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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187versão On-line ISSN 2183-0452

Rev. Port. de Educação vol.35 no.1 Braga jun. 2022  Epub 21-Jul-2022

https://doi.org/10.21814/rpe.21065 

Artigos Originais

Das missivas aos modos: Experimentação e prudência como ethos de pesquisa

About letters and research methods: Experimentation and prudence as research ethos

De las letras a los modos: La experimentación y la prudencia como ethos de la investigación

Christian Fernando Ribeiro Guimarães Vincii 
http://orcid.org/0000-0003-2914-3032

Cintya Regina Ribeiroii 
http://orcid.org/0000-0002-7924-4539

i Universidade do Estado de Minas Gerais, Divinópolis, Brasil.

ii Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.


RESUMO

Almeja-se compreender a intricada relação entre as noções de experimentação e prudência no interior dos tomos integrantes da coleção Capitalismo & Esquizofrenia, escrita por Gilles Deleuze e Félix Guattari, bem como os modos como cada tomo operacionalizou suas empreitadas de pensamento à baila de alguns elementos metodológicos do trabalho conjunto desses autores. Essa discussão, passível de ser conduzida tanto por meio da análise das cartas trocadas entre Deleuze e Guattari aquando da elaboração de Capitalismo & Esquizofrenia, quanto da leitura das notas compiladas por Guattari nessa mesma época, pode contribuir sobremaneira para o trabalho de pesquisadores/as interessados/as em operar metodologicamente a partir do aporte teórico-conceitual deleuziano e/ou deleuzo-guattariano, mormente no campo educacional. Intenta-se, assim, contribuir com discussões metodológicas em educação com o interesse de, a partir da filosofia de Deleuze e Deleuze-Guattari, construir um ethos de pesquisa mais do que um método de pesquisa. Para tanto, apresenta-se um panorama das apropriações dessa ideia de experimentação pela pesquisa educacional brasileira contemporânea para, na sequência, aprofundar-se a discussão sobre a relação das noções de prudência e experimentação em Capitalismo & Esquizofrenia. Debruçamo-nos sobre o método de trabalho próprio de Deleuze e Guattari, com vistas a extrair problematizações metodológicas que poderão ser estratégicas aos pesquisadores, no que tange aos modos de enfrentamento de problemas, em educação.

Palavras-chave: Pesquisa educacional; Experimentação; Prudência; Gilles Deleuze; Félix Guattari.

ABSTRACT

The aim of this article is to understand the intricate relationship between the notions of experimentation and prudence in the Capitalism & Schizophrenia collection, written by Gilles Deleuze and Félix Guattari, as well as the ways in which each volume operationalized its thinking endeavors based on some methodological elements of the joint work of the authors. This discussion, which can be conducted both through the analysis of the letters exchanged between Deleuze and Guattari during the elaboration of Capitalism & Schizophrenia, as well as by reading the notes compiled by Guattari at the same time, can greatly contribute to the work of researchers interested in the deleuzian and/or deleuze-guattarian theoretical-conceptual input, especially in the educational field. Therefore, this article intends to contribute to methodological discussions in education that, based on the philosophy of Deleuze and Deleuze-Guattari, are concerned with the construction of a research ethos, rather than a research method. To do so, an overview of the appropriations of this idea of experimentation by contemporary Brazilian educational research is presented, in order to improve the discussion on the relationship between the notions of prudence and experimentation in Capitalism & Schizophrenia. We focus on Deleuze and Guattari's own work method, with a view to extracting methodological problematizations that can be strategic for researchers, with regard to ways of dealing with problems, in education.

Keywords: Educational research; Experimentation; Prudence; Gilles Deleuze; Félix Guattari.

RESUMEN

El objetivo de este artículo es comprender la intrincada relación entre las nociones de experimentación y prudencia dentro de los volúmenes que componen la colección Capitalismo & Esquizofrenia, escrita por Gilles Deleuze y Félix Guattari, así como las formas en que cada tomo operacionalizó sus emprendimientos de pensamiento sobre la base de algunos elementos metodológicos del trabajo conjunto de estos autores. Esta discusión, que puede llevarse a cabo tanto a través del análisis de las cartas intercambiadas entre Deleuze y Guattari durante la elaboración de Capitalismo & Esquizofrenia, como de la lectura de las notas recopiladas por Guattari al mismo tiempo, puede contribuir enormemente al trabajo de los investigadores interesados en operar metodológicamente a partir del aporte teórico-conceptual deleuziano y/o deleuze-guattariano, especialmente en el ámbito educativo. Se pretende, por tanto, contribuir a las discusiones metodológicas en educación con el interés de, desde la filosofía de Deleuze y Deleuze-Guattari, construir un ethos de investigación más que un método de investigación. Para tanto, se presenta un panorama de las apropiaciones de esta idea de experimentación por la investigación educativa brasileña contemporánea, con el fin de profundizar la discusión sobre la relación entre las nociones de prudencia y experimentación en Capitalismo & Esquizofrenia. Buscamos centrarnos en el método de trabajo propio de Deleuze y Guattari, con miras a extraer problematizaciones metodológicas que puedan resultar estratégicas para los investigadores, en cuanto a las formas de afrontar los problemas, en educación.

Palabras clave: Investigación educativa; Experimentación; Prudencia; Gilles Deleuze; Félix Guattari.

1. Introdução

Pouco antes de findar o ano de 1971, o filósofo francês Gilles Deleuze encaminhou uma singela carta, prenhe de significados obscuros, ao seu colega e parceiro Félix Guattari. Nesta, lemos:

Ah, por qual delicadeza das coisas nosso livro termina num 31 de dezembro, a fim de bem marcar que os fins são os começos. Este trabalho é bem bonito, marca da sua força criativa, e da inventividade e da fluidez de meu esforço. Ele iria por si se você tivesse querido, embora 1) os cinco anos de férias 2) que, aliás, devem ser compreendidos num sentido apocalíptico, hermenêutico e cabalístico segundo unidades de medida não conhecidas I) são para mim e não para você que deveria, pelo contrário, preparar ativamente o tomo seguinte 2) ao passo que eu não deixaria que meu avô fosse analisado por Oury I) tanto que tivemos de abrir mão de coisas nesse primeiro volume. (Deleuze, 2018, p. 53)

Deleuze, demasiado ansioso, demonstra um vívido interesse em dar continuidade ao trabalho iniciado anos antes, em 1969, e cujo resultado foi a obra O Anti-Édipo, primeiro tomo da coleção Capitalismo & Esquizofrenia. Para o filósofo francês, o encerramento desse livro deveria marcar o momento no qual uma nova empreitada de pensamento poderia emergir, empreitada esta capaz de recuperar experimentações deixadas de lado nesse primeiro trabalho conjunto bem como abrir novas picadas na densa mata do pensável. Guattari, por seu turno, parecia não partilhar do mesmo entusiasmo, quiçá procurasse desfrutar de algumas férias, descansar após tamanho esforço inventivo. Os autores, contudo, não conseguiram antever os efeitos que a obra O Anti-Édipo produziria após seu lançamento, em 1972, e que tanto perturbariam as férias de Guattari quanto tirariam o sossego de Deleuze1.

Em pouco menos de seis meses (Dosse, 2010), O Anti-Édipo contou com duas reimpressões e ambas se esgotaram celeremente nas livrarias francesas. François Dosse (2010), autor responsável pela escrita de uma biografia conjunta de Deleuze e Guattari, argumenta ser difícil compreender o fenômeno editorial produzido por essa obra, sucesso de vendas sem precedentes e que, ainda hoje, continua surpreendendo por conta de sua alta vendagem. De acordo com esse biógrafo, O Anti-Édipo, entre 1972 e 2007, vendeu 63.000 exemplares apenas na França (Dosse, 2010). Outros autores, como Guillaume Silbertin-Blanc (2010) e Anne-Marie Norgeu (2006), também se impressionaram com o impacto produzido por tal obra.

Silbertin-Blanc (2010), por exemplo, recorda a vivacidade das distintas reações suscitadas pelo primeiro tomo de Capitalismo & Esquizofrenia: a ala dos psicanalistas, mormente aqueles ligados ao nome de Jacques Lacan, recusava-se a lê-lo, enquanto filósofos, antropólogos e tantos outros descobriam nas páginas d’O Anti-Édipo algo inédito e comentavam entusiasmados sobre as novidades ali apresentadas. Muitos vislumbraram em suas páginas uma possibilidade de sair do tacanho estado de pensamento no qual supunham se encontrar (Silbertin-Blanc, 2010). Uma brisa fresca, capaz de revitalizar os ânimos - diziam alguns (Dosse, 2010).

Na França, alguns grupos começaram a procurar viver sob os preceitos apresentados em suas páginas e comunidades ditas esquizo surgiram aqui e acolá (Norgeu, 2006; Soulié, 2012). A Universidade de Vincennes, na qual Deleuze ministrava os seus cursos, e a clínica La Borde, instituição na qual Guattari clinicava, passaram a atrair uma leva imensa de apreciadores das teses antiedípicas. Não foram poucos aqueles que passaram a acampar e a morar tanto no bosque próximo a La Borde quanto nos jardins de Vincennes. Esses grupos esquizos aceitavam o ingresso de qualquer um e seus integrantes passavam os dias realizando atividades lúdicas, quando não eram integrados na rotina diária de trabalho da clínica em que Guattari trabalhava ou quando não estavam assistindo a alguns dos cursos ministrados por Deleuze.

Anne-Marie Norgeu (2006) recorda-se especificamente dos problemas que essas comunidades provocaram em La Borde durante a década de 1970. Muitos tiveram que ser expulsos das proximidades da instituição, algo inédito até então - a clínica partilhava de uma política de acolhimento irrestrito -, uma vez que, por conta da agitação produzida por esses novos moradores, alguns internos começaram a se recusar a sair para seus passeios diários e optaram por ficar reclusos em seus quartos. O tratamento de integração dos pacientes à vida cotidiana, nesse sentido, viu-se comprometido por um determinado período de tempo por conta de alguns, entusiasmados com as teses de O Anti-Édipo.

Anos depois, os EUA vivenciariam algo similar. Ali, mobilizados talvez pelo prefácio à obra escrito por Michel Foucault (2010), apresentando o livro como uma espécie de tratado de ética, foram muitos aqueles que passaram a defender um modo de existência antiedípica (During, 2007). Na Universidade de Berkeley, por exemplo, muitos estudantes buscaram construir um espaço mais livre inspirado nos escritos de Deleuze e Guattari, chegando a reivindicar uma modificação radical nas regras acadêmicas e avaliativas (Cusset, 2008). Não raro, os frequentadores do campus se deparavam com jovens carregando cartazes estampados com slogans extraídos das páginas de O Anti-Édipo; exigindo uma maior liberdade ou, ao menos, uma flexibilização dos hábitos e costumes no interior da vida universitária estadunidense. Algo similar, como nota François Cusset (2008), ocorreu também em Yale e em outras universidades, instituições nas quais foi possível vislumbrar uma radicalização política dos discursos acadêmicos por meio da assimilação das teses de Deleuze e Guattari bem como de outros ilustres integrantes daquilo que se convencionou chamar French Theory.

Na França, nos EUA e ao redor do globo2, inúmeras pessoas buscaram modificar o seu modo de vida, procurando experimentar esse pensamento outro preconizado pelo primeiro tomo de Capitalismo & Esquizofrenia. Mas não parecia ser essa a intenção dos autores. Conforme escreveu a Claire Parnet, Deleuze lamentava o fato de que muitos passaram a lhes enxergar como mestres ou até mesmo algo mais asfixiante; e emendava, ironicamente: “quisemos tanto ser outra coisa” (Deleuze & Parnet, 2004, p. 22). As experimentações ensejadas por esse tomo acabaram preocupando seus autores, que, anos depois - no prefácio à edição italiana de Mil Platôs -, constataram que O Anti-Édipo padeceu de um “fracasso mais profundo”, uma vez que

pretendia denunciar as falhas de Édipo, do “papai-mamãe”, na psicanálise, na psiquiatria e até mesmo na antipsiquiatria, na crítica literária e na imagem geral que se faz do pensamento. Sonhávamos em acabar com Édipo. Mas era uma tarefa grande demais para nós. (Deleuze & Guattari, 1995, p. 7)

Apenas em Mil Platôs, segundo tomo de Capitalismo & Esquizofrenia, os autores teriam dado “um passo à frente”, conseguindo “abordar terras desconhecidas, virgens de Édipo” (Deleuze & Guattari, 1995, p. 7).

Quais mistérios guardam esse “fracasso mais profundo” de O Anti-Édipo bem como o “passo à frente” de Mil Platôs? O que efetivamente mudou? Para compreendermos a mudança processada entre ambas as obras, propomos nos aprofundarmos no conceito de prudência, ausente do primeiro tomo e em destaque no último, em sua visceral correlação com a noção de experimentação.

O conceito de prudência ganha certo destaque no pensamento de Deleuze logo após a publicação do primeiro tomo de Capitalismo & Esquizofrenia, como podemos depreender de sua conversa com a pensadora Claire Parnet, na qual o filósofo francês afirma que para viver é necessário realizar inúmeras experimentações, porém reconhecendo que é “necessária muita prudência para experimentar” (Deleuze & Parnet, 2004, p. 80). Sem essa prudência, podemos acabar fracassando e a experimentação vital pode acabar se transmutando em uma “tentativa suicida”, como argumentou em outra ocasião (Deleuze, 2003, p. 140). Compreender essa relação complicada entre as noções de experimentação e prudência poderá, acreditamos, não apenas elucidar os modos como cada tomo operacionalizou suas empreitadas de pensamento, mas também trazer à baila alguns elementos metodológicos do trabalho conjunto de Deleuze. Essa discussão, passível de ser conduzida tanto por meio da análise das cartas trocadas entre os autores aquando da elaboração de Capitalismo & Esquizofrenia, quanto da leitura das notas compiladas por Guattari (2006) nessa mesma época, pode contribuir sobremaneira para o trabalho de pesquisadores/as interessados/as em operar metodologicamente a partir do aporte teórico-conceitual deleuziano e/ou deleuzo-guattariano no campo educacional.

Na década de 2000, constatou-se um sensível aumento das produções educacionais que passaram a se valer da companhia de Gilles Deleuze e Félix Guattari (Vinci & Ribeiro, 2018). Muitos, interessados em romper com os paradigmas presentes na área, resgataram a noção de experimentação para modificar o campo, defendendo que se tornou imperativo “buscar outras maneiras de sentir e pensar a pesquisa, experimentando outras imagens, uma vez que aquelas que já são conhecidas podem já não funcionar” (Hillesheim et al., 2009, p. 216). Porém, qual experimentação buscam? Aquela mesma que restou calada por um “fracasso mais profundo”? Ou aquela outra, carregada de prudência, que teria aberto uma possibilidade para que Deleuze e Guattari dessem um “passo à frente”? Visando adentrar tais questões, este artigo pretende apresentar um panorama das apropriações dessa ideia de experimentação pela pesquisa educacional brasileira contemporânea para, na sequência, aprofundar-se na discussão sobre a relação das noções de prudência e experimentação em Capitalismo & Esquizofrenia. Para tanto, iremos nos debruçar sobre o método de trabalho próprio de Deleuze e Guattari, buscando extrair problematizações metodológicas que poderão ser estratégicas aos pesquisadores, no que tange aos modos de enfrentamento de problemas, em educação.

2. Alguns Movimentos na Pesquisa Educacional: Experimentações

Em meados da década de 1990, nas pesquisas educacionais, surgiu um interesse em realizar experimentações de pensamento em companhia das obras de Deleuze, escritas ou não em parceria com Guattari, afora tantos outros autores que integraram o rol de pensadores denominados de “pós-estruturalistas”. Conforme adentramos na década de 2000, Deleuze e Guattari ganham destaque e passam a inspirar abordagens metodológicas cada vez mais radicais (Vinci & Ribeiro, 2015). É nesse contexto que Eduardo Passos, Virginia Kastrup, e Liliana de Escóssia, por exemplo, lançam em 2009 o livro Pistas do Método da Cartografia (2012), obra seminal na qual seus autores constroem ferramentas metodológicas envolvendo o aparato teórico-conceitual de Deleuze e Deleuze-Guattari. Essa obra, hoje referência para os pesquisadores tanto da educação quanto de outros campos, surge portando uma incitação à produção de movimentos de experimentação. À guisa de exemplo, nos autores supracitados, encontramos o seguinte excerto:

Daí o sentido tradicional de metodologia que está impresso na própria etimologia da palavra: metá-hódos. Com essa direção, a pesquisa é definida como um caminho (hódos) predeterminado pelas metas dadas de partida. Por sua vez, a cartografia propõe uma reversão metodológica: transformar o metá-hódos em hódos-metá. Essa reversão consiste numa aposta na experimentação do pensamento - um método não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. (Passos et al., 2012, p. 10)

Experimentação como atitude, não como método pura e simplesmente. Uma atitude que ousa afrontar as velhas metodologias e balizas do fazer científico, sobretudo ao propor que o importante não é a apreensão/reflexão sobre o objeto, mas a intervenção em processos. Cartografar, como dizem os autores (Passos et al., 2012), é seguir ou acompanhar processos. Não há caminho (hódos) seguro, há apenas um titubeante caminhar ou, em outros termos, há apenas experimentação.

Pensar a pesquisa educacional em termos de experimentação, para os autores supramencionados, permitiria compreendê-la em termos de potência, levando em consideração apenas aquilo que ela é capaz de realizar ou de produzir ao se conectar com tantas outras coisas. Coisas que não se encontrariam em um deslumbrante alhures, ou em um futuro por vir, mas na trivialidade do aqui e agora. Passaríamos, assim, a conceber a pesquisa de modo imanente, abdicando de julgá-la por meio de parâmetros científicos transcendentes ou de valores universais. Haveria toda uma reconfiguração da área, possibilitada por esses movimentos de experimentação, produzida a partir da emergência de uma nova abordagem do ato de pesquisar. Pesquisar não implicaria mais responder a perguntas de modo a se atingir um objetivo exterior, mas criar questões no encontro com o trivial educacional, com o seu tão inescrutável presente.

Realizar uma experimentação, por conseguinte, exigiria romper com os universais preponderantes na área, responsáveis por denegrir o presente e louvar um promissor futuro no qual certos valores supostamente acabarão por se concretizar. As pesquisas que seguem tais universais limitar-se-iam a concordar com ou discordar da palavra de ordem vigente: ou se aceita, por exemplo, que o papel da escola é formar cidadãos críticos ou se recusa essa premissa. Restam reféns, portanto, de duas forças, de ordem marcadamente metafísica, presentes na área e que movimentam as palavras de ordem do campo. A primeira, defensora do progresso educacional e de caráter marcadamente cientificista, prega a necessidade de, por meio da implementação de inovações técnicas, “arrancar das trevas a horda de indivíduos ignorantes” (Aquino, 2015, p. 357). A outra, por sua vez, de acento mais pragmático, procura convocar:

os educadores por meio de comandos não mais amparados cientificamente, nem enredados no sonho de autoatualização, mas engajados à forja de um suposto bem comum educativo que a todos abarcaria. Para seus signatários, trata-se de conduzir as massas educacionais - agora não mais ignorantes, mas ingênuos e úteis - a um estado de consciência tal que elas pudessem se insurgir, por conta própria, contra as arbitrariedades desse mundo. (Aquino, 2015, p. 357)

Ambas as forças atuariam na domesticação do pensamento, ao elegerem os objetos passíveis de serem ou não pensados, bem como os horizontes de problematização. Instauram, portanto, uma “cultura metafísica no seio das práticas educacionais” (Aquino, 2015, p. 359).

Podemos afirmar que tal cultura metafísica teria sido a responsável por produzir um consenso investigativo no campo. Fazer pesquisa em educação, para aqueles inebriados por uma ou outra das forças descritas acima, implicaria discutir certas temáticas - currículo/conhecimento, metodologia de ensino, sujeito-aluno, sujeito-professor, relação professor-aluno, didática, ensino, aprendizagem, gestão, etc. - à luz de certas metodologias ou a partir de certos problemas já configurados socialmente (Ribeiro, 2011).

A fim de se libertarem desses universais, tais estudos procuram conduzir suas experimentações lançando mão de novas e ousadas metodologias. Deflagram-se, pois, dois movimentos mais acentuados. No primeiro deles, mobilizam-se métodos que, na maioria das vezes, não correspondem àquelas ferramentas metodológicas tradicionais disponíveis na área. De acordo com Lívia Cardoso e Marlucy Paraíso (2013), “acabamos nos ancorando em ‘modelos de pesquisa’ já consagrados em outras abordagens teóricas (...). Dizemos então que a metodologia usada é a etnografia, a observação participante e até mesmo a utilizar um jargão como ‘pesquisa qualitativa’” (p. 272). Na condição de métodos estrangeiros, estes visariam trazer à baila outra possibilidade de ação sensível do pesquisador.

No segundo movimento observado, os modelos apresentam-se como inusitados e portam uma denominação singular: cartografia, análise do discurso, genealogia, e assim por diante. São as teorias e métodos forjados a partir do pensamento de filósofos como Michel Foucault, Gilles Deleuze e outros. As balizas teórico-metodológicas, como nota outra autora (Costa, 2007), são secundárias em relação à busca por novos modos de olhar os problemas do campo.

Coleções como Caminhos Investigativos (Costa, 2007) e Cadernos de Notas (Heuser, 2011), ambas ligadas a grupos de pesquisa agenciados com o referencial extraído de autores como Foucault, Deleuze e Deleuze-Guattari, carregam consigo essa impressão: de que não importa o método, mas a sensibilidade do(a) pesquisador(a). A ciência almejada por Cardoso e Paraíso (2013) é dita alquimista, por exemplo, pouco interessada em ferramentas rígidas, com fronteiras científicas bem delimitadas e mais preocupada em vivenciar os deslizes, ou “as múltiplas possibilidades de caminhar” (p. 274). Se algumas ferramentas possibilitam esse deslize, sejam elas usuais para os(as) demais pesquisadores(as) ou não, tanto melhor. Uma imagem outra do pesquisar, pois. Esta última, contudo, não surge como mero contraponto em relação àquela mais tradicional; trata-se, antes, de outro modo de se orientar no espaço da pesquisa, de outro movimento que busca criar os seus próprios problemas ao invés de recebê-los prontos do campo da cultura, abrindo assim a sensibilidade do pesquisador para outras experiências de pensamento. A experiência da pesquisa seria validada pelos próprios percalços do pesquisar, pelos caminhos trilhados por um(a) pesquisador(a), ou, em outros termos, pelas experimentações empreendidas.

3. Experimentações a Dois

Em O que é a Filosofia?, derradeira obra de Deleuze e Guattari (1992), os autores não titubeiam ao afirmar que

pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está fazendo - o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes que ela. O que se está fazendo não é o que acaba, mas menos ainda o que começa. (p. 143)

A experimentação, tomada como uma espécie de sinônimo do próprio pensar, seria a expressão de um exigente e constante processo inventivo. Exigente uma vez que, para haver experimentação, é necessário entrega, porém uma entrega de outra ordem. Para Deleuze (2010), convém lembrar, só pensamos coagidos, pressionados por um signo violento que nos arrasta e nos leva a pensar, ocorrendo o mesmo com a experimentação3. Não experimentamos movidos por um desejo mais profundo ou algo similar; pelo contrário. A experimentação ocorre quando menos esperamos, sem aviso de qualquer espécie e sem nos conceder a chance de racionalizar sobre aquilo que nos atravessa, tratando-se, pois, de algo involuntário. Por isso exige-se entrega, uma entrega absoluta ao acaso, de forma a nos tornamos dignos dos signos que nos violentam.

Por não possuir começo e tampouco fim, a experimentação assume ares de um processo contínuo e que não pode cessar. Ao adentrarmos um fluxo, disparado após o violento e aleatório encontro com um signo, podemos nos deixar levar ou estancar o intempestivo fluxo que nos arrasta, abrindo novas conexões e novos caminhos para o pensamento. Caso o estanquemos, deixamos de experimentar. “A experimentação é sempre o que se está fazendo”, dizem-nos Deleuze e Guattari (1992, p. 143), jamais o que fizemos ou o que faremos. A experimentação não ocorre no passado, não se vale de experiências previamente formatadas e racionalizadas para se concretizar; tampouco no futuro, não podendo ser premeditada. Ocorre em ato e, enquanto não cessa, carrega consigo certo potencial vitalizador. Convém tomar certo cuidado, pois, como nota Deleuze (2003), a experimentação vital pode acabar tornando-se mortífera, uma espécie de tentativa suicida:

A experimentação vital tem lugar quando uma tentativa qualquer que empreendemos se apodera de nós e instaura cada vez mais conexões, nos abre a outras conexões: esta experimentação pode implicar uma espécie de auto-destruição, pode utilizar produtos auxiliares ou estimulantes, tabaco, álcool, drogas. Não é uma tentativa suicida desde que o fluxo se volte sobre si mesmo, desde que sirva para conjugação de diferentes fluxos, sejam os riscos quais forem. A tentativa suicida, pelo contrário, ocorre quando tudo se volta sobre esse único fluxo: “minha” dose, “minha” seção, “meu” copo. Isto é o contrário da conexão, é a desconexão organizada. Em um lugar de um “motivo” que serve para verdadeiros temas e atividades, temos o desenvolvimento único e plano, como em uma história de investigação estereotipada, aonde a droga só é para drogar-se, conduzindo a um suicídio cretino. (p. 140)

Nos deparamos com a tragicidade imanente a tais operações. A disposição aqui exigida deve implicar uma entrega ativa, por meio da qual faz-se necessário escolher as melhores conexões abertas pela torrente vertiginosa da experimentação. Mas qual o critério dessas escolhas? Ora, a própria vida. Levando-se em consideração que a experimentação carrega consigo certo traço vitalista, a escolha da conexão deve considerar o quanto ela aumenta ou diminui nossa potência4. Eis a singularidade de uma entrega ativa, pois somente por meio dela saberemos o melhor modo de prolongar o fluxo intempestivo da experimentação.

Como proceder, portanto, diante desse cenário dilemático? Se transmutarmos a experimentação em um método, racionalizando sobre o seu processo, corremos o risco de estancar o seu fluxo. Se nos entregamos cegamente a tal processo, de modo a perdermos em algum momento aquele elemento ativo, podemos acabar mortos ou coisa que o valha. Para além dessas questões ético-políticas abertas por essas problematizações, indagamo-nos: em que medida tais implicações poderiam afugentar os pesquisadores interessados em empreender experimentações de pensamento em suas pesquisas? A fim de explorarmos essa problemática, julgamos relevante resgatar a experiência de pesquisa própria de Deleuze e Guattari.

Os autores franceses iniciaram sua amizade por meio de um intenso intercâmbio de notas e missivas. Quando se conheceram, apresentados por Jean-Pierre Muyard, os ventos de maio de 1968 ainda se faziam sentir. Respirava-se entusiasmo e rebeldia, qualquer contestação era bem-vinda e todo e qualquer encontro benfazejo. Muitas das ruas de Paris guardavam a memória de extintas barricadas, em alguns portões de fábrica ainda se escutavam os silenciosos gritos dos grevistas e, em uns tantos muros, as palavras de ordem do período ainda restavam preservadas. Em suma, havia certo romantismo no ar. Foi sob essa atmosfera que Deleuze e Guattari, seres que viviam “em duas galáxias diferentes” (Dosse, 2010, p. 13), se encontraram.

Deleuze, convalescente, recuperava-se de uma penosa cirurgia que havia lhe custado um pulmão e lutava ardentemente contra o alcoolismo, esse velho conhecido seu. Descansava em Limousin quando Muyard lhe apresentou Guattari, militante trotskista e ex-aluno/analisando de Jacques Lacan. Maio de 68 havia sido, para ambos, uma espécie de divisor de águas. Foi o momento, conforme afirmaram anos mais tarde, no qual a sociedade viu “o que ela continha de intolerável” e viu “também a possibilidade de outra coisa” (Deleuze, 2016, pp. 245-246). Não tardaram para se corresponder e, em meio a isso, construíram uma bonita amizade. Na primeira carta enviada por Deleuze, datada de 13 de maio de 1969, o pensador francês assim iniciou o diálogo: “Obrigado pela sua carta. Também sinto que somos amigos antes mesmo de nos conhecermos” (Deleuze, 2018, p. 35).

Deleuze, naquele momento, havia escrito uma série de importantes livros sobre história da filosofia, uma gama de estudos pontuais sobre literatura e duas monografias que gozaram de relativo sucesso, Diferença e Repetição e Lógica do Sentido. Encontrava-se, contudo, há muito num impasse. Em 1966, após o lançamento de O Frio e o Cruel, texto dedicado à obra de Sacher-Masoch, Deleuze demonstra interesse em criar “um novo estilo ou uma outra forma de filosofia” (Deleuze, 2018, p. 19). Esse desejo tomaria corpo com as obras monográficas posteriores, estudos estes prestigiados por pensadores da envergadura de Michel Foucault, o qual, em resenha intitulada Theatrum Philosophicum, chegou a asseverar: “mas um dia, talvez, o século será deleuziano” (Foucault, 2008, p. 230). Mas mesmo essas obras tão elogiadas não eram consideradas por seu autor como suficientemente inventivas, por ainda flertarem com um velho estilo filosófico. Prestavam-se a descrever o novo, mais do que a produzi-lo. Faltava-lhes algo, ou melhor, alguém.

Eu tentava nos meus livros precedentes descrever um certo exercício do pensamento. Mas descrevê-lo não era ainda exercer o pensamento desse modo. (Analogamente, gritar “viva o múltiplo” não é ainda fazê-lo, é preciso fazer o múltiplo. E também não basta dizer “abaixo os gêneros”, é preciso escrever efetivamente de tal modo que já não existam “gêneros”, etc.). Eis que, com Félix, tudo isso se tornava possível, mesmo que falhássemos. (Deleuze & Parnet, 2004, pp. 27-28, grifos nossos)

O encontro com Guattari abriu um campo de possibilidades inventivas, permitindo a Deleuze entregar-se aos fluxos abertos por seu amigo e elaborar, a partir de seu encontro, aquela nova imagem de pensamento ou o novo estilo descrito em suas obras anteriores. Entusiasmados, ambos começaram a se corresponder, sem saber ao certo o que resultaria dessa parceria recém-formada e cientes do risco que corriam.

Guattari, naquele momento, dedicava-se com afinco à clínica La Borde e possuía poucos escritos publicados - sendo aquele mais recente Máquina e Estrutura, ensaio carregado de sotaque lacaniano. Conforme relatou posteriormente, tinha enormes dificuldades para escrever. Faltava-lhe o rigor e a habilidade organizatória de seu amigo: “a mesma bagunça novamente. Eu tenho tanta inveja da sua habilidade em organizar e classificar as coisas!” (Guattari, 2006, p. 246, tradução nossa). Não obstante isso, Deleuze reconhecia em seu parceiro um “prodigioso inventor de conceitos selvagens” (Deleuze, 2018, p. 56). Essas diferenças foram fulcrais para a empreitada levada a cabo por ambos os autores, pautada não em uma relação de complementaridade, na qual um deveria suprir o déficit do outro, mas em uma relação de outra ordem, afectiva. Cada um portava um intenso fluxo, no qual o outro podia navegar e se deixar arrastar.

Começaram com uma singela troca de cartas, na qual as regras do jogo foram delineadas. Deleuze, logo de início, solicita que as fórmulas da cortesia fossem abandonadas em prol daquelas da amizade, por permitirem “a um dizer ao outro: você está brincando, eu não entendo, não está tudo bem, etc.” (Deleuze, 2018, p. 36). Guattari, embora argumente certa dificuldade em escrever, escreve longas e densas cartas, nas quais expõe as teorias e os conceitos que inventa e dirige perguntas e reclamações de muitas ordens. Deleuze, mais comedido, solicita explicações pontuais, pede esclarecimentos sobre um ou outro caso relatado e, algumas poucas vezes, faz sugestões.

Consciente da impossibilidade de responder a seu amigo com a velocidade exigida por este, Deleuze sugere a Guattari escrever uma espécie de diário de pensamento. Essas notas, escritas ao longo de toda a parceria, foram compiladas e publicadas sob o título The Anti-Oedipus Papers (Guattari, 2006), uma compilação com mais de 500 páginas de escritos de tamanhos variados. Nestes escritos encontramos uma gama vasta de materiais, desde as usuais perguntas e reclamações até singulares descrições de sonhos - ao final da escrita de O Anti-Édipo, Guattari passou a ser “analisado” por Deleuze e sua esposa, Fanny Deleuze (Guattari, 2006).

Deleuze procurava atender à ânsia de seu amigo como lhe era possível, sempre de modo cortês e tentando apaziguar a selvageria escritural guattariana. Certa vez, respondeu: “As suas notas, novamente, são extremamente belas e eu, cada vez mais, eu sou mais lento. Isto não deve lhe perturbar, isso me acontece sempre, isso sempre me acontece” (Deleuze, 2018, p. 46). E em outra ocasião, após ser informado da insistência de Lacan em ler os manuscritos d’O Anti-Édipo, chegou a aconselhar Guattari: “você deve, de modo lisonjeiro, agradar ao doutor” (Deleuze, 2018, p. 47). Deleuze aconselha Guattari, mais do que o esclarece. Esse foi um dos modos encontrados pelos pesquisadores de evitarem qualquer coação, qualquer primado de saber. Deleuze não ensinava nada, tampouco Guattari clinicava. Pelo contrário, conforme lemos as cartas e as notas que nos foram legadas, percebemos o quanto seus gestos eram fluidos.

Era uma relação intensa, carregada de atritos e, provavelmente, exaustiva. Deleuze reclamava constantemente do cansaço que sentia, e Guattari, em suas notas, costumava tecer longas reclamações sobre a pouca afeição à arte da escrita por parte de Deleuze. Foi um encontro alegre, contudo. Dosse (2010) relata que muitos daqueles que conviveram com a dupla de amigos naquele período se espantavam com o quanto Deleuze e Guattari gargalhavam ao trabalharem juntos.

Em certo momento - meados de 1971, conforme datação das notas deixadas por Guattari - a escrita cessa. Ao menos por parte de Deleuze. Guattari, incansável, não deixa de rascunhar ideias, de ler e comentar pequenos excertos de clássicos da psicanálise - sobretudo Freud -, de compartilhar relatos de casos clínicos vivenciados em La Borde e expor suas preocupações de ordem política, além de - obviamente - brigar com seu interlocutor. Algumas brigas, triviais, assumem elevados tons. “É isso que você não entende!”, chega a bradar Guattari (2006, p. 177, tradução nossa) em uma ocasião na qual a discussão envereda para a análise de certos movimentos políticos franceses, maoístas em sua maioria, que tomavam corpo no período. Parece-nos que Deleuze não via problemas na erupção de novos grupos políticos organizados, enquanto Guattari enxergava nessas organizações uma complicação: pautados por uma ideologia extremamente dogmática, esses grupos dificilmente iriam se abrir para pautas ditas minoritárias. A briga durou semanas, tendo em vista a quantidade de escritos elaborados por Guattari no período. Não sabemos como terminou a peleja, mas esse era o modo como trabalhavam a dois. Uma intensa verborragia, um fluxo de escrita que não parece ter fim, de um lado; e, do outro, um silêncio ensurdecedor. É difícil para Deleuze acompanhar seu amigo, que não cessa de brigar e de lhe cobrar respostas: “é verdade que eu não tenho escrito mais nada atualmente, mas eu leio ou releio suas notas de uma parte e, por outra parte e ao mesmo tempo, comento-as” (Deleuze, 2018, p. 49).

O ritmo do trabalho modifica-se sensivelmente em certa altura de 1971. Guattari continua com sua louca escrita, entregando o resultado obtido diariamente nas mãos de Fanny Deleuze, que as leva ao escrutínio de seu marido. Gilles Deleuze lê e tece breves comentários que, doravante, passam a ser discutidos com Guattari em reuniões semanais de algumas poucas horas. Raramente concordavam com alguma coisa plenamente, sendo a única exceção, talvez, acerca de Proust, e mesmo quando pareciam estar de acordo, normalmente era apenas decorrência de algum equívoco. Em ocasiões diversas, passado o tempo do trabalho conjunto de O Anti-Édipo, cada qual chegou a comentar:

inventamos um certo número de palavras, de expressões, etc. E algumas vezes nos aconteceu, ao final de dois ou três anos de uso corrente de uma dessas palavras, de descobrir que o outro não atribuía a ela exatamente o mesmo sentido. Era algo que nos fazia rir e que sempre assumimos, pois, no fundo, o que contava não era estarmos de acordo. Nosso problema não era esse, mas sim chegar a um acordo sobre nossas ferramentas conceituais. (Guattari, como citado em Uno, 2016, p. 43)

Nunca estivemos no mesmo ritmo, sempre em inadequação: o que Félix me dizia, eu compreendia-o e podia servir-me disso seis meses mais tarde; o que eu lhe dizia, ele compreendia-o imediatamente, demasiado depressa para o meu gosto, estava já noutro lugar. Por vezes escrevemos sobre a mesma noção. E apercebemo-nos em seguida que não a apreendíamos de todo da mesma forma: foi o caso de “corpo sem órgãos”. (Deleuze & Parnet, 2004, p. 28)

Cada qual se deixou levar pelo fluxo do outro, permitindo-se uma entrega ativa, seletiva, conforme os sabores abertos pelas conexões vivenciadas. Não por outro motivo, tratou-se de uma relação dissensual. A experimentação, porém, findou e o resultado desta, O Anti-Édipo, acabou sendo considerado por seus autores vítima de um fracasso profundo (Deleuze & Guattari, 1995), um livro “cheio de concessões, entulhado de coisas ainda eruditas e que se parecem com conceitos” (Deleuze, 2007, p. 18), ou, em outros termos, um livro “por demais acadêmico” (Deleuze, 2007, p. 16). Seria o fracasso vislumbrado por seus autores uma decorrência do término da experimentação em si, e por esse motivo Deleuze tanto insistiu na continuidade do trabalho, ou por uma entrega cega demais que acabou levando-os para searas suicidas - as ditas concessões? Difícil responder a essas questões, mas surpreende como, tempos depois, o conceito de prudência surgiria na obra conjunta de Deleuze e Guattari em uma relação visceral com a noção de experimentação.

4. A Desmedida Prudência

No platô intitulado 28 de novembro de 1947 -Como criar para si um corpo sem órgãos, Deleuze e Guattari (2007) escrevem:

Mas por que este desfile lúgubre de corpos costurados, vitrificados, catatonizados, aspirados, posto que o CsO é também plano de alegria, de êxtase, de dança? Então, por que estes exemplos? Por que é necessário passar por eles? Corpos esvaziados em lugar de plenos. Que aconteceu? Você agiu com a prudência necessária? Não digo sabedoria, mas prudência como dose, como regra imanente à experimentação: injeções de prudência. Muitos são derrotados nesta batalha. (p. 11)

É curioso como a vitalidade pulsante de Corpo sem Órgãos, passível de ser atingida por ousados e impessoais movimentos de experimentação, não deixa de portar riscos e, muitas vezes, parece surgir dos lugares mais imprevisíveis: os corpos lúgubres e/ou esvaziados. Esses corpos não são evocados como contraexemplos de maneiras de se portar, mas apontam para os riscos do caminho ou para o elemento trágico inerente a toda experimentação, ou seja, para a necessidade de considerarmos certa prudência como regra imanente à experimentação.

As experimentações deleuzianas e deleuzo-guattarianas passam por um processo involutivo - “a experimentação é involutiva, o contrário da overdose” (Deleuze & Parnet, 2004, p. 42) -, no qual o “Eu” e suas estruturas são abolidas em prol de algo ainda não pensado ou imaginado. Não obstante alegre, esse não parece ser um movimento bonito, tampouco agradável. Não por outra razão, os autores defendem que é preciso certo apego ao “negativo” da experimentação, atentando para o seu avesso. É um modo de nos lembrar, talvez, dos fascismos do “Eu”. Tendemos a buscar, em nossas tentativas de experimentação, o mais simples e o mais familiar, transmutando aquilo que é aberrante em algo palatável à razão ou aos sentidos. Nessa espécie de tradução, perdemos a experimentação, cessando o fluxo que lhe é próprio. Os corpos esgotados, esvaziados, e assim por diante, dão mostras de uma potência impessoal que não é capaz de ser traduzida, que dificilmente pode ser acessada de maneira voluntária. É quando deixamos de racionalizar, quando atingimos o limiar do nosso “Eu” ou os limiares do nosso corpo orgânico, que passamos a sentir essa estranha potência involuntária. Momento efêmero, além de arriscado.

A experimentação é o jogo próprio daqueles que procuram desaparecer com o seu “Eu” e procuram se entregar aos movimentos terríveis perceptíveis apenas quando padecemos de certa involução. Procedimental, dado seu caráter informe e pouco prescritivo, a experimentação oferece riscos para aqueles que ousam enfrentá-la. A involução pode chegar a um ápice no qual não restaria nada senão vidas apáticas, entregues a um nada de vontade. Uma vez que podem realizar-se boas ou más experimentações, algumas, inclusive, resultando mortais, Deleuze e Deleuze-Guattari insistem na questão da prudência. Mas a qual prudência ambos se referem?

Estamos, com certeza, longe da tradição moralista que apregoa ser a prudência uma espécie de deliberação sobre os melhores meios para se atingir valores transcendentes - a felicidade, por exemplo. Por qual razão assim o afirmamos? Em primeiro lugar, ao ser apresentada como uma regra imanente à experimentação, a prudência emerge, em Deleuze e Guattari, como algo destituído de qualquer finalidade, não visando, portanto, à felicidade ou algo que o valha. A prudência, ademais, só é acionada em meio às experimentações que empreendemos, lhes sendo imanente e não as antecedendo. Graças a tal conceito, o experimentador pode manter sua entrega ativa, avaliando continuamente as melhores conexões e perseguindo os fluxos mais potentes de pensamento. Por conta dessa simples noção - a prudência -, indeterminada e inútil, a experimentação deixa de se equivaler com a simples experiência. A experiência, insistem Deleuze e Guattari (1992), não se confunde com a experimentação: a primeira seria um saber cristalizado, extraído após a realização de uma ou outra experimentação, e pode surgir como um entrave para o processo experimental. Não obstante, prosseguem os autores, “nenhuma criação existe sem experiência” (Deleuze & Guattari, 1992, p. 166). A experimentação está sempre em desacordo com o campo da experiência, uma vez que, enquanto esta diz respeito ao estado de coisas constituído de véspera, aquela busca criar novos espaços, porém usufruindo da matéria-prima conferida pelo espaço de experiência em vigor. Sem prudência, portanto, não há experimentação, apenas experiência. E esta, apesar de importante, por si só não é capaz de promover o novo. A questão que resta, porém, é: como pensar essa prudência em termos procedimentais ou metodológicos?

No derradeiro tomo de Capitalismo & Esquizofrenia, podemos encontrar algumas discussões capazes de auxiliar-nos na busca por essa prudência como regra imanente à experimentação. Lembremo-nos, por exemplo, do encerramento da introdução de Mil Platôs, intitulada Rizoma, na qual Deleuze e Guattari (1995) argumentam:

Escrever a n, n-1, escrever por intermédio de slogans: faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Nunca suscite um general em você! Nunca ideias justas, justo uma ideia (Godard). Tenha ideias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos. Seja a pantera cor-de-rosa e que vossos amores sejam como a vespa e a orquídea, o gato e o babuíno. (p. 36)

A exigência de uma escrita que opere por slogans busca conferir certa velocidade aos escritos deleuzianos e deleuzo-guattarianos. Trata-se de um recurso estilístico importante, uma vez que conferiria um fluxo específico ao texto. Sendo um fluxo dentre outros, a escrita pode ou não se conectar com tantas outras coisas, pode ou não afetar o seu leitor. Tal concepção não é nova, como podemos observar em entrevista concedida a Raymond Bellour, por ocasião do lançamento de O Anti-Édipo, na qual Deleuze comenta que haveriam duas maneiras de ler um livro: na primeira, buscar-se-ia significar o escrito, construir um significado interno à economia vocabular do livro; na segunda, procurar-se-ia conectar o livro ou o escrito com o seu fora, com o não-livro, com o não escrito (Deleuze, 2018). Essa segunda maneira de ler implicaria o abandono da busca pelos significados ocultos de cada palavra, e na adoção de uma leitura desinteressada. Deleuze compara o leitor ideal de sua filosofia com o apreciador de poesia, aquele que ao ler apenas se pergunta: isso passa ou não? Consigo devorar ou não? Para o filósofo francês, “se passar, aquele que lê não irá perguntar pelo significado, o que é esse conceito, o que significa ‘fluxo’, ‘corpo sem órgãos’, a não ser que lhe diga alguma coisa” (Deleuze, 2018, p. 211).

Tempos depois, no diálogo travado com Claire Parnet, Deleuze retornaria a essa questão para argumentar o seguinte:

Mas uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro como se ouve um disco, como se vê um filme ou uma emissão televisiva, como se recebe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija um respeito especial, uma atenção de outro tipo, vem do passado e condena definitivamente o livro. Não há nenhuma questão de dificuldade nem de compreensão: os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens. São intensidades que vos são ou não convenientes, que passam ou não passam. Pop’filosofia. Não há nada a compreender, nada a interpretar. (Deleuze & Parnet, 2004, pp. 14-15)

Deleuze, desse modo, parece exigir uma leitura apressada e desinteressada, mais atenta aos sentidos que à razão, porém ao mesmo tempo voraz, uma vez que para que haja conexão será necessária uma urgência, um problema capaz de incitar-nos a utilizar um texto. Um bom livro é aquele que nos afeta, ao nos conectar com problemas e questões que não são realmente as do autor, ao invés daquele que simplesmente busca nos convencer. Mil Platôs, por conseguinte, busca trabalhar com uma escrita produzida com slogans. Obviamente há riscos: risco, por exemplo, de interpretar demais cada um desses slogans, ruminá-los até torná-los algo reconhecível e racionalmente aceitável ou, pior, transmutar certas palavras de ordem em ídolos a serem venerados e, por isso, passíveis de justificar as piores barbáries. Algo que, de certo modo, parece ter acontecido com O Anti-Édipo, considerado por seus autores como vítima de um fracasso mais profundo. A prudência, por conseguinte, manifestou-se sob uma forma de lidar com as experimentações textuais, tornando-as mais velozes e fluidas, abertas para conexões que vão além do livro. Nesse sentido, destoa do modo de experimentação empreendido em O Anti-Édipo, cujo grande objetivo era atacar Édipo e suas estruturas.

5. Considerações Finais

Experimentação e prudência, um par imanente e dissonante. Sem as experimentações, tomadas por Deleuze e Guattari como sinônimos de pensamento, não há criação de outros possíveis; porém, qualquer experimentação deve exigir prudência para não recair em uma experiência vulgar ou mortífera. Quais as implicações dessa discussão para aqueles interessados em operar com o aporte teórico-conceitual deleuziano e/ou deleuzo-guattariano em suas pesquisas? Em primeiro lugar, não há fórmula prévia para a experimentação, ela não deve, portanto, ser confundida com métodos de nenhuma ordem - ainda que seja o dito método cartográfico. A experimentação só existe em ato e não há início ou fim, tratando-se de um processo infinito, um fluxo incessante. Esse fluxo, por sua vez, exige prudência para continuar a operar. Tal qual seu par conceitual, a prudência também não pode ser definida previamente, mas antes diz respeito a um estado de alerta para os fluxos nos quais adentramos, uma desconfiança. Sobre ela, certa vez, argumentou Guattari:

a questão da prudência surgiu precisamente em reação às mitologias espontaneístas de uma certa época. Não se tratava de tudo e qualquer coisa, de improvisação, do “liberou geral”, etc. É muito mais a ideia de se levar em consideração tanto a riqueza quanto a precariedade desses processos [experimentação]. (Guattari, como citado em Uno, 2016, p. 18)

A prudência, por fim, diz respeito a uma atitude vital fundamental, única capaz de permitir ao pensamento-experimentação continuar abrindo sendas e seguindo com seu fluxo interminável rumo ao desconhecido, rumo à criação de outros possíveis.

O trabalho de escrita de Deleuze e Guattari é indissociável das trocas de cartas que lhes foram contemporâneas, trazendo à cena a necessidade de invenção de um modo de pesquisar que faz da experimentação-prudência não uma armação dialética, da ordem dos paradoxos, mas uma coexistência de forças em constantes movimentos de incitação. Assim, longe de tomarmos experimentação e prudência como um jogo de oposições, essa copresença ou covalência de forças nos leva a deflagrar um movimento de lenta voragem nesses modos de pesquisar, de escrever, de pensar e sentir, enfim. Nesse sentido, resgatar essa discussão pode incitar os pesquisadores em educação interessados na filosofia de Deleuze e Deleuze-Guattari à construção de um ethos, mais do que de um método, um ethos que nos torne dignos do pensamento e seu violento fluxo.

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1 As cartas trocadas por Deleuze e Guattari, bem como as entrevistas concedidas por ambos após a publicação do primeiro tomo de Capitalismo & Esquizofrenia, expressam essas perturbações. Em carta de 1976, por exemplo, em razão dos ataques lançados a ambos em artigos de jornais, vemos Deleuze tentando acalmar seu companheiro, insistindo na continuidade do projeto Capitalismo & Esquizofrenia. Um novo livro, argumenta Deleuze (2018), os desobrigaria de responder a qualquer ataque, uma vez que possuiria uma outra economia discursiva e, assim, conclui o filósofo, “a relação de força com os jornais é então revertida a nosso favor” (Deleuze, 2018, p. 55). Ao invés de responder aos ataques sofridos, negativamente, portanto, Deleuze insiste na necessidade de experimentarem um caminho crítico outro, afirmativo.

2O impacto dessa obra no Brasil também não pode ser desconsiderado; para o leitor interessado nos modos de circulação das ideias antiedípicas em nosso país, recomendamos o trabalho de Vinci e Ribeiro (2015).

3Deleuze, ao propor sua teoria dos signos, pretende romper com a concepção platônica de que haveria uma predisposição em nós ao ato de pensar. Diz-noso autor, em Proust e os signos (Deleuze, 2010): “Há sempre a violência de um signo que nos força a procurar, que nos rouba a paz. A verdade não é descoberta por afinidade, nem com boa vontade, ela se trai por signos involuntários. O erro da filosofia é pressupor em nós uma boa vontade de pensar, um desejo, um amor natural pela verdade. A filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem perturbam. (...) As ideias da inteligência só valem por sua significação explícita, portanto convencional. Um dos temas em que Proust mais insiste é este: a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pensamento. (...) A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro. O acaso dos encontros, a pressão das coações são os dois temas fundamentais de Proust. Pois é precisamente o signo que é objeto de um encontro e é ele que exerce sobre nós a violência. O acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado” (pp. 14-15).

4Aqui podemos sentir o lastro espinosista das discussões deleuzianas sobre experimentação; para uma discussão mais específica sobre tal lastro, remetemos o leitor a Vinci (2018).

Recebido: 29 de Setembro de 2020; Aceito: 06 de Outubro de 2021

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Christian Fernando Ribeiro Guimarães Vinci UEMG. Av. Paraná, 3001. Jd. Belvedere. Divinópolis-MG. CEP: 35501-170 christian.guimaraes.vinci@gmail.com

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