SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número3Angioedema hereditário com complemento normal: A importância do estudo genético na família índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.23 no.3 Lisboa set. 2015

 

CASO CLÍNICO

 

Com gelo ou sem gelo?

– A propósito de um caso clínico

Is ice an option? – A clinical case report

 

Letícia Pestana1,2, Elisa Pedro1, Rita Câmara2

1Serviço de Imunoalergologia, Centro Hospitalar Lisboa Norte/Hospital Santa Maria, Lisboa

2Unidade de Imunoalergologia, Hospital Dr. Nélio Mendonça, Funchal, Madeira

 

Contacto

 

RESUMO

A imunoterapia específica com alergénios consiste na administração de extratos alergénicos com o objetivo de induzir tolerância clínica aos alergénios responsáveis pelas reações alérgicas, nomeadamente na alergia a veneno de himenópteros. A imunoterapia com extrato de veneno puro está indicada nos doentes alérgicos à picada de himenóptero que apresentam reações sistémicas graves ou moderadas e demonstração de mecanismo mediado por IgE. Os autores apresentam o caso de uma doente de 40 anos a realizar imunoterapia específica com veneno de abelha, submetida a protocolo ultrarush, que desenvolveu reação local exuberante no local da administração da vacina. Durante a fase de manutenção da vacina manteve um agravamento progressivo das reações locais exuberantes com eritema, edema e pápula. Na sequência da investigação clínica a etiológica, foi identificada urticária ao frio, controlada após a instituição de terapêutica adequada e evicção da aplicação de gelo após administração da vacina. Os autores reportam o caso chamando a atenção para as indicações da imunoterapia com veneno de himenópteros e que, para além das reações locais e sistémicas consequentes à administração da vacina e já conhecidas na literatura, podem ocorrer reações adversas menos habituais que poderão estar relacionadas com outras patologias subjacentes.

Palavras‑chave: Efeitos adversos, imunoterapia com veneno de himenópteros, urticária ao frio.

 

ABSTRACT

Allergen immunotherapy consists in the administration of allergen extracts with the aim of inducing tolerance to allergens responsible for the allergic reactions, as observed in hymenoptera venom allergy. Venom immunotherapy is indicated in patients with insect sting allergy with severe or moderate systemic reactions and IgE‑mediated mechanism. The authors present the case of a 40 year‑old patient submitted to bee venom immunotherapy with an ultra‑rush protocol that developed large local reactions at the vaccine injection site. During the maintenance phase of the vaccine there was gradual worsening of the large local reactions with erythema, edema and wheal. Following clinical and etiologic investigation, cold‑induced urticaria was diagnosed and controlled after appropriate treatment and eviction of ice application after vaccine administration. The authors report the case drawing the attention to the indications of venom immunotherapy and that, besides the local and systemic reactions to immunotherapy already known in the literature, there may be less common side effects which may be related to other pathologies not previously diagnosed.

Keywords: Cold urticarial, side effects, venom immunotherapy.

 

INTRODUÇÃO

A imunoterapia específica com alergénios (ITA) ou vacina antialérgica é o único tratamento etiológico capaz de alterar o curso natural da doença alérgica, sendo no entanto essencial, por um lado, a selecção criteriosa dos doentes a submeter a este tratamento e, por outro, a seleção dos extratos a utilizar para otimização do custo/benefício1. Esta terapêutica tem indicação formal em caso de doença mediada por IgE tal como na asma, rinite e conjuntivite alérgica com sensibilização a aeroalergénios, e ainda na alergia a veneno de himenópteros e alergia ao látex.

A segurança da ITA tem sido abordada em diversos estudos2‑3.

Nas reações locais surgem dor, eritema e edema; consideram‑se reações locais exuberantes quando abrangem uma área superior a 10 cm, em contiguidade com o local da administração. As reações sistémicas cursam com envolvimento do sistema mucocutâneo (urticária e/ou angioedema), gastrointestinal, respiratório e/ou cardiovascular e têm subjacente, na maior parte dos casos, um mecanismo mediado por IgE. Estas são menos frequentes na criança do que no adulto. Classificam‑se, segundo Müller, em quatro graus, de acordo com a gravidade clínica4.

A imunoterapia com veneno de himenópteros (VIT) é eficaz em 90‑95% dos casos de alergia ao veneno de vespa e em 80‑85% de alergia ao veneno de abelha5. A ocorrência de reações sistémicas (RS) ocorre em 12‑16% dos casos6‑7.

Um estudo com 100 doentes submetidos a um protocolo rush durante 4 dias revelou que o número de RS na fase de manutenção é maior em doentes submetidos a IT com veneno de abelha em comparação a veneno de vespa, não tendo sido significativa a diferença entre género, e ainda que a incidência de RS foi inferior à média reportada na literatura8.

De um modo geral, as reações adversas à VIT e seu tratamento podem classificar‑se como:

Reação local – aplicação de gelo localmente.

Reação local exuberante (>10 cm diâmetro)

– aplicação de gelo ou compressas frias; corticosteroide localmente; anti-histamínico oral durante 2‑3 dias; nos casos mais graves corticosteroide sistémico.

Reação sistémica ligeira a moderada (Urticária/angioedema) – adrenalina (1mg/ml) 0,3‑0,5 ml intramuscular; infiltração do local da picada com adrenalina 0,3‑0,5 ml; anti-histamínico e corticosteroide sistémico.

Reação sistémica grave (grau III ou IV) – o fármaco de primeira linha é a adrenalina (1:1000 = 1mg/ml) intramuscular. Dose no adulto: 0,3 a 0,5 mg (0,3 a 0,5 ml), se necessário pode repetir‑se a mesma dose cada 5-10 minutos. Dose na criança: 0,01mg/kg, com o máximo de 0,3 mg por dose.

É fundamental a monitorização dos parâmetros vitais e a cateterização de uma veia periférica que permite a administração de soros e a medicação de emergência.

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, 40 anos, a realizar IT com veneno de abelha. Aos 28 anos iniciou episódios de reacção sistémica após picada de abelha (pai apicultor), referindo três episódios caraterizados por urticária generalizada e dispneia alta/disfonia (Grau III segundo classificação de Müller). Realizou testes cutâneos em picada e intradérmicos que foram positivos para abelha (100μg no teste em picada; 0,01 e 0,1μg nos intradérmicos), bem como controlo analítico com IgE específica para abelha – 47,7 kUA/L e IgE total – 998 kUA/L. Foi submetida a protocolo ultra‑rush com veneno de abelha em 2013 no Hospital Santa Maria, Lisboa, sendo descrita reacção local exuberante no local da administração da vacina.

Desde então foram descritas reações locais com eritema e pápula após a administração da vacina com progressivo agravamento (Figura 1).

 

 

O agravamento sucessivo desta reação levou à diminuição da dose de veneno administrada e ao aumento da dose dos anti-histamínicos antes da imunoterapia. A relação causal entre a aplicação de gelo após a administração da vacina e o aparecimento de reação local exuberante levantou a hipótese diagnóstica de uma urticária física associada, não valorizada previamente.

A doente foi questionada sobre a existência de sintomatologia prévia, caraterística de urticária ao frio, confirmando‑a e referindo que os episódios sintomáticos eram muito pouco frequentes e as situações de exposição ao frio eram raras, pelo que não tinha valorizado os sintomas até então. Referia na adolescência, durante o inverno e, no percurso de casa à escola em transporte público sem climatização, o aparecimento de lesões maculopapulares nas extremidades que revertiam espontaneamente.

Após a avaliação clínica e laboratorial, incluindo serologias virais (vírus Epstein‑Barr, citomegalovírus, vírus da hepatite A e B) e pesquisa de Helicobacter pylori, negativas, foram também excluídas outras etiologias para o quadro de urticária, nomeadamente défices de complemento, crioglobulinemia, vasculites e neoplasias.

Não se verificaram alterações no estudo do complemento ou positividade para crioglobulinas e marcadores de doença sistémica/vasculite (ANAs, anti‑dsDNA, p‑ANCA e c‑ANCA).

Na avaliação da sensibilização verificou‑se que os testes cutâneos por picada para aeroalergénios comuns (ácaros do pó doméstico e armazenamento, pólenes, fungos, látex e faneras de animais) foram negativos. Realizou ainda o teste de estimulação ao frio (teste do cubo de gelo) que foi positivo aos 3 minutos (diâmetro da pápula 30x55mm). Utilizou‑se como critério de positividade a ocorrência de pápula com diâmetro médio igual ou superior a 3 mm (
Figura 2).

 

 

Foi colocado o diagnóstico de urticária adquirida ao frio, idiopática, do tipo I (segundo classificação de Wanderer).

Recomendou‑se evicção de exposição ao frio (nomeadamente após administração de VIT), mantendo‑se profilaxia com anti-histamínico e antileucotrienos orais. Atualmente a doente encontra‑se assintomática, não se registando reações locais ou sistémicas durante ou após as últimas administrações de VIT (com a dose de veneno preconizada inicialmente ao 6.º mês após protocolo ultrarush).

O controlo analítico atual revela diminuição de IgE específica para abelha (4,73 kUA/L).

DISCUSSÃO

A urticária adquirida ao frio (UAF) carateriza‑se pela ocorrência de urticária e/ou angioedema após exposição ao frio. Sendo rara em idade pediátrica, na maioria dos casos é idiopática. Causas secundárias incluem crioglobulinemia, défices do complemento, vasculites, neoplasias e doenças infeciosas9.

Habitualmente é benigna e autolimitada, sendo os sintomas geralmente restritos às áreas expostas. No entanto, reações sistémicas (desde reações mucocutâneas com ou sem envolvimento respiratório, gastrintestinal e/ou cardiovascular) potencialmente fatais podem ocorrer, nomeadamente em caso de exposição intensa ou prolongada.

Curiosamente, foram descritos como prováveis fatores de risco para UAF, as picadas de medusas e as picadas de insetos, nomeadamente de abelha e vespa, bem como a imunoterapia com veneno de himenópteros10.

Embora a sensibilização a veneno de himenópteros seja relativamente comum, a associação à UAF tem sido pouco reportada. Por outro lado, e apesar da prevalência de doenças atópicas em doentes com UAF parecer semelhante à da população em geral, têm sido observados índices mais elevados de atopia nestes doentes10.

Os autores chamam a atenção para a pesquisa de comorbilidades em doentes a efetuar imunoterapia específica com alergénios e, em particular, a necessidade de investigação clínica de patologias como as urticárias físicas, geralmente autolimitadas e de resolução espontânea, e por isso raramente valorizadas. A sua coexistência ou o aparecimento durante a realização de ITA, nomeadamente com veneno de himenópteros, pode levar a diagnósticos erróneos de reação adversa a ITA, com a consequente suspensão da mesma, impedindo a evolução desejável da patologia alérgica de base, como é o caso da alergia a veneno de himenópteros.

 

REFERÊNCIAS

1. Nunes C, Pedro E, Santos AS, Lopes A, Costa AC, Todo‑Bom A, et al. Grupo de Interesse de ‘Alergénios e Imunoterapia’ da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC) – Normas de Orientação em Imunoterapia Específica – Rev Port Imunoalergologia 2011; 19:199‑213.         [ Links ]

2. Stewart GE, Lockey RF. Systemic reactions from allergen immunotherapy. J Allergy Clin Immunol 1992; 90:567‑78.         [ Links ]

3. Bernstein DI, Wanner M, Borish L, Liss GM. Twelve‑year survey of fatal reactions to allergen injections and skin testing: 1990‑2001. J Allergy Clin Immunol 2004; 113:1129‑36.         [ Links ]

4. Biló BM, Rueff F, Mosbech H, Bonifazi F, Oude‑Elberink JN; The EAACI interest Group on Insect Venom Hypersensitivity. Diagnosis of hymenoptera venom allergy. Allergy 2005; 60:1339‑49.         [ Links ]

5. Krishna MT, Ewan PW, Diwakar L, Durham SR, Frew AJ, Leech SC, et al. Diagnosis and management of hymenoptera venom allergy: British Society for Allergy and Clinical Immunology (BSACI) guidelines. Clinical Experimental Allergy 2011; 41:1201‑20.         [ Links ]

6. Frew AJ. Allergen immunotherapy. J Allergy Clin Immunol 2010; 125(2Suppl 2):S306‑13.         [ Links ]

7. Bonifazi F, Jutel M, Biló BM, Birnbaum J, Muller U. EAACI Interest Group on Insect Venom Hypersensitivity. Prevention and treatment of hymenoptera venom allergy: guidelines for clinical practice. Allergy 2005; 60:1459‑70.         [ Links ]

8. Golden DB, Moffitt J, Nicklas RA, Freeman T, Graft DF, Reisman RE et al. Stinging insect hypersensitivity: A practice parameter – update 2011. J Allergy Clin Immunol 2011; 127: 852‑4.         [ Links ]

9. Gomes S, Viegas V, Pinheiro A, Gaspar A. Anafilaxia induzida pelo frio. Revista do Hospital de Crianças Maria Pia 2010; 9:285‑8.         [ Links ]

10. Kutlu A, Aydin E, Goker K, Karabacak E, Ozturk S. Cold‑induced urticaria with systemic reactions after hymenoptera sting lasting for 10 years. Allergol Immunopathol 2013; 41:284‑4.         [ Links ]

 

Contacto:

Maria Letícia Pestana

Serviço de Imunoalergologia do Hospital de Santa Maria

Centro Hospitalar Lisboa Norte

Avenida Prof. Egas Moniz

1649‑035

Lisboa

E‑mail marialeticiapestana@gmail.com

 

Financiamento: Nenhum

 

Declaração de conflitos de interesse: Nenhum

 

Data de recepção / Received in: 02/05/2015

Data de aceitação / Accepted for publication in: 14/07/2015

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons