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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187versão On-line ISSN 2183-0452

Rev. Port. de Educação vol.36 no.2 Braga dez. 2023  Epub 18-Dez-2023

https://doi.org/10.21814/rpe.29238 

Artigos Originais

Formação Continuada de Professores para uma Educação Básica Decolonial: Da Crítica à Autoformação Coletiva

Continuous Teacher Training For A Decolonial Basic Education: From Criticism Collective Self-Training

Formación Continua Del Profesorado Para Una Educación Básica Decolonial: De La Crítica A La Autoformación Colectiva

i Universidade Regional de Blumenau, Brasil.

ii Universidade da Região de Joinville, Brasil.


RESUMO

Este estudo integra uma pesquisa realizada junto a um grupo de professores da Educação Básica de uma Rede Municipal de Ensino de Santa Catarina (Brasil), que se reúne de forma periódica e voluntária para a prática de autoformação coletiva. Este grupo despertou nossa curiosidade em investigar: quais aspectos da formação continuada de professores da Educação Básica, discutidos teoricamente, mobilizaram um grupo de docentes à autoformação voluntária coletiva para uma possível educação decolonial? O objetivo é identificar aspectos da formação continuada de professores da Educação Básica que, segundo a discussão teórica deste estudo, poderão proporcionar uma educação decolonial. A pesquisa é qualitativa e os dados foram gerados por meio de narrativas e analisados a partir do paradigma indiciário. Para fundamentar a discussão, Nóvoa centraliza o debate em torno da imprescindível mudança da escola e da docência, e Canário, Imbernón, Garcia, Roldão e Walsh fortalecem a discussão para uma formação outra. Os principais aspectos da formação continuada de professores que podem proporcionar uma educação decolonial envolvem discussões acerca: a) da compreensão da formação como um treinamento; b) da falta de autoria dos professores em sua formação; c) da falta de conexão entre o que é abordado na formação e o que se vive na prática; d) do fato de que as especificidades e contextos são desconsiderados no cenário formativo docente. Assim, a autoformação coletiva pode ser um caminho para a consolidação da identidade docente, a fim de que seja possível estabelecer uma formação autônoma e colaborativa.

Palavras-chave: Autoformação coletiva docente; Formação continuada de professores; Perspectiva decolonial.

ABSTRACT

This study is part of a survey carried out with a group of Basic Education teachers from a Municipal Education Network in Santa Catarina (Brazil), who meet periodically on a voluntary basis to practice collective self-training. This group aroused our curiosity to investigate: which aspects of the inservice education of Basic Education teachers, discussed theoretically, mobilized a group of teachers towards collective voluntary self-training for a possible decolonial education? The aim is to identify aspects of the inservice education of Basic Education teachers that, according to the theoretical discussion of this study, can provide a decolonial education. The research is qualitative and the data were generated through narratives and analyzed using the evidentiary paradigm. To support the discussion, Nóvoa centralizes the debate around the essential change in school and teaching, and Canário, Imbernón, Garcia, Roldão, and Walsh strengthen the discussion towards a different formation. The main aspects of continuous teacher training that provide decolonial education involve discussions about: a) understanding continuous education as mere training; b) the lack of authorship of teachers in their formation; c) the lack of connection between what is covered in training and what is experienced in practice; d) the fact that specificities and contexts are disregarded in the teacher training scenario. Thus, collective self-education can be a path to consolidating teaching identity, so that it is possible to establish autonomous and collaborative training.

Keywords: Collective teacher self-training; Continuous teacher training; Decolonial perspective.

RESUMEN

Este estudio forma parte de una encuesta realizada a un grupo de docentes de Educación Básica de una Red Municipal de Educación de Santa Catarina (Brasil), que se reúnen periódicamente de forma voluntaria para practicar la autoformación colectiva. Este grupo despertó nuestra curiosidad por investigar: ¿qué aspectos de la formación permanente de los docentes de Educación Básica, discutidos teóricamente, movilizaron a un grupo de docentes hacia la autoformación colectiva voluntaria para una posible educación decolonial? El objetivo es identificar aspectos de la formación en servicio de docentes de Educación Básica que, según la discusión teórica de este estudio, pueden brindar una educación decolonial. La investigación es cualitativa y los datos fueron generados a través de narrativas y analizados utilizando el paradigma probatorio. Para sustentar la discusión, Nóvoa centraliza el debate en torno al cambio imprescindible en la escuela y la enseñanza, y Canário, Imbernón, García, Roldão y Walsh fortalecen la discusión hacia una formación diferente. Los principales aspectos de la formación docente en servicio que imparte educación decolonial involucran discusiones sobre: a) entender la formación como mero entrenamiento; b) la falta de autoría de los docentes en su formación; c) la falta de conexión entre lo que se cubre en la formación y lo que se experimenta en la práctica; d) el hecho de que las especificidades y los contextos sean ignorados en el escenario de la formación docente. Así, la autoeducación colectiva puede ser un camino para consolidar la identidad docente, de modo que sea posible establecer una formación autónoma y colaborativa.

Palabras clave: Autoformación docente colectiva; Formación continua del profesorado; Perspectiva decolonial.

1. INTRODUÇÃO

Este estudo integra uma pesquisa desenvolvida junto a um grupo de professores da Educação Básica de uma Rede Municipal de Ensino de Santa Catarina (Brasil), a qual oferece aos docentes momentos de formação e treinamento para assimilar novas concepções teóricas e metodológicas ou o cumprimento de determinações legais oriundas dos responsáveis pelo estabelecimento de políticas públicas da educação. O grupo que se reúne periódica e voluntariamente para a prática de autoformação coletiva docente é constituído de profissionais que possuem mais de cinco anos de atuação na referida Rede, com formação em pedagogia ou licenciaturas específicas, os quais gozam de estabilidade, o que lhes permite estabelecer vínculos mais longevos com as equipes de trabalho e comunidades das diferentes escolas em que atuam. A composição do grupo e o movimento autoformativo se dão em razão dos vínculos profissionais e pessoais estabelecidos, assumindo o propósito de se constituir em um espaço de formação que transcende o que é oferecido pela Rede e pelas escolas em que os profissionais atuam.

Demandas surgidas a partir de práticas vividas no cotidiano estabelecem temáticas e discussões entre pares, o que, além de proporcionar trocas de experiências, fortalece relações dialógicas em cujo âmbito, coletivamente, é possível estabelecer um ambiente de autoformação coletiva. A realização dos encontros tem um formato de Círculo de Cultura em que, conforme Freire (1980), os participantes discutem seus problemas e apontam para ações concretas com o intuito de transformar a realidade. Assim, demandas das práticas dos docentes participantes são problematizadas e refletidas colaborativamente para que seja possível partir para uma intervenção transformadora naquela realidade.

Diante disso, por participarmos deste grupo, houve o despertar de nossa curiosidade em investigar: quais aspectos da formação continuada de professores da Educação Básica, discutidos teoricamente, mobilizaram um grupo de docentes à autoformação voluntária coletiva para uma possível educação decolonial? O objetivo é identificar aspectos da formação continuada de professores da Educação Básica que, segundo a discussão teórica deste estudo, poderá proporcionar uma educação decolonial

A fundamentação teórica inspira-se em Nóvoa (1988, 2002, 2013, 2017, 2019, 2022), que centraliza o debate em torno da imprescindível mudança da escola e da docência. Para o autor, os atuais modelos de escola e de docência encontram-se em degeneração, o que exige um repensar constante da forma como se pratica a docência, passando por sua formação. Diante disso, autores como Canário (1998), García (1999), Imbernón (2011, 2009), Roldão (2007) e Walsh (2007, 2009a, 2009b, 2013) fortalecem a posição de Nóvoa, sinalizando alguns indicativos para uma formação outra.

Ao longo do texto, é possível inferir uma série de críticas a aspectos da formação docente convencional, geralmente oferecida pela Rede, tendo por base a realização de palestras e encontros com formadores externos que debatem concepções teóricas e metodológicas emergentes ou o treinamento dos docentes para o cumprimento de determinações legais deliberadas para o campo da formação docente e ainda para o uso de determinados equipamentos, programas e instrumentos tecnológicos. Estas críticas referem-se especialmente: i) à caracterização da formação como um simples treinamento; ii) à falta de autoria dos professores em sua formação; iii) à pouca relação entre o que é abordado na formação e o que se vive na prática; iv) à desconsideração das características dos contextos da prática docente. Assim, a autoformação coletiva pode ser considerada um caminho para a consolidação da identidade docente, a partir do qual se torna possível estabelecer uma formação outra.

O texto está estruturado da seguinte maneira: após esta introdução, apresentamos a metodologia utilizada; em seguida, estabelecemos uma reflexão em torno da formação continuada partindo dos relatos dos participantes de uma experiência autoformativa coletiva de professores, por meio do paradigma indiciário; partindo disso, provocamos uma discussão em torno do conceito de autoformação e sua possível relação com a formação de professores numa perspectiva decolonial, que vise intervir no exercício da sua docência; e, ao concluir o texto, apontamos uma síntese crítica dos aspectos da formação continuada convencional, o que poderá contribuir à uma educação decolonial, e alguns compromissos assumidos pela prática da autoformação coletiva de professores.

2. METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, cujos dados foram gerados por meio de narrativas orais com dez professores que integram o referido grupo de autoformação, realizadas de forma on-line entre janeiro e março de 2021. Essas narrativas integram um projeto de pesquisa submetido ao Comitê de Ética da Universidade Regional de Blumenau, que o aprovou por meio do Parecer nº 4.810.704. Aos participantes foi encaminhado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual foi assinado por todos. Para este estudo, foram selecionados excertos de cinco participantes, identificados aqui por nomes fictícios. A seleção se deu em razão de dois aspectos que respondem aos interesses apontados na pergunta de pesquisa e no seu objetivo geral que poderão contribuir à uma educação decolonial: identificação de aspectos da formação continuada convencional de professores da Educação Básica através de relatos de professores e a recomendação da autoformação como uma alternativa à formação convencional.

Esses participantes foram questionados sobre os motivos de sua adesão ao grupo, suas impressões acerca da formação inicial e continuada e suas expectativas em relação à profissão. Assim, as motivações que os conduziram ao grupo, além das críticas a modelos e práticas recorrentes na formação continuada ofertada pela aludida Rede de Ensino, é sua percepção da necessidade de uma formação na própria escola e com a participação efetiva dos próprios docentes.

Para Aguiar e Ferreira (2021) uma narrativa é constituída por uma sequência de vivências relacionadas a memórias e a emoções organizadas e selecionadas segundo a pertinência a elas atribuída pelos participantes. Assim, percebemos que a formação do grupo e a presença voluntária de cada componente correspondem não somente a uma necessidade pessoal, mas também a uma ordem coletiva de repensar a própria formação docente. Além disso, mesmo que de forma implícita, notamos a existência de críticas a alguns aspectos da formação continuada convencional oferecida pela Rede. Embora essas críticas não tenham sido descritas de forma clara, foi possível compreender algumas pistas acerca de sua existência e de seu alcance.

Valemo-nos do paradigma indiciário para analisar as manifestações dos participantes da pesquisa. Nesse sentido, para Ginzburg (1989), o paradigma indiciário não se prende ao que é exposto de forma explícita pelo narrador, mas procura, nessas manifestações, indícios imperceptíveis a uma leitura literal do que é dito. Por meio dessa forma de análise de dados, é possível identificar informações a partir de pistas e dados aparentemente pouco relevantes, mas que revelam os sentidos mais complexos e significativos daquela manifestação.

3. FORMAÇÃO CONTINUADA: ANÁLISE CRÍTICA A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA AUTOFORMATIVA COLETIVA

A análise crítica da escola é uma necessidade diante de um modelo que conserva práticas, posturas e formatos adotados há mais de um século e meio. Essa crítica estende-se até mesmo à formação docente, visto que esse modelo tem na atuação dos professores um dos seus pilares. Se o atual modelo de escola se encontra em um estágio de desintegração, conforme nos aponta Nóvoa (2022), processo similar se dá com a profissão docente. Para o autor, é fundamental transformar o modelo de escola, nascido no século XIX, que passou pelo século XX e segue se fragilizando ao longo do século XXI.

Cumpre-nos esclarecer que a questionabilidade e a falibilidade estão no modelo de escola, e não na instituição em si. Assim, considerando o fato de que tanto a escola quanto a docência são imprescindíveis e que é preciso rejeitar o discurso da superação de ambas, torna-se fundamental formular a crítica, para que uma educação e uma docência outras sejam possíveis. A crítica à formação docente, portanto, é parte fundamental do processo de transformação da escola, que já é percebido pelos próprios docentes e revelado por pesquisas, estudos e práticas desenvolvidos por esses profissionais.

Além disso, é preciso dizer que esta mudança deve ser observada em todos os momentos da formação profissional docente, notadamente na continuada, que se dá ao longo da vida profissional. Segundo Imbernón (2011), é característica da formação continuada a constituição de uma análise e uma reflexão críticas da prática docente, repercutindo em escolhas fundamentais ao cotidiano da profissão docente, como a avalição do processo e a revisão de projetos. Se a formação continuada é um campo de fomento à crítica, não é exagero dizer que a própria formação continuada pode e deve ser cenário para críticas.

O momento atual, eivado das consequências trazidas pela pandemia de Covid-19, explicita inúmeras dificuldades da escola e da docência. Aquilo que já vinha sendo anunciado por décadas tornou-se ainda mais visível e inevitável: é preciso transformar a escola e a docência que fazemos. Diante dessa necessidade, surgem inúmeras possibilidades, algumas das quais já pensadas, refletidas e até praticadas por docentes, como é o caso do que se pode observar num grupo de docentes da uma Rede Municipal de Ensino de Santa Catarina, que se reúne periodicamente e de forma voluntária.

Na percepção de Marta, uma das participantes do grupo,

[...] o grupo, além de formação continuada, além de um momento de troca de experiência, é um momento de fortalecimento político [...]. E reforçar o grupo é uma forma de criar um mecanismo pra gente se sentir amparado e autor do que a gente faz em sala de aula. Então, hoje, pra mim, não existe, não existe esse espaço na formação continuada formal que a Rede oferece.

A participante destaca o papel político da composição e participação no grupo como um caminho possível e até necessário à transformação que se espera. Portanto, seria ingênuo imaginar que a adesão ao grupo seja apenas um movimento sem intencionalidades individuais e coletivas. Ao contrário, os que nele estão são movidos por demandas como a apontada por Marta: a autoria. A autoria já revela um caráter político fortemente relacionado à autonomia, que fará sentido se for sustentada na liberdade de fazer, que é uma conquista política. Ao mencionar o “fortalecimento político”, a participante revela seu reconhecimento acerca do papel político da formação continuada oferecida pela Rede, porém num sentido que, por vezes, se opõe ao dos docentes. A participante é incisiva na análise da formação oferecida pela Rede e na possibilidade de uma formação outra, através do grupo de autoformação:

Então a gente encontra, retomando a questão da formação continuada formal agora da Rede né, que é oferecida, a gente encontra as formações continuadas que não... não tem esse momento de acolhimento, que são focadas na transmissão de ideias né, prontas, de uma formação em que as assimetrias, que a gente fala né, de uma pessoa que sabe mais para uma pessoa que, na perspectiva daquela que sabe mais, sabe menos, né a gente percebe essa... essa assimetria e a gente percebeu que não tinha esse espaço para nós. Então o grupo está apostando nesse espaço né, de corrigir essa assimetria e poder falar francamente com todos no grupo horizontalmente sem... sem focar em ideias prontas, receitas, planos para seguir, que já vêm de outro lugar para reforçar mesmo a nossa autoria né como grupo.

Portanto, a participante destaca o caráter resistente do grupo frente a um modelo de formação classificado por ela como assimétrico por apresentar ideias e discussões precariamente vinculadas à realidade do professor. A expressão “a gente não tinha um espaço para nós” demonstra as consequências do silenciamento provocado por um processo formativo que subalterniza os saberes dos professores e o quanto é relevante a preocupação em mobilizar a docência para formações outras, como é o caso do movimento autoformativo.

Ao analisar algumas formas de superação do modelo de escola, especialmente nos últimos anos, notadamente no período pandêmico, Nóvoa (2022) afirma que os professores ofereceram as melhores respostas, especialmente por meio de dinâmicas colaborativas e inclusivas. Foram os professores, portanto, como conhecedores de sua própria realidade, que fizeram escolhas para garantir a continuidade dos seus processos formativos. Isso repercutiu junto à sociedade que, de alguma forma, percebeu a essencialidade dos professores no presente e para o futuro.

Canário (1998) destaca a importância política da formação docente, relacionando-a com princípios como a autonomia. Para o autor, é fundamental que se inclua a escola, assim como os próprios docentes, nos processos formativos, sob pena de se oferecer em Rede uma formação distante e pouco significativa, especialmente num cenário carente de profunda transformação. Analisar criticamente a formação docente é um passo irrenunciável para que se abram caminhos que conduzam a profissão e os próprios docentes a um ambiente de expressão de seus desejos e demandas.

Assim, a abertura de cenários de formação que privilegiem debates acerca de novas concepções políticas da profissão docente reflete a compreensão do caráter igualmente político da formação continuada oferecida pelas Redes de Ensino. Se a formação em Redes aponta para uma prática formativa padrão e padronizante, verticalizada, na qual há um formador que aponta caminhos, é preciso subverter essa ordem. Nóvoa (2022) anuncia a necessidade de fortalecer ambientes de colaboração em que os próprios docentes, por meio da partilha sistematizada, componham sua formação e estabeleçam caminhos outros para a materialização de suas práticas.

Esses ambientes de colaboração exigem uma ampla transformação da escola, a fim de torná-la um espaço privilegiado de convivências. Por isso, Nóvoa (2022, p. 42) alerta para a necessidade de uma revisão do contrato entre escola e sociedade, firmado no século XIX e revogado durante a pandemia. O autor destaca que a educação se dá em diferentes tempos e espaços, aos quais chama de “capilaridade educativa” (Nóvoa, 2022, p. 42), pois se sustenta na construção do comum e da convivialidade.

Portanto, o desafio não é apenas reunir pessoas em torno de um propósito ou para partilhar experiências e saberes, mas sim criar espaços que favoreçam esse propósito e essa partilha. Nesse sentido, Fernanda revela:

Eu sempre defendi que a escola seja livre para fazer a sua formação continuada, que foi uma bandeira que eu sempre levantei. Desde quando eu voltei para sala de aula eu digo: “A gente precisa ter a formação na base”. Precisa para ter aquela unidade, né, de verdade, para ter um Norte. Mas não significa que todas as formações continuadas têm que ser dadas [pausa]. A gente precisa ter esse meio-termo de uma formação de Rede e uma formação da escola.

Podemos perceber que a participante revela preocupação com a tentativa de se fazer da escola um espaço formativo, a fim de constituir e preservar a unidade entre os docentes. De forma indireta, presumimos que a convivência faça da escola um espaço privilegiado para a formação dos sujeitos docentes. Entretanto, notamos uma forte inclinação para a institucionalização da formação, considerando a necessidade de que a escola (instituição) deva ser o motivador deste processo, em detrimento de demandas que eventualmente pertençam ao grupo docente. Não obstante a compreensão de que a escola é um espaço comum e de convivialidade, nota-se que o seu caráter institucional e institucionalizador ainda é tido como preponderante.

Isso é um fator limitante ao processo de transformação da educação e da docência, pois, ao tomar a formação para si, a escola já não se submete a um modelo imposto. É óbvio que se deve partir de algum ponto concreto, porém, ao não se conceber a possibilidade de uma prática livre de amarras, corre-se o risco de replicar o que parece superado.

Sobre isso, é importante destacar que Nóvoa (2019) defende a formação a partir da escola como um passo fundamental a ser dado, mas não como o fim da caminhada para a grande transformação desejada. Para o autor, é preciso rechaçar o discurso de que a escola não é um contexto viável de formação, em razão das justificativas que muitos apontam, como as limitações dos professores, a estrutura das escolas ou a necessidade de sempre trazer novos modelos. De acordo com o autor, é possível que, isolando-se a formação no contexto escolar, imponha-se aos professores práticas rotineiras e repetitivas. Porém, Nóvoa (2019) ressalta que a compreensão sobre a transformação do espaço escolar se dá a partir do momento em que se passa a conhecê-lo.

O fato é que não podemos, no momento histórico presente, estabelecer qualquer forma de isolamento nesta ou naquela estratégia de formação. O espaço escolar, as experiências docentes e os movimentos teóricos ocorridos fora do contexto escolar são fundamentais para que possamos constituir uma docência outra, que efetivamente contribua para a composição de um novo contrato social para a educação. A compreensão disso faz com que estabeleçamos uma crítica profunda a modelos formativos que procuram implantar teorias e práticas por vezes alheias às demandas do espaço escolar, as quais podem oferecer elementos para um debate que ressignifique a própria formação continuada.

Sobre isso, vale ressaltar o que afirma Marta:

A gente teve um programa de formação continuada ao longo desses 16 anos em que eu tô no município. A gente teve um programa de formação continuada mais organizado, vou chamar ele de organizado, né, mais organizado. Lá por meados dos anos 2000, entre 2004 e 2006, a gente teve todo um programa de formação continuada, que gerou um livro no final [pausa]. A gente escreveu a proposta curricular do município. E, naquela situação, a gente tinha um programa de formação continuada que tinha um objetivo.

Portanto, é possível, num contexto de formação continuada convencional, construir espaços para que a diversidade e as peculiaridades presentes no contexto escolar se manifestem. Ao sinalizar que a formação continuada “tinha um objetivo”, a participante quer dizer que uma participação mais efetiva dos docentes era o objetivo. Sabe-se que seria ingênuo imaginar que uma formação docente proposta por uma Rede de Ensino, por exemplo, não possui objetivos, embora, por vezes, estes objetivos não sejam os mesmos dos docentes, nem contemplem suas demandas. Trata-se de uma divergência de natureza política (escolhas e alternativas) que repercute até mesmo no sentido e no significado da formação.

Nesse sentido, é importante retomar o que Marta afirmou acima, a saber, que a composição de um grupo de formação que goza de autonomia em relação às instituições tem um significado político fundamental. Nóvoa (2022), por isso, ressalta que não se pode simplesmente refutar as contribuições externas à formação continuada de docentes, mas também é preciso reafirmar que é na escola que se define e se aprofunda o que é produzido nas universidades e nos grupos de pesquisa. Para o autor, é na escola que se estabelecem os caminhos ao desenvolvimento profissional docente.

A forte relação entre formação e desenvolvimento profissional docente é destacada por García (1999), que sinaliza que este é um movimento que se estende por toda a carreira do professor, incluindo a formação continuada. O autor não restringe esta formação a ofertas institucionais ou baseadas em teorias e práticas externas à profissão. O caráter contínuo e não restrito demonstra a necessária compreensão de que, ao se abordar a formação continuada, há que se ter uma visão de integralidade formativa, o que inclui a ideia de que a própria prática será um momento forte de formação, refletida à luz de teorias que provoquem sua permanente reconstrução. Essa reflexão não depende necessariamente de intervenções institucionais, mas, ao contrário, pode se tornar mais profunda e significativa quando parte da verbalização de experiências e vivências dos próprios docentes.

Cris expressa essa percepção ao afirmar que

[...] a formação continuada que o município oferece para nós, ela, ela tem grande significado quando nós podemos falar, porque, quando a gente vai lá e só ouve, ouve, a gente sabe que, às vezes, é aquela pessoa que nunca entrou numa sala de aula [no caso, o formador]. E, como a gente diz, no papel, tudo é bonito, né? Sabemos que na sala dela não funciona daquele jeito. Então, quando a gente tem a vez de falar, né, de ser ouvido, a formação continuada, assim, ela agrega. Mas, infelizmente, no nosso município, nos últimos anos, a gente não teve essa voz ativa.

Percebemos que a desconexão entre a formação continuada e as demandas dos profissionais é tão profunda que induz a participante a emitir juízo acerca do formador, considerando-o como alguém “que nunca entrou numa sala de aula”. Independentemente desse juízo, o fato é que o formador desconhece o contexto em que a participante atua. Essa distância, na concepção da participante, pode ser minimizada por uma formação em que haja a possibilidade de diálogo entre os docentes. Ao destacar a relevância de “ser ouvido”, Cris revela o quanto a formação possui também uma dimensão afetiva, estabelecida essencialmente pelo diálogo horizontal.

Nesse contexto, Sueli, ao falar da sua presença no grupo de autoformação, destaca:

[...] é muito importante, porque, porque ali você encontra o apoio de vozes do teu cotidiano, de pessoas que estão no mesmo lugar que você. Então, não é alguém que vem de fora trazer uma ideia ou uma solução [pausa]. Solução não, não é a palavra correta, mas vem de fora com algo estranho. Ali, não; é do teu dia a dia. Pessoas da tua convivência, pessoas com quem tu vens trabalhando. Então, esse grupo [de autoformação], eu o vejo assim como muito, muito enriquecedor, de um crescimento muito grande. De ver o que pessoas da Rede são capazes de produzir.

É possível perceber que a participante, além de destacar a horizontalidade entre os membros do grupo de autoformação, sinaliza que a formação continuada, por vezes, sequer aponta para uma solução razoável das demandas. Ao referir-se a “algo estranho”, aponta para uma imposição do que não é do “dia a dia”, uma espécie de treinamento para algo que não lhe pertence. Nota-se aqui o sentimento de que a formação continuada ignora as características e potencialidades dos próprios docentes, que costumam ser mantidas ocultas. Além disso, ao enunciar o que os docentes (pessoas da Rede) são capazes de fazer, Sueli aponta para a histórica necessidade de partir das demandas emergentes do contexto para estabelecer caminhos outros, tanto para a prática docente quanto para a sua formação.

Nesse sentido, Nóvoa (2022, p. 63) destaca a necessidade de ambientes dialógicos de formação para concretizar a ideia de que “[...] o lugar da formação é o lugar da profissão”. Embora a concepção de ‘lugar da profissão docente’ remeta à escola, o que lhe confere um status institucional, é preciso entender que, dentro do espaço institucional, há microespaços em que as relações e os compromissos pessoais são preponderantes. As relações estabelecidas entre docentes e estudantes, assim como o compromisso com uma formação reflexiva e crítica, por exemplo, acontecem no lugar da profissão, mas, quando materializadas entre pares, contribuem com a formação dos envolvidos sem que a intervenção da instituição seja necessária.

A esse respeito, Roldão (2007) destaca que, diante da massificação escolar promovida pelo acesso universal à escola, estabelece-se um confronto entre a diversidade contida no espaço escolar e a imobilidade insistente da organização e dos currículos da escola. Esse paradoxo parece não encontrar perspectiva de superação na formação continuada oferecida pela Rede, mesmo que esta reconheça a diversidade do contexto escolar. Seria necessário não apenas trazer os elementos técnicos, que assemelham a formação continuada a um treinamento, mas sobretudo garantir espaços de diálogo em que os próprios docentes possam analisar reflexivamente suas práticas e construir caminhos outros em coletivo.

Com isso não queremos dizer que as formações continuadas elaboradas a partir de ideias exteriores à escola não devam acontecer. A supressão desse tipo de formação produziria um isolamento pessoal e institucional, alienante e contraditório para uma concepção de espaço escolar como o local de encontro dos diversos e dos divergentes. Por meio dessa formação e da crítica que se faz a ela, porém, é possível fomentar um debate profundo e transformador. Nesse sentido, Fernanda enfatiza que

A formação continuada, a meu ver, ela é o ponto de partida, mas ela nunca vai ser o ponto de chegada na formação do professor. O grande problema é que, no nosso país, grande como ele é, a gente tem políticas públicas que precisam garantir que haja a formação continuada e uma formação continuada pensada numa Rede.

A manifestação da participante denota a clara concepção de que a formação continuada não possui um fim em si mesma. Ao contrário, tem um caráter provocador e de continuidade na prática e na recorrente discussão a seu próprio respeito. Sem esse impacto, assumiria um caráter de receituário, que, ao ser reconhecido como pouco viável ou aplicável, perde significação.

Também merece destaque a percepção da participante de que a formação continuada depende de uma política pública e, por isso, passa a ser pensada para toda a Rede. Nesse sentido, percebemos que um dos motivos apontados para tornar a formação pouco significativa, ou ainda de impacto negativo, é a centralização do modelo, que gera homogeneização e padronização. A formação pensada para uma Rede com realidades distintas, das quais que emergem demandas peculiares, acaba por desconsiderar o que efetivamente é essencial para cada realidade. Nóvoa (2002) destaca que a formação docente não pode ser dissociada da prática, tampouco pode ser fator de limitação dessa prática, impondo caminhos únicos. Ao contrário, cabe à formação despertar para uma crítica ao que se tem revelado pouco eficaz do ponto de vista de uma formação transformadora e estimular práticas que efetivamente contribuam para reverter essa lógica.

A formação do grupo de estudos com características de autoformação coletiva é uma excelente possibilidade de reversão desse quadro. Sob esse viés, Cris destaca:

Então, quando eu entrei [na Rede], em 2009, a nossa formação continuada, ela era remunerada, e a gente tinha encontros mensais também. Mas era algo mais voltado somente para escola, não para pesquisa, né? Então, eram mais assuntos da escola. A gente teve algumas coisas sobre didática e interdisciplinaridade [pausa], foi por isso que surgiu o nosso grupo da formação continuada, que está aí até hoje, e sem fins lucrativos, sem renumeração, né?

Esse depoimento é muito importante para que compreendamos que mesmo uma formação realizada sem a intervenção direta de agentes externos precisa ser refletida de forma cuidadosa. O fato de a Rede oferecer a oportunidade de uma formação continuada orientada segundo demandas dos docentes, com remuneração aos participantes, não garantiu que as discussões assumissem um caráter diverso, em conformidade com as demandas de cada contexto. Segundo a participante, a formação conservou o caráter institucional, retendo as discussões em torno de temas amplos, o que teria motivado a criação do grupo voluntário e sem qualquer tipo de remuneração, a fim de garantir maior liberdade na escolha dos temas e promover discussões do interesse dos participantes.

Como possibilidade concreta de estabelecer caminhos outros, a autoformação coletiva assume um caráter mais específico (ou até pessoal) quando os vínculos se dão pelas necessidades próprias dos docentes do que quando se baseiam nos interesses institucionais. Nóvoa (2022) corrobora essa percepção afirmando que a formação que constitui a identidade docente não é a que se prende a conhecimentos e competências técnicas, mas sim a que é construída por cada profissional no exercício da sua profissão, de modo colaborativo e dialógico.

O exercício da colaboração e do fortalecimento do diálogo entre os sujeitos faz com que suas diferenças sejam um poderoso instrumento de reflexão crítica sobre a própria prática, diferenças essas não restritas ao campo profissional, mas de concepções, de histórias de vida, de compromisso social e, por vezes, definidas nas relações e no poder, que sempre afetam os sujeitos. Diante disso, é válida a discussão acerca do conceito de interculturalidade crítica, definida por Walsh (2007) como uma construção feita por pessoas historicamente oprimidas e subalternizadas, uma alternativa concreta ao movimento de globalização neoliberal e ao racionalismo ocidental, que invalidam inúmeros saberes e práticas, uma possibilidade de criar condições outras de poder, saber e ser. A autora ainda enfatiza que a interculturalidade crítica não apenas trata das diferenças étnicas ou raciais, mas também se aprofunda em questões como a garantia de respeito às mais variadas formas de vida e ao modo como essas vidas são vividas.

Assim, se há uma cultura de formação docente definida por padrões hegemônicos, é preciso romper com ela e reconhecer que há uma diversidade formativa proporcional ao número de sujeitos em formação. Nóvoa (1988) afirma que “[...] a formação pertence exclusivamente à pessoa que se forma [...]” (p. 120), portanto não cabe a alguém (pessoa ou instituição) impor como e para que esta formação se dará. Além disso, o autor enfatiza que cada sujeito constrói saberes conforme sua história, seus anseios e suas demandas, e não apenas assimilando o que lhe é dito como possibilidade única de saber.

Diante de situações de extrema complexidade, em meio às quais demandas desconhecidas se apresentam, é que se percebe o quanto a diversidade de saberes e formas de construir resolutividade se tornam imprescindíveis. Nesse sentido, Luna destaca:

Eu vejo que as formações que a gente teve ano passado [2020], assim, não condiziam com a realidade que a gente estava vivendo. Era muita teoria para uma prática bem diferenciada, principalmente por causa da pandemia. Eu senti que a formação não dava suporte, não dava amparo.

As condições atípicas da pandemia de Covid-19, além de tornarem ainda mais evidente a distância entre a formação continuada oferecida e as reais demandas dos docentes, revelam o quanto este modelo tem dificuldades de compreender os movimentos ocorridos no contexto da prática. Para um modelo de educação pautado na homogeneidade de público e de contexto, o período pandêmico foi revelador das profundas diferenças e desigualdades que lançaram o modelo de escola em uma vertiginosa degradação e, com ele, o modelo de formação de professores também. Como a participante destaca, apesar dos esforços teóricos em alinhar uma acentuada metamorfose da escola, desta vez nascida a partir de um fenômeno universal e surgido fora dela, tornou-se difícil associar o que já se havia discutido a respeito no campo teórico com o que urgia transformar em prática.

O alinhamento entre a metamorfose da escola e as novas demandas da formação docente também é destacado por Nóvoa (2022) quando enfatiza que a metamorfose da escola implica um ambiente educativo cooperativo e de pesquisa, bem como um ambiente outro de formação docente.

Considerando o contexto pandêmico como expressão objetiva da grande metamorfose em curso e as profundas diferenças entre sujeitos e contextos, podemos dizer que ambos os fatores contribuem para aclarar o quanto essa metamorfose deve ser estendida também à formação docente. Nota-se que Nóvoa (2022) não faz referência apenas a uma nova formação profissional docente, e sim a um novo ambiente, o que implica dizer que não se trata de inovar um modelo ou ressignificar uma tendência, mas sobretudo de propor um outro caminho, com novas relações entre os sujeitos. Estes sujeitos são os próprios docentes, que costumam ser condicionados ao papel de espectadores de sua própria formação, postos à margem das discussões por um modelo preso à ideia de que a formação se reduz a repasses técnicos.

Assim, os professores seguem como personagens coadjuvantes, nas fronteiras, gravitando em torno dos que supostamente têm a responsabilidade de pensar a profissão, seu futuro e compromisso com a transformação da própria escola. Nesse sentido, é muito pertinente a ideia de pensamento fronteiriço, característico da teoria decolonial, a qual denuncia o silenciamento de todo pensamento que sustente ou mesmo contradiga o pensamento hegemônico. Walsh (2013) destaca que o pensamento fronteiriço questiona e enfrenta o pensamento dominante pondo em xeque todas as certezas por ele impostas. Trata-se de uma ruptura com o pensamento hegemônico e seu caráter eurocêntrico, a qual conduz a um pensamento outro, que parte da ideia de interculturalização do conhecimento, propondo uma cultura de saída, de encontro com o diferente.

Sobre isso, Luna destaca:

E eu fiquei bem feliz, eu fui convidada também pra participar do nosso grupo [...]. Eu fiquei bem feliz, porque a sensação que eu tinha é que eu tava sozinha na Rede. Será que só eu que quero pesquisar, só eu que quero pensar diferente, que quero buscar conhecimento?.

Nota-se que o discurso hegemônico, pronunciado longe das fronteiras, estabelece a individualização das responsabilidades, ou seja, a sensação de que cada sujeito é responsável, isoladamente, por solucionar seu problema, impedindo-o de perceber que o problema é coletivo e de que a solução se concretiza a partir de um cenário de cooperação e diálogo. A autoformação coletiva, mais uma vez, surge como um possível caminho para a metamorfose da escola, superando práticas e modelos que já não respondem efetivamente - se é que um dia responderam - às reais demandas da pluralidade de contextos que caracteriza o universo educacional.

Considerando a crítica ao modelo de formação continuada vigente, que ainda persiste mesmo diante de um quadro de flagrante transformação da escola, bem como a percepção da viabilidade de uma prática autoformativa coletiva, é importante situar esta prática teoricamente. Isso faz com que se consolide não como um novo modismo ou uma prática superficial de reordenamento prático, mas como uma estratégia capaz de romper com a lógica histórica de silenciamento e marginalização de saberes, saberes estes nascidos de práticas comprometidas com a realidade e sua transformação, e não apenas com pequenos reparos, que conservam modelos e práticas claramente ineficientes, especialmente quando se necessita de uma prática educativa inclusiva, acolhedora e solidária.

4. A AUTOFORMAÇÃO COLETIVA COMO POSSIBILIDADE A UMA DOCÊNCIA DECOLONIAL DA EDUCAÇÃO BÁSICA

A ideia de autoformação coletiva, aparentemente nova no contexto educacional e da formação docente, é uma prática recorrente ao longo da história de vida de cada sujeito e da própria humanidade. Muito do que se sabe e aprende ao longo da vida se dá pelas relações estabelecidas com fenômenos, fatos, ideias ou mesmo com outras pessoas, e não pelo que simplesmente se absorve deles. Enfatizamos o caráter coletivo porque acreditamos que não se pode confundir autoformação com autodidatismo, o qual, essencialmente, é a capacidade que o sujeito tem de absorver informações e conhecimentos sem estabelecer um ambiente relacional.

Nesse sentido, Galvani (2002) define a autoformação como um “[...] um processo tripolar, pilotado por três polos [sic] principais: si (autoformação), os outros (heteroformação), as coisas (ecoformação)” (p. 96). A Figura 1, abaixo, ilustra esse pensamento. É fundamental perceber que a heteroformação (S-1) corresponde ao que entendemos por educação formal e informal, que representam o que instituições como família e escola oferecem como saberes historicamente elaborados, sem a necessidade de uma atitude autônoma de (re)construção. Já a ecoformação (S-2) representa a compreensão do meio em que os sujeitos vivem suas existências, o qual exerce forte influência sobre as diferentes experiências vividas, determinando seu curso e seus objetivos.

Fonte: Galvani (2002, p. 96).

Figura 1: Representação tripolar da autoformação 

Aplicando essa lógica à autoformação docente, com vistas a gerar uma metamorfose de práticas para uma educação outra, convém lembrar que Imbernón (2011) alerta para o fato de que a formação de um professor se dá pela reflexão de sua prática, pela análise de sua realidade, pela partilha de experiências; relacionando a formação a um projeto de trabalho; concebendo a formação como um processo de rupturas com ideias como hierarquia cultural e individualismo. Assim, a autoformação coletiva atua no desenvolvimento profissional docente estabelecendo horizontalidade nas relações havidas no meio de realização da própria prática e no contexto descrito por esse espaço.

Além disso, é fundamental compreender que o meio em que essas relações se estabelecem não se restringe ao espaço físico ou temporal, estendendo-se às histórias de vida, aos elementos culturais, aos valores e princípios dos envolvidos. Nas palavras de Nóvoa (1988), “[...] ninguém forma ninguém, e a formação é, inevitavelmente, um trabalho de reflexão sobre os percursos da vida” (p. 116). Notamos que, aqui, a formação não é concebida como mera transferência de saberes de quem sabe mais para quem sabe menos. Trata-se de uma partilha crítica, na medida em que, ao longo do percurso de cada vida, ocorrem interações que preservam a horizontalidade relacional, imprescindível para a constituição de uma formação docente outra, fundamentada na interculturalidade.

Por isso, transgredir os limites do pensamento que orienta a formação docente continuada convencional, oferecida por Redes e instituições, é uma tarefa viável e necessária, alcançável por caminhos diversos, dentre os quais a prática autoformativa. Sobre o movimento de superação de práticas e concepções convencionais, Walsh (2009a) salienta que é preciso transgredir o pensamento homogêneo, sustentáculo da lógica colonial, a fim de apontar para um caminho decolonial, no qual diferentes culturas dialoguem e se reconstituam sem perder ou renunciar ao que as determina. Para a autora, é fundamental reconhecer a subjetividade e a historicidade do conhecimento, para que possam ser construídas pontes entre diferentes pensamentos críticos, concebendo uma íntima relação do cultural com o econômico, político, o social e o epistêmico. Neste sentido, a formação docente com vistas a uma educação decolonial implica num compromisso profundo e (in)tenso de intervenção no contexto de atuação dos docentes.

Com relação ao campo da formação docente, Nóvoa (2013) alerta: se não se dispuserem a fazer uma reflexão atrevida e criativa, que os conduza a uma profunda transformação de suas práticas e, em última instância, de suas formas de exercer a profissão, os professores tornarão as escolas lugares aparentemente inúteis. Para o autor, esse quadro poderá servir de argumento para justificar a substituição da instituição escolar por outras formas de ensino, como é o caso do homeschooling (escola doméstica). A substituição das escolas, e dos docentes, certamente omite suas reais intenções visto que uma educação sem escola e sem professor implica na sujeição a modelos e práticas que não consideram a importância, por exemplo, das relações humanos e afetivas, bem como a inserção do estudante num ambiente que privilegie a heterogeneidade e a pluralidade de formas de ser, pensar e existir.

Reconhecer que o modelo atual de escola está em degeneração é fundamental, tanto quanto compreender que é preciso empreender esforço para uma transformação, no sentido de transcender a forma atual, para sublinhar ainda mais a importância da escola, como casa comum de encontro e formação de todos. Por isso Imbernón (2009) destaca que é preciso criar espaços de comunicação entre pares, promovendo amplas transformações do ato educativo mediante a compreensão concreta da realidade. Segundo o autor, relatos da vida profissional dos docentes permitem uma melhor intervenção sobre a práxis, por meio da reflexividade coletiva, fundamentada em práticas formativas dialógicas. Esse movimento torna-se possível e preserva a identidade dos docentes, na medida em que eles próprios pautam suas demandas, atuam nas suas escolhas e constroem caminhos outros para alcançarem objetivos que sejam efetivamente seus.

Diante de uma prática autoformativa, caminhamos para uma docência outra, sem vínculos com modelos pré-formatados. Mais do que isso, a prática autoformativa fortalece a presença dos que, historicamente, se veem fora destes modelos, os quais, no caso dos docentes, são muitos, por serem originários das classes populares, acostumadas a serem subalternizadas e a terem seus saberes rechaçados em detrimento daqueles legitimados pelo poder colonial.

Entretanto, esse processo de ruptura, no qual saberes e práticas formativas como a autoformação coletiva passam a ter notoriedade, não se consolida por si. É preciso não apenas posicioná-lo como um espaço de encontro, mas também, partindo disso, segundo Nóvoa (2017), marcar posição pela disposição pessoal dos sujeitos de estar neste lugar e estabelecer um diálogo que discuta a profissionalidade docente, mas não dispense uma composição pedagógica teoricamente sustentada, que estimule a investigação e a pesquisa a partir do contexto e que torne público os resultados obtidos. Este é um processo que, contando com o esforço permanente dos participantes do grupo de autoformação coletiva, se estenderá por muito tempo, ou até indefinidamente, sempre marcado pela adesão e pela presença voluntárias, pelas discussões determinadas por demandas do cotidiano da prática dos docentes, sempre orientadas por teorias, bem como pela partilha de experiências diante do enfrentamento dessas demandas.

Por meio disso, é possível pensar em pedagogias outras, capazes de contribuir com a constituição de uma docência outra, que, por sua vez, promoverá uma profunda intervenção no contexto de atuação dos docentes. Nesse sentido, Walsh (2009b) afirma que são

Pedagogías que se construyen con relación a otros sectores de la populación, que suscitan una preocupación y conciencia por los patrones de poder colonial aún presentes y la manera que nos implican a todos, y por las necesidades de asumir con responsabilidad y compromiso un accionar dirigida a la transformación, la creación y el ejercer del proyecto político, social, epistémico y ético de la interculturalidad. Son estas pedagogías o apuestas pedagógicas que se dirigen hacia la liberación de estas cadenas aún en las mentes, y hacia la re-existencia en un designio de “buen vivir” y “convivir” donde realmente quepan todos. (p. 25)

Trata-se, portanto, de formar docentes sensíveis e fortemente comprometidos não apenas com sua profissão, mas também com a possibilidade e a necessidade de estabelecer formas de convivência e de bem viver capazes de respeitar a diversidade de existências. Mais do que respeitar os diferentes, é preciso assumir o compromisso de libertar os que foram historicamente subalternizados pela modernidade, por meio de uma formação de caráter intercultural. Docentes que forjam sua prática nesta perspectiva, geralmente críticos das formações continuadas convencionais, têm na prática autoformativa coletiva uma excelente possibilidade de reafirmarem seu compromisso e de fazê-lo de forma coletiva, como parte de um processo de mobilização em direção a uma formação outra, necessária e viável.

5. CONCLUSÃO

Considerando o propósito de identificar os principais aspectos a serem discutidos acerca da formação continuada de professores da Educação Básica, que podem contribuir à uma educação decolonial, identificados num grupo de docentes que pratica a autoformação coletiva voluntária, é fundamental, inicialmente, destacar que, ao se utilizar o paradigma indiciário para análise de dados, buscou-se analisar o dito a partir do não dito, o que implica numa forma de investigação, porém não a única. Além disso, é preciso reconhecer que esta análise é orientada pela percepção de quem a realiza, constituída de escolhas epistêmicas, culturais e políticas, razão pela qual seria oportuno, em algum momento realizar a análise dos mesmos dados a partir de estratégias diversas como o envolvimento direto dos professores neste processo, construindo interpretações mais dialógicas e intersubjetivas, por exemplo.

Mas considerando o caminho escolhido para este escrito é possível depreender que, em seus depoimentos, os participantes revelam que:

  • A formação continuada convencional, oferecida pela Rede, caracteriza-se muito mais como um simples treinamento do que como uma formação que incida sobre o desenvolvimento profissional dos professores;

  • A falta de autoria dos professores em sua formação é uma marca da formação atual oferecida pela Rede, uma vez que, geralmente, não garante espaços de diálogo e integração entre pares;

  • A formação continuada convencional apresenta pouca relação entre o que é abordado por ela e o que se vive na prática, revelando-se pouco significativa e potencialmente incapaz de promover grandes intervenções na prática;

  • Há uma desconsideração das características dos contextos da prática docente nos momentos formativos, fazendo com que, ao invés de uma construção dialógica de novas possibilidades de ação pedagógica, perceba-se uma imposição de modelos sem maior afinidade com as demandas e necessidades dos próprios docentes.

Essas considerações apontam para uma formação continuada de caráter profundamente colonial, silenciadora de práticas e saberes não legitimados. Trata-se de uma formação que aprofunda o processo de degradação do modelo de escola que se tem, pois persiste na reprodução de práticas e concepções que não dialogam com as demandas emergentes dos tempos atuais, nem com os contextos particulares em que estão os docentes. Além disso, abrevia as possibilidades de desenvolvimento profissional, reduzindo os docentes ao coadjuvante papel de técnicos responsáveis por aplicar determinada prática, que, embora hierarquicamente legitimada, não encontra nas demandas do contexto da atuação do docente razões que referendem essa legitimação.

Mas de toda a crítica nasce uma reflexão, por meio da qual surgem possibilidades de ruptura que revelam caminhos outros, viáveis e necessários. Considerando a experiência de um contexto de autoformação coletiva, podemos dizer que esse movimento é uma dessas possiblidades. Por meio da autoformação coletiva, é possível pavimentar um caminho seguro para a consolidação da identidade docente, a partir do qual se torna possível estabelecer uma formação outra. Esta formação sinaliza uma possibilidade de ruptura com práticas homogeneizadoras, pois se compromete com:

  • A diversidade de pensamentos e práticas presentes no exercício da docência, em oposição à ideia de que há uma forma única de pensar e existir;

  • A autoria docente em sua própria formação, desenvolvida de forma dialógica e colaborativa, razão pela qual a autoformação assume um caráter coletivo;

  • A inserção dos sujeitos e de seu contexto nas discussões acerca do exercício de sua profissão, aproximando teoria e prática de forma concreta e causando impacto sobre a práxis docente.

Assim, a autoformação coletiva de professores representa uma prática de rupturas, transformações e compromissos que alimenta a esperança de que é possível estabelecer um novo futuro para a escola e para a docência. O quadro degenerativo da escola e, por conseguinte, da docência deve mobilizar os professores a repensar a própria concepção de formação, que deve se orientar por práticas consideradas legítimas, a fim de que se dê maior atenção àquelas baseadas nas características e demandas do próprio contexto, frequentemente postas à margem. A autoformação coletiva, ao buscar elementos nas fronteiras do pensamento e das práticas hegemônicas, sinaliza para uma perspectiva decolonial de docência, por meio da qual a legitimação do fazer pedagógico não se prende a aprovações superiores ou externas, mas sim ao potencial transformador dos saberes e das práticas nela abordados.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Programa de Bolsas de Estudos do Governo do Estado de Santa Catarina (Uniedu) pelo financiamento desta pesquisa.

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Recebido: 16 de Janeiro de 2023; Aceito: 30 de Outubro de 2023; Publicado: 18 de Dezembro de 2023

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Nilton Bruno Tomelin niltonbt@sed.sc.gov.br

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