o que não significa, como o tentarei demonstrar, que A. Lima se situe numa posição de recetor passivo do conhecimento pedagógico difundido a partir dessa cidade suíça. Como se sabe, foi nesta cidade que, na transição do séc. XIX para o séc. XX, se fundaram organizações como o Bureau International des Écoles Nouvelles, o Institut Jean-Jacques Rousseau e o Bureau Internationale d’ Éducation, onde homens como Claparède e Ferrière, entre outros, exerceram uma profunda influência sobre o pensamento de alguns dos principais pedagogos portugueses relacionados com o Movimento da Escola Nova3. Adolfo Lima foi um deles, podendo defender-se que os vínculos intelectuais que manteve com Genéve acabam por ser importantes, também, para explicar a sua leitura da obra de J. Dewey. Uma leitura que, no entanto, não é absolutamente determinada pelos argumentos de Claparède e de Ferrière. Se parece dever-se à influência destes dois pensadores o facto de A. Lima considerar que Dewey contribuiu para que a Pedagogia se afirmasse como uma Psicopedagogia, há que reconhecer algum distanciamento de Lima face a Claparède e Ferrière quando se discute a dimensão social do pensamento de Dewey.

É Tröhler (2005) que defende que, para Claparède, a dimensão social pode ser vista como uma dimensão subordinada à dimensão funcional. Segundo Tröhler (2005), baseado na leitura da introdução da 4.ª edição de Psychologie de l’Enfant et Pédagogie Expérimentale, em Claparède

os dois elementos, o “genético” e o “funcional”, são vistos em interação um com o outro. São abordados como um dos problemas nucleares da educação, enquanto a dimensão social deverá continuar a ser arduamente discutida. (p. 69)

Trata-se de uma leitura que, de algum modo, conduz ao reconhecimento de uma zona de tensão entre A. Lima, Claparède e Ferrière, sobretudo quando o pedagogo português considera que “a tese fundamental de J. Dewey” consiste em afirmar que a “pedagogia é social” (Lima, 1924d, p. 22). É que, para Lima (1924d), o autodesenvolvimento da criança teria que ser compreendido como algo que se relaciona com a sua inserção num dado contexto social. É por isso que defende que

a escola pode e deve criar esse meio social, transformando-se numa “comunidade em miniatura”, uma sociedade em que os alunos colaborarão, se auxiliarão, executarão trabalhos com um fim social, com “método de vida”, como centros de curiosidade científica, de investigação ativae, como tais, pontos de partida para o estudo de todas as outras disciplinas e fundamento para despertar na criança a consciência do “valor do trabalho, da sua significação social e humana!”. (pp. 22-23)

Em suma, pode afirmar-se que a abordagem de Lima, neste âmbito, se aproxima de Dewey e se distancia de Claparède e Ferrière, ainda que se deva reconhecer que um tal distanciamento concetual não afeta, de forma substancial, a tese onde se evidencia a influência dos pedagogos suíços sobre A. Lima, nomeadamente quando este contribui para difundir a tese segundo a qual defende que Dewey contribuiu para a afirmação da Pedagogia como uma Psicopedagogia4. O que se pode concluir é que esta iniciativa intelectual de A. Lima revela os condicionalismos do tempo epistemológico e do espaço geográfico em que o pedagogo português viveu, os quais exprimem, concomitantemente, as condições em que decorreu o processo de apropriação da obra de Dewey. Revela igualmente, e em última instância, as zonas de sombra do Movimento da Escola Nova, nomeadamente quando a Natureza da Criança tende a ser assumida, neste âmbito, como o argumento matricial em função do qual se identifica a possibilidade de construir uma Pedagogia Científica como uma Psicopedagogia, o que, em última análise, contribui para obscurecer a importância da dimensão cultural e epistemológica de qualquer ação educativa como um fator relevante (Trindade, 2012). Por fim, não é uma questão menor reconhecer que a valorização do contributo de Dewey para a afirmação da já referida narrativa psicopedagógica tem de ser vista como uma narrativa congruente com as idiossincrasias do ideário anarquista de A. Lima. É que, como defende A. Candeias (2003), baseado em J. Joll, um tal ideário baseia-se na confiança que os anarquistas depositam na “natureza racional do Homem e na crença da possibilidade do seu aperfeiçoamento intelectual e moral” (p. 740).

Constata-se, através desta leitura da travelling library em cuja construção A. Lima participa, que não se pode continuar a apreender os processos transnacionais e transculturais de difusão e receção do conhecimento pedagógico de forma linear (Madeira, 2009; Mayer, 2019), como se fosse inevitável que tais processos só pudessem ser compreendidos em função de uma lógica de tipo colonial, a qual pressupõe a existência de um centro nevrálgico que seria responsável pela construção e difusão do conhecimento a ser consumido e utilizado, de forma submissa, pelas periferias. Para C. Mayer (2019), que defende a necessidade de uma tal mudança epistemológica, concetual e heurística, o que é necessário, hoje, é compreender como é que aqueles processos ocorrem, “que debates educativos suscita e como é que os conceitos e as práticas de diferentes contextos culturais foram transferidos e adaptados pelo discurso nacional/local” (p. 51). Trata-se de uma perspetiva que observa as trocas e as relações culturais entre contextos distintos através de um olhar que tenta percecionar a história dos cruzamentos (histoire croisée) e os percursos que nesse âmbito se sobrepõem como percursos históricos emaranhados (entangled history)5.

A análise que A. Lima propõe sobre a Metodologia de Projeto permite alargar esta reflexão. Uma tal metodologia, que assume alguma importância na relação estabelecida entre Adolfo Lima e a obra de Dewey, é, como já referimos, objeto de abordagem quer no volume I da Pedagogia Sociológica (Lima, s.d.) quer no segundo volume da Metodologia (Lima, 1932). No primeiro volume, Lima (s.d.) defende, na página 350, que é através do “Método de Projetos” que se pode concretizar o ideal sociológico da Pedagogia, afirmando, ainda, que o “que na Europa se denomina ‘centros de interesse’ teve na América do Norte o nome de ‘método dos projectos’” (p. 350). No segundo volume da Metodologia, Lima (1932) relaciona, finalmente, o “Método de Projetos” com “o princípio de concentração” (p. 24) e com o “sistema dos complexos do ensino” (p.24), adotado na Rússia. Segundo o pedagogo português, “todas estas expressões traduzem, porém, à parte subtilezas, uma conceção fundamental psicossocial única, que com mais propriedade científica podemos denominar ‘processo de associação de ideias’... e que CELLERIER chama ‘método lógico’ e que AD. FERRIÈRE chamaria, preferivelmente, ‘método biológico’” (Lima, 1932, p. 24).

Independentemente da necessidade de reconhecermos as vulnerabilidades concetuais e heurísticas do discurso de Adolfo Lima, a propósito desta temática, importa analisar os argumentos invocados por este para valorizar a Metodologia de Projeto, na medida em que tais argumentos exprimem, mais uma vez, o peso da racionalidade psicopedagógica como fundamento nuclear da obra e da reflexão do pedagogo português. Para este, a Metodologia de Projeto constituía uma manifestação de um modelo de ação pedagógica que tem “o seu fundamento e justificação na psicologia inglesa do associacionismo psíquico e na psicologia freudiana da psicanálise” (Lima, 1932, p. 41) e a sua concretização, no campo da educação, em Dewey, nos EUA, em Claparède, na Europa, em Ferrière, “na sua escola de Bex” (Lima, 1932, p. 41), em “J. F. EISLANDER, no seu belo livro ‘L’École Nouvelle’” (Lima, 1932, p. 41), em “M. MONTESSORI, nos seus ensaios práticos das ‘Case dei Bambini’” (Lima, 1932, p. 41), e, finalmente, em “O. DECROLY, na sua escola da rua de L’Ermitage” (Lima, 1932, p. 41).

Como se constata, esta abordagem referente à Metodologia de Projeto é um dos exemplos que melhor permite exemplificar o processo de recontextualização singular a que A. Lima submete a obra de Dewey, dado que evidencia os contornos de um processo que, mais do que a rigorosa transposição concetual da dita metodologia, resulta de uma dinâmica miscigenadora (Mayer, 2019), no âmbito do contacto/confronto que se estabeleceu entre o pensamento de Dewey e o quadro gnoseológico que Lima utiliza para atribuir um sentido e conferir forma à Metodologia de Projeto. 

 

3. Dewey e o estatuto dos alunos nas escolas: Equívocos e paradoxos significativos

Para Ferrière (1934) “a criança cresce como uma semente, de acordo com leis que determinam o seu crescimento” (p. 5), enquanto Claparède (1931) defende que se devem fazer “corresponder os interesses de cada grau de ensino aos interesses naturais que caracterizam os diversos estádios da evolução infantil” (p. 232). Como se constata, estamos perante a crença de que há uma ordem natural subjacente ao desenvolvimento da criança, cuja importância, como fator educacional, terá de ser respeitada (Trindade, 2012), o que, contribuindo para legitimar a racionalidade psicopedagógica que ambos os autores perfilham, contribui, subsequentemente, para configurar a definição do estatuto da criança na Escola.

Adolfo Lima (1924e) comunga de uma tal perspetiva, defendendo ser necessária “uma educação baseada na psicopedagogia” (p. 31), a qual implicaria o respeito pelos “estados naturais do desenvolvimento espontâneo do ser humano que, nos casos normais, correspondem a certas faixas ou zonas de idade” (Lima, 1924e, p. 31). A abordagem de Dewey (2007) é, todavia, diferente. Ele considerava que

Rousseau estava correcto e introduzia uma reforma educativa muito necessária, ao afirmar que a estrutura e as actividades dos órgãos fornecem as condições de todo o ensino do uso dos órgãos; mas estava profundamente errado ao sugerir que forneciam não só as condições, mas também os fins do seu desenvolvimento. (p. 110)

Para Dewey (2007) não só é o meio social que dirige “o crescimento dando o melhor uso às capacidades” (p. 110), como também defende que “[n]ão existe aprendizagem em que não se comece pelas capacidades não exercitadas; mas aprender não é uma questão de extravasamento espontâneo das actividades não exercitadas” (Dewey, 2007, p. 110). Daí que a Escola,para Dewey (1897), seja “simplesmente a forma de vida comunitária onde se concentram todos os meios que sejam os mais eficazes para conduzir a criança a partilhar os bens herdados pela humanidade e a utilizar as suas próprias capacidades para fins sociais” (pp. 2-3). Neste sentido, a valorização da centralidade da criança em Dewey terá de ser entendida em termos diferentes daqueles que Claparède e Ferrière propõem. Para Dewey (1987), a educação deve estimular as capacidades da criança, “agindo segundo as mesmas linhas gerais construtivas que deram origem à educação” (p. 10), de forma a possibilitar-lhe desempenhar “os tipos fundamentais de actividade que fizeram da civilização aquilo que ela é” (Dewey, 1987, p. 10). Daí que se possa afirmar não ser o vínculo entre educação e natureza humana que suporta a abordagem pedagógica de Dewey mas a relação entre educação e herança cultural, entendida quer como referência quer como condição decisiva do processo de desenvolvimento e empoderamento pessoal e social dos alunos. Para Dewey é a apropriação do património cultural e o modo como essa apropriação ocorre que permite assegurar a educação de quem quer que seja. Um pressuposto que se evidencia quando Dewey (2002) compara a relação entre um viajante e um mapa, considerando que

O mapa não é um substituto da experiência pessoal. O mapa não toma o lugar da viagem real. O material logicamente formulado de uma ciência ou ramo de saber, de um estudo, não é um substituto das experiências individuais… . Mas o mapa, um resumo, uma visão classificada e ordenada das experiências prévias, serve como um guia para futuras experiências: dá a direção, facilita o controlo e economiza o esforço, evitando desvios inúteis e apontando os caminhos que levam mais depressa e com maior segurança ao resultado desejado. Através do mapa cada novo viajante pode retirar para a sua viagem os benefícios dos resultados das explorações dos outros sem o gasto de energia e a perda de tempo envolvidos nas suas deambulações, deambulações que ele mesmo seria obrigado a repetir se não fosse o auxílio do registo objetivo e generalizado de desempenhos anteriores. (pp. 169-170)

Em suma, perante este conjunto de dados, Dewey não poderá ser considerado como um autor cujo pensamento e obra se identificam com a narrativa psicopedagógica que Lima lhe atribui, seja por influência de Claparède e Ferrière, seja porque essa leitura era a mais compatível com a racionalidade positivista que caraterizava a sua reflexão educativa. É que, para Dewey, segundo Trindade (2012), o protagonismo das crianças terá de ser compreendido em função três dimensões fundamentais que se intercondicionam: (i) a experiência pessoal e social de cada pessoa; (ii) a herança cultural de que dispomos enquanto seres humanos e (iii) os outros e as suas próprias experiências.

Diria, igualmente, em função de uma perspetiva construída a partir das informações e dos recursos concetuais de que hoje dispomos para as ler e interpretar, que, apesar dos vínculos existentes, percecionados ou reais, entre Adolfo Lima e John Dewey, não se pode continuar a ignorar a necessidade de se discutir a proximidade das obras dos dois autores, do ponto de vista dos seus fundamentos políticos e ideológicos.

É que a crença substantiva sobre a qual assenta o pensamento do pedagogo norte-americano define-se como uma “crença generalizada da participação de todos na construção de uma nova cultura, o que permitiria que cada cidadão pudesse desfrutar dos benefícios alcançados pelas novas ciências, assim como do progresso económico e tecnológico em geral” (Madeira, 2009, p. 145). Uma crença que, tendo em conta a leitura que Sébastien-Akira Alix (2019) propõe para evidenciar as “ambiguidades sociais do progressismo pedagógico” (p. 119) de Dewey, é congruente com o facto de o projeto educacional do pedagogo norte-americano se subordinar, de forma implícita, “à ordem interna da sociedade democrática industrial e liberal norte americana na viragem do século XIX para o século XX (Alix, 2019, p. 131)6.

Adolfo Lima tinha outras preocupações políticas, enquanto cidadão relacionado com o movimento anarquista português, no qual participava, sobretudo, na sua condição de pedagogo, de ativista sindical e de algumas colaborações que manteve com a imprensa afeta àquele movimento (Candeias, 2003). Basta referir que a Escola Oficina n.º 1, onde assumiu um papel decisivo entre 1907 e 19147p>, era considerada o modelo de escola a seguir pela rede de escolas operárias portuguesas do primeiro quarto do século XX que foram criadas pelos sindicatos e por associações operárias, relacionadas com o movimento anarcossindicalista (Candeias, 1987, 1993). Ou seja, A. Lima, como um dos principais obreiros daquela Escola-Oficina, envolveu-se ativamente na edificação de “uma sociedade sem classes e sem Estado” (Candeias, 2011, p. 161), através da sua atividade como docente e pedagogo, de forma a contribuir, por essa via, “para o aperfeiçoamento social, económico e humano” (Candeias, 2011, p. 161) do operariado, sem o qual nenhuma transformação política e social seria possível8.

Perante este conjunto de dados, parece ser inevitável considerar que os dois pedagogos se situam em campos políticos distintos, ainda que essa tensão não transpareça na reflexão que Lima promove sobre o pensamento e a obra de Dewey. Porque é que uma tal tensão não transparece? Porque é que Adolfo Lima tem necessidade de recorrer a Dewey, e ao seu liberalismo cosmopolita, para legitimar o seu projeto libertário de educação?

Admitindo-se que o papel de intermediação, assumido por Claparède e Ferrière no diálogo que Lima estabeleceu com Dewey, possa ajudar a construir uma resposta para as questões enunciadas, importa não esquecer que a leitura daqueles autores sobre a obra de Dewey, independentemente das suas vulnerabilidades concetuais, é uma leitura que se adequa e confere credibilidade à abordagem educacional proposta por A. Lima. Ou seja, a narrativa psicopedagógica que Claparède e Ferrière propõem para captarem o pensamento de Dewey é uma narrativa que tanto seduz como interessa a Adolfo Lima, enquanto narrativa legitimadora do seu projeto educacional, dada a congruência que é possível estabelecer entre uma tal narrativa e o “cientismo racional-positivista” (Candeias, 1987, p. 358), que, de acordo com Candeias (1987), alicerça, em termos epistemológicos, o ideário anarquista com o qual Lima se identifica.

 

4. Adolfo Lima e Dewey: Uma relação a interpelar

Perante os dados e a reflexão que fui propondo pode afirmar-se que A. Lima foi um pioneiro, em Portugal, da divulgação da obra de Dewey, o que não significa que este tenha assumido o papel de “conceptual personage” que Jorge do Ó (2005) lhe atribuiu. Um tal papel parece assentar melhor a Claparède e Ferrière, cuja influência sobre a reflexão pedagógica do pedagogo português influencia, concomitantemente, o modo como este se apropria do pensamento do pedagogo norte-americano, através de um processo onde Lima, contudo, não pode ser entendido como um autor absolutamente à mercê dos pressupostos, ideias e propostas daqueles pedagogos suíços. Ou seja, creio que é mais rigoroso considerar que Adolfo Lima se apropria da obra de Dewey através de um processo que, neste texto, já designei como um processo de recontextualização singular, o qual permite evidenciar a confluência entre o modo como o pedagogo português acedeu a essa obra e as crenças e idiossincrasias que sustentam a sua visão do mundo e de sociedade.

Numa abordagem, em retrospetiva, dos dados que apresento e discuto neste texto, pode considerar-se que a leitura que Lima propõe acerca do contributo de Dewey para a consolidação da narrativa psicopedagógica é uma leitura algo abusiva. Apesar de ser capaz de reconhecer o contributo do pedagogo norte-americano para afirmar a dimensão social da Pedagogia, Lima não vislumbra o potencial conflito epistemológico entre um tal contributo e aquela narrativa, provavelmente porque a influência de Dewey sobre a obra do pedagogo português fez-se sentir mais como um fator de legitimação da mesma do que como um dos seus pilares. Provavelmente, será também esta função de narrativa legitimadora que poderá explicar, em parte, a já mencionada ausência de tensões, ao nível dos textos que consultei, entre o projeto libertário de Lima e o projeto liberal de Dewey.

Não se estranha, por isso, a ausência substantiva de Dewey nos três artigos que Lima redigiu sobre “A autonomia dos educandos e as associações escolares: As Solidárias” (Lima, 1925a, 1925b, 1925c), ainda que sejam textos que abordam uma problemática tão cara ao pedagogo norte-americano. É que, através daqueles três artigos, se defende a necessidade de uma “participação efectiva das crianças na vida e no governo das escolas como condição da construção de uma ‘Escola Social’” (Lima, 1925a, p. 13) ou que o desenvolvimento de um projeto de educação emancipatório requer que a Escola se organize como uma “democracia direta” (Lima, 1925b, p. 13). Ainda que esta perspetiva possa ser relacionada com Dewey, o que se constata é que não é ao pedagogo norte-americano que Lima recorre como fonte de inspiração de um tal ideário mas a William R. George, fundador da “George Junior Republic” (Lima, 1925b, p. 14), em 1895, e a Wilson Lindsley Gill da “School-City” (Lima, 1925b, p. 15)9.

Em suma, pode afirmar-se que a obra de Dewey está explicitamente presente na obra de Lima, mesmo que, por um lado, tenha sido objeto de interpretações controversas e, por outro, não tenha sido captada, nas suas singularidades, como uma obra única e pioneira no âmbito do Movimento da Escola Nova.

Pode afirmar-se, também, que, outras vezes, essa presença só poderá ser inferida, como no caso de O Ensino da “História” (Lima, 1914b). Neste livro, Lima propõe uma abordagem próxima daquela que o pedagogo norte-americano produz, ainda que não haja qualquer referência nem a Dewey nem a qualquer outro autor10. Seja como for, é expectável que Lima conhecesse a perspetiva de Dewey sobre o ensino da História, quanto mais não seja porque publicou, na Educação Social, dois artigos de José Santa Rita, “Carácter Social do Ensino da História: Da História à Sociologia” (Santa Rita, 1924) e “A Nova Orientação do Ensino da História” (Santa Rita, 1925), onde o pedagogo norte-americano surge como fonte de inspiração, sendo até objeto de referência no segundo texto para suportar a afirmação de que “o educador encontra na história uma sociologia indirecta, reveladora dos processos de formação e dos modos de organização da sociedade actual” (Santa Rita, 1925, p. 3).

Em conclusão, para Lima, Dewey é visto, em primeiro lugar, como um pedagogo que contribuiu para a afirmação de um projeto educativo onde a criança assume uma inequívoca centralidade. Em segundo lugar, Lima identifica-se com o tipo de valorização da dimensão social dos projetos de educação escolar que Dewey propõe; e, em terceiro lugar, vê-o como um autor que contribuiu para a afirmação e desenvolvimento dos métodos ativos e do projeto da Escola-Oficina. Por outro lado, a influência da abordagem psicopedagógica na sua leitura sobre a educação e a Escola impedem-no de compreender a centralidade que Dewey atribuía à relação entre a educação da criança e o património cultural que herdamos como seres humanos, em função da qual o pedagogo norte-americano se distanciou da já referida abordagem psicopedagógica que entendia ser a relação entre educação e natureza humana o eixo da revolução pedagógica que seria necessário promover (Trindade, 2012). Não estamos perante uma questão menor, na medida em que uma perspetiva é defender que o respeito pela centralidade da criança se explica em função da necessidade de permitir que esta possa exercer as suas capacidades “agindo segundo as mesmas linhas gerais construtivas que deram origem à civilização” (Dewey, 1897, p. 6), e outra, bastante diferente, é defender a centralidade da criança tal como a narrativa psicopedagógica a difundiu, acabando por contribuir para legitimar a autossuficiência cultural dos alunos como premissa pedagógica nuclear. Deste ponto de vista, A. Lima, como a generalidade dos pedagogos relacionados com o Movimento da Escola Nova, foi incapaz de reconhecer esta dimensão original da reflexão de Dewey, a partir da qual este pedagogo contribuiu para que se pudesse começar a vislumbrar que o centro da ação pedagógica não eram as crianças e as suas potencialidades mas a relação que estas, partindo daquilo que são e que sabem, podem estabelecer com os “assuntos matéria” (Dewey, 2002, p. 161).

É perante a reflexão proposta sobre os dados que coletei para analisar a importância da obra de Dewey no pensamento pedagógico de Adolfo Lima que reafirmo que a difusão do conhecimento dessa obra, em Portugal, começa a ser realizada pelo pedagogo português, ainda que este o tenha feito de forma circunscrita e sujeita a um processo de recontextualização singular que, apesar das especificidades que o caraterizam, tende a reproduzir a leitura de Dewey que se difundiu a partir de Genève, por Claparède e Ferrière. Isto não significa, contudo, que estamos perante qualquer tipo de submissão intelectual de Lima face às interpretações dos pedagogos suíços, quer porque estamos perante perspetivas que nem sempre são absolutamente coincidentes, quer porque a adesão de A. Lima à leitura de Claparède e Ferrière sobre Dewey terá de ser compreendida em função, igualmente, das crenças epistemológicas do pedagogo português e da sua fé positivista, a qual, no âmbito da obra e do pensamento de Adolfo Lima, deverá ser entendida como condição político-ideológica a respeitar para que um outro Mundo e uma outra Escola sejam possíveis.

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Recebido em 5 de novembro de 2019

Aceite para publicação em 28 de março de 2020

 

Endereço para Correspondência

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Rui Trindade

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto

Rua Alfredo Allen 4200-135 Porto

trindade@fpce.up.pt

 

NOTAS

1Movimento da Escola Nova é a designação que, neste texto, identifica a Ligue Internationale pour l’ Éducation Nouvelle.

2Através do conceito de “traveling library”, Popkewitz (2005) defende que o pensamento de Dewey terá que ser visto como um produto resultante das interpretações particulares a que esse pensamento é sujeito por outros autores, inseridos em contextos histórico-culturais distintos, os quais contribuem para que aquela interpretação seja mais uma recriação do pensamento do pedagogo americano do que uma reprodução do mesmo.

3Uma abordagem retrospetiva da relação entre os pedagogos portugueses e Genéve permite constatar, por exemplo, que Faria de Vasconcelos, fundador e diretor da Escola Nova de Bierges-Lez-Wavre (Bruxelas), foi assistente de Claparède. O seu livro, Une École Nouvelle en Belgique, foi prefaciado por Ferrière (Figueira, 2004). António Sérgio permaneceu, entre 1914 e 1916, no Instituto Jean-Jacques Rousseau, tendo sido convidado por Ferrière e Claparède, em 1915, para fundar uma Escola Nova em Cuba. Finalmente, Álvaro Viana de Lemos, outro pedagogo de referência do Movimento da Escola Nova português (Nóvoa, 1995), foi reconhecido, como tal, por Ferrière (Nóvoa, 1995).

4Estes vínculos e distanciamentos de A. Lima com Ferriére e Claparède são corroborados, de algum modo, por Candeias (2003), quando este defende que para “Lima, a Psicologia era a ‘ciência’ que devia guiar o dia-a-dia escolar, inserido num plano mais vasto delineado que a Sociologia se encarregava de apontar” (p. 742). Trata-se de uma abordagem a partir da qual se pode compreender melhor um dos eixos estruturantes do tipo de relacionamento que Lima estabelece com o pensamento de Dewey.

5Christine Mayer (2019) é uma das autoras que valoriza esta abordagem, afirmando que “desenvolvimentos recentes na história das transferências (Transfergeschichte) transnacionais e globais produziram novas abordagens (como o conceito de transferência cultural, conectado e partilhado ou a entangled history usualmente referida como uma histoire croisée)” (p. 51).

6No texto de Alix denunciam-se, sobretudo, as ambiguidades da reflexão educativa protagonizada por Dewey, relacionadas com a segregação escolar a que são votados os afro-americanos e os polacos nos EUA. Outro tipo de ambiguidades diz respeito à “aceitação implícita e provisória da ordem económica e industrial” (Alix, 2019, p. 127) já referida, e que Alix (2019), transcrevendo Kantor (1988), atribui à “fé de Dewey na educação para reformar o mundo do trabalho não foi apenas o reflexo da sua crença no potencial da sociedade americana… . O que preocupava Dewey e outros progressistas liberais não era tanto a existência de classes mas a distância crescente entre elas e os conflitos que isso poderia ocasionar” (2019, p. 130).

7Candeias (2003) considera que é A. Lima que consegue fazer da Escola Oficina n.º 1 “uma escola de referência, para a Pedagogia da época, mas também para os nossos dias” (p. 743).

8Para explicar esta opção, Candeias (2011) relembra uma entrevista de Carlos Rates, o secretário-geral do, ao tempo, jovem Partido Comunista Português (PCP), a Raul Brandão, onde o primeiro afirma que o que distingue o PCP dos sindicalistas e dos anarquistas tem a ver com a importância que estes atribuem ao “factor educação para provocar a revolução, enquanto nós supomos que serão os factores materiais que a hão-de provocar… . Eles supõem que a revolução há-de vir quando a humanidade estiver educada” (p. 162).

9Foram, igualmente, estes autores e estes projetos que inspiraram António Sérgio a gizar o projeto dos “Municípios Escolares”, o qual apresenta no livro Educação Cívica (Sérgio, 1984), editado em 1915.

10Lima (1914b) adverte que as ideias que irá propor, nesta obra, são resultado “de leituras que, assimiladas, perderam já a sua autoria, ficando delas um resíduo – esse resíduo fecundo que a experimentação da vida faz germinar, desenvolver sob a forma de ideias” (p. 4).

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