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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.21 no.3 Lisboa set. 2013

 

Nefrite intersticial aguda induzida pela piperacilina-tazobactam?

Acute interstitial nephritis induced by piperacillin-tazobactam?

 

Teresa Moscoso, Maria João Paes, Marta Neto

Serviço de Imunoalergologia, Hospital Pulido Valente, Centro Hospitalar Lisboa Norte

 

Contacto

 

RESUMO

A nefrite intersticial aguda (NIA) é uma apresentação frequente de lesão renal, sendo os fármacos, actualmente, os agentes etiológicos mais envolvidos. Apresentamos o caso clínico de uma doente, de 61 anos, com o diagnóstico provável de NIA na sequência da toma de piperacilina-tazobactam (diagnóstico clínico tendo em conta o uso da escala de “Naranjo probability” para as reacções adversas a fármacos). A biopsia renal, apesar de ser o método gold standard de diagnóstico em situações de NIA, não é necessária em todos os casos. Em doentes com clínica provável, nos quais o fármaco suspeito pode ser facilmente retirado e que após esta retirada há melhoria da função renal, este procedimento pode ser evitado. Tendo em conta o envelhecimento populacional e o número crescente de doentes com múltipla patologia e polimedicados, torna -se cada vez mais importante ponderar este diagnóstico perante uma insuficiência renal aguda. Pretendemos ainda alertar para a ocorrência de reacções menos frequentes que podem ser desencadeadas por este beta-lactâmico semi-sintético, cuja utilização é cada vez mais frequente em meio hospitalar.

Palavras -chave: Hipersensibilidade induzida por fármacos, insuficiência renal aguda, nefrite intersticial aguda, piperacilina-tazobactam.

 

ABSTRACT

Acute interstitial nephritis (AIN) represents an important cause of renal failure. The majority of AIN cases have been linked to drugs, given its increased use. We report our experience in managing a 61-year-old woman with AIN and subsequent renal injury following a piperacillin -tazobactam intake. The diagnosis was based on clinical presentation by using the “Naranjo probability” scale for adverse reactions to drugs. Renal biopsy, although considered the gold standard for diagnosis of AIN, is not needed in all patients.

In patients for whom the diagnosis seems likely, for whom a probable precipitating drug can be easily withdrawn, and who improve readily after withdrawal of a potentially offending drug, supportive management can proceed safely without renal biopsy. Regarding the aging population and the increasing number of polymedicated patients with multiple comorbidities, it becomes important to consider this diagnosis when in presence of acute renal failure. The aim of our report is to increase awareness to the potential involvement of this semi-synthetic beta -lactam in less common hypersensitivity reaction such as AIN.

Keywords: Acute interstitial nephritis, acute renal failure, drug induced hypersensitivity, piperacillin-tazobactam.

 

INTRODUÇÃO

A nefrite intersticial aguda (NIA) representa uma causa frequente de lesão renal, geralmente associada a deterioração abrupta da função renal.

Histologicamente caracteriza-se por um infi ltrado celular intersticial (incluindo células TCD4+, macrófagos, eosinófilos e células plasmáticas) acompanhado de edema intersticial sem lesão capilar ou glomerular associada1.

As doenças auto-imunes, as infecções e os fármacos destacam-se como principais causas de NIA2. Dada a sua crescente utilização, os fármacos são actualmente os agentes etiológicos mais frequentes, dos quais são exemplo penicilinas, cefalosporinas, rifampicina, ciprofloxacina, sulfonamidas, anti-inflamatórios não esteróides, cimetidina, omeprazol e indinavir3.

A NIA provocada por fármacos é considerada uma reacção de hipersensibilidade tardia mediada por células T4,5, não dependente de dose2 e que pode tornar-se clinicamente evidente em média duas semanas após o início do tratamento6. Neste modelo de reacção presume-se que os fármacos desencadeiem reacções específicas contra os antigénios endógenos renais pela formação de reacções tipo-hapteno ou por imitação das proteínas renais nativas4,5.

O diagnóstico baseia-se numa história clínica completa tendo em conta a relação temporal entre a toma do fármaco suspeito e o início da NIA. Existem actualmente diversos algoritmos/escalas de avaliação de causalidade, sendo o algoritmo de Naranjo7, baseado na avaliação clínica, um dos mais utilizados.

A apresentação clínica da NIA caracteriza-se por febre, exantema e eosinofilia periférica num doente com evidente deterioração da função renal sem outra causa aparente de insuficiência pré e pós -renal. Contudo, a biopsia renal é o único método de diagnóstico definitivo2.

Deve-se considerar a possibilidade de biopsia renal nos casos em que não ocorre melhoria da função renal após a retirada da medicação, em que o doente está estável para suportar o procedimento e concorda com o mesmo.

As indicações de biopsia renal são a presença de proteinúria >2g/24h ou síndrome nefrótica, hematoproteinúria persistente, insuficiência renal aguda que não resolve em 3-4 semanas, insuficiência renal aguda de origem não óbvia ou com cilindros hemáticos e insuficiência renal crónica com rins de dimensões conservadas2. Caso a biopsia seja contra -indicada, o doente poderá fazer um teste terapêutico com corticóides se a suspeita clínica for forte.

As contra-indicações para a realização de biopsia são a presença de diátese hemorrágica, rim único, incapacidade de o doente cooperar no procedimento percutâneo, rins de dimensões reduzidas, hipertensão não controlada, recusa do doente e infecção urinária activa2.

Apesar de estarem bem documentadas reacções de NIA com a utilização de antibióticos beta -lactâmicos2, raros são os casos associados à administração de piperacilina-tazobactam8,9,10, uma penicilina semi-sintética de largo espectro, activa contra muitas bactérias aeróbias Gram-positivas e Gram -negativas e bactérias anaeróbias e que exerce a sua actividade bactericida pela inibição da síntese da parede celular.

A relevância deste caso clínico prende-se com o facto de a NIA representar uma causa importante de insuficiência renal aguda e colocar problemas diagnósticos fundamentalmente nos doentes polimedicados. Pretendemos igualmente alertar para a possibilidade de reacções menos frequentes relacionadas com este antibiótico em particular, cuja utilização é cada vez mais frequente em meio hospitalar.

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, 61 anos, caucasiana, não fumadora, com antecedentes pessoais de obesidade (IMC= 31,6 kg/m2), doença arterial periférica grave, submetida a bypass femoral bilateral (em 2006 e 2007), diabetes mellitus tipo 2 não insulino-tratada, hipertensão arterial (ambos com cerca de 21 anos de evolução), insuficiência renal crónica e cardiopatia isquémica. Medicada diariamente com omeprazol, metformina, glimepirida, vildagliptina, gabapentina, clopidogrel, pravastatina, amitriptilina e amlodipina. Sem queixas sugestivas de alergia respiratória, alergia alimentar ou hipersensibilidade a fármacos conhecida.

Internada no serviço de Cirurgia Vascular por isquemia crítica do membro inferior esquerdo, tendo sido submetida a arteriografia e tentativa de angioplastia, à qual sucedeu amputação da perna esquerda, por agravamento clínico.

Foi medicada desde o segundo dia de internamento com piperacilina -tazobactam 2,25g de 6/6h EV, metamizol 2g de 8/8h EV SOS e enoxaparina, para além da sua terapêutica habitual (omeprazol, metformina, glimepirida, vildagliptina, gabapentina, clopidogrel, pravastatina e amlodipina). Após três semanas de internamento iniciou quadro de exantema morbiliforme muito pruriginoso no tronco e membros, sem outras queixas associadas, nomeadamente queixas digestivas, urinárias ou cardiovasculares, a que se associou agravamento franco da função renal (aumento da creatinina de 2,0 mg/dL para 6,6 mg/dL) com concomitante acidemia metabólica e posterior eosinofilia periférica (valor máximo:1.94x109/L). O exame de urina apresentava leucocitúria, proteinúria e eritrocitúria. A ecografia renal revelou “rins em topografia habitual, medindo cerca de 10,9 cm à direita e cerca de 10 cm à esquerda, com contornos bosselados, estando a espessura parenquimatosa e a diferenciação parênquimo-sinusal globalmente preservadas. Árvores excretoras renais não ectasiadas”.

O antibiótico foi interrompido, a doente medicada com anti -histamínico e manteve a restante terapêutica nomeadamente o metamizol. Passada uma semana sem melhoria das queixas cutâneas e persistindo a eosinofilia periférica, foi pedida observação por Imunoalergologia. Na mesma altura iniciou febre com picos superiores a 40ºC, com fraca resposta aos antipiréticos e sem foco de infecção evidente.

Ao exame objectivo foi possível objectivar lesões descamativas, maculopapulares, de predomínio no tronco, abdómen e coxas. Apresentou -se sempre hemodinamicamente estável e com débitos urinários dentro da normalidade.

Analiticamente apresentava creatinina sérica de 5,0 mg/dL, leucocitose (18,8x10/L) e proteína C reactiva elevada (12,8mg/dL).

A associação entre lesões cutâneas, eosinofilia periférica e degradação da função renal levou a considerar o diagnóstico de nefrite intersticial alérgica, pelo que iniciou corticoterapia per os com prednisolona 20 mg toma única durante cinco dias, seguida de diminuição progressiva da dose. Obteve-se resposta muito favorável, com desaparecimento da eosinofilia em três dias, resolução completa do quadro cutâneo ao fim de seis dias e melhoria progressiva dos valores laboratoriais com recuperação da função renal ao fim de 10 dias.

Apesar da urocultura e das hemoculturas serem negativas, a elevação dos parâmetros laboratoriais de inflamação associada a febre motivou simultaneamente o início de antibioterapia empírica com ceftriaxona, que cumpriu durante 10 dias sem reacção adversa. Ainda durante o internamento, que se prolongou por bacteriemia a Staphylococcus aureus e pneumonia nosocomial sem agente isolado, foi medicada com meropenem e linezolide sem reacção.

A Figura 1 ilustra as alterações apresentadas durante o internamento.

Após a alta, na avaliação subsequente por Imunoalergologia, não foi feita qualquer investigação a piperacilina-tazobactam, uma vez que neste tipo de reacções há sempre indicação para evicção do fármaco suspeito. Contudo, foi realizada prova de provocação oral controlada com placebo com beta -lactâmico alternativo – amoxicilina-ácido clavulânico – que manteve durante uma semana na dose de 875 mg + 125 mg de 8/8h, sem qualquer tipo de reacção adversa, nomeadamente agravamento da função renal.

A doente recebeu indicação para manter evicção completa de piperacilina -tazobactam (cartão identificativo) com base no critério clínico de provável NIA a piperacilina-tazobactam (Quadro 1), podendo ser prescritos todos os outros beta-lactâmicos. Desde então não voltou a ter qualquer outro episódio semelhante.

DISCUSSÃO

A NIA desencadeada por fármacos representa uma causa crescente de insuficiência renal aguda na prática clínica5. É particularmente difícil determinar a causa específica de insuficiência renal aguda em doentes com múltiplas patologias de base, especialmente quando sob diversos tipos de tratamentos. No presente caso clínico, a introdução de piperacilina-tazobactam veio, provavelmente, desencadear uma reacção sugestiva de NIA numa doente polimedicada e com múltipla patologia.

Outro agente nefrotóxico, o contraste utilizado durante a arteriografia, poderia estar envolvido na NIA, mas devido à relação temporal entre a administração da piperacilina -tazobactam e o agravamento clínico, bem como a sua resolução com a sua interrupção, tornam difícil esta hipótese. Outras causas de eosinofilia periférica e exantema cutâneo foram excluídas, nomeadamente a síndrome de DRESS (drug rash with eosinophilia and systemic symptoms) devido a ausência de nódulos palpáveis, envolvimento de outro órgão, resolução em <15 dias e serologias negativas associadas a um exantema maculopapular com extensão <50% da área corporal, pouco sugestivo de DRESS. A biopsia renal, que consolidaria o diagnóstico, não foi realizada, uma vez que a doente apresentou melhoria da função renal após a retirada da medicação e não podíamos excluir a hipótese de infecção urinária activa. Contudo, a clínica provável segundo o algoritmo de Naranjo7, associada a uma gradual melhoria da função renal após interrupção do fármaco e instituição de corticoterapia, reforçam o diagnóstico de NIA.

Poucos casos de NIA à piperacilina-tazobactam estão documentados até à data8,9,10 e apenas no primeiro caso descrito foi realizada biopsia renal8. Nos restantes casos o diagnóstico foi estabelecido tendo em conta a clínica apresentada, não seguindo nenhum algoritmo de decisão.

Num dos casos a NIA foi interpretada como resultante de reactividade cruzada entre a piperacilina e o meropenem10.

Contudo, no presente caso clínico, a doente não sofreu reagravamento da função renal após início quer do meropenem quer do linezolide.

Sempre que surja suspeita de NIA secundária a fármacos, as medidas fundamentais passam pela identificação do fármaco suspeito e a sua suspensão. Os doentes que interrompem o tratamento antes das duas semanas do início da NIA (avaliado pelo aumento de creatinina sérica) são mais propensos a recuperar os valores basais da função renal do que os que permanecem com a terapêutica com o fármaco suspeito durante três ou mais semanas2.

No presente caso este facto torna -se particularmente relevante, uma vez que a doente já apresentava insuficiência renal crónica e um agravamento da função renal poderia condicionar o início de diálise.

A utilização de corticoterapia mantém-se controversa, com estudos a apresentarem resultados contraditórios1. No presente caso, apenas com introdução de prednisolona se alcançou melhoria clínica e analítica significativa.

Neste tipo de reacção de hipersensibilidade, não são de esperar fenómenos de reactividade cruzada, pelo que os outros fármacos beta-lactâmicos são alternativas terapêuticas viáveis. Contudo, decidiu-se realizar prova de provocação oral controlada com placebo com amoxicilina-ácido clavulânico, de modo a tranquilizar a doente e cuidadores.

CONCLUSÃO

O diagnóstico de nefrite intersticial alérgica é muitas vezes difícil, sendo que a lesão renal pode surgir semanas após a introdução de um fármaco.

Tendo em conta o envelhecimento populacional, o número crescente de doentes polimedicados e com múltipla patologia, torna -se cada vez mais importante a alta suspeição diagnóstica. No presente caso clínico esta hipótese foi colocada pela existência de exantema cutâneo associado a um aumento de eosinofilia periférica e agravamento da função renal três semanas após o inicio de antibioterapia com piperacilina-tazobactam.

A interrupção imediata do fármaco e a introdução de corticoterapia numa fase inicial do processo patológico possibilitaram a evolução clínica favorável apresentada pela doente.

 

REFERÊNCIAS

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Contacto:

Teresa Moscoso

Serviço de Imunoalergologia do Hospital Pulido Valente

Centro Hospitalar de Lisboa Norte

Alameda das Linhas Torres, 117

1769-001 Lisboa

E-mail: teresamoscoso@hotmail.com

 

Financiamento: Nenhum.

Declaração de conflitos de interesse: Nenhum.

 

Data de recepção / Received in: 23/06/2013

Data de aceitação / Accepted for publication in: 31/08/2013

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