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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

Print version ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.23 no.4 Lisboa Dec. 2015

 

CASO CLÍNICO

 

Hipersensibilidade à fluoresceína – Revisão a propósito de um caso clínico

Fluorescein hypersensitivity – A case report and review

 

Ruben Duarte Ferreira1, Frederica Vian1, Fátima Cabral Duarte1, Manuel Pereira Barbosa1,2

1Serviço de Imunoalergologia, Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar de Lisboa Norte

2 Clínica Universitária de Imunoalergologia, Faculdade de Medicina de Lisboa

 

Contacto

 

RESUMO

A angiografia da retina com fluoresceína sódica é um método diagnóstico seguro, que apresenta uma baixíssima taxa de mortalidade. No entanto, é a causa mais comum de emergência médica na observação oftalmológica de ambulatório, devido ao risco de ocorrência de reações adversas imprevisíveis. A prevalência de alergia à fluoresceína não é conhecida. Apresenta‑se o caso clínico de um homem submetido a várias angiografias da retina no passado que, durante o último procedimento, desenvolveu quadro de urticária aguda. A investigação foi positiva a nível do teste intradérmico com fluoresceína na diluição 1/10. A maioria das reações adversas à fluoresceína devem‑se a mecanismos não mediados por IgE. A alergia à fluoresceína pode ser confirmada por testes cutâneos. A angiofluoresceinografia tem riscos potencialmente fatais, como a anafilaxia, os quais devem ser rapidamente identificados e eficazmente tratados.

Palavras‑chave: Alergia, angiografia, fluoresceína, urticária, retina.

 

ABSTRACT

Retinal angiography with sodium fluorescein is a safe diagnostic method with an extremely low mortality rate. However, it is also the most common cause of outpatient emergencies in ophthalmology clinics due to the risk of unpredictable adverse reactions. The prevalence of fluorescein allergy is not known. We present the case of a man with a history of several retinal angiographies. During his last procedure, he developped acute urticaria. Intradermal skin tests were positive on the 1/10 dilution. Most adverse reactions to fluorescein are due to non IgE‑mediated mechanisms. Fluorescein allergy can be confirmed by skin testing. Fluorescein angiography presents potentially fatal risks, such as anaphylaxis, which should be rapidly identified and effectively treated.

Key‑words: Allergy, angiography, fluorescein, urticaria, retina.

 

INTRODUÇÃO

A fluoresceína é um composto orgânico de baixa massa molecular, hidrossolúvel, altamente fotoluminescente, sintetizado pela primeira vez em 1871 por Adolf von Baeyer. A angiografia com fluoresceína sódica, introduzida em 1961, é um método diagnóstico de referência das patologias coriorretinianas, tais como a degenerescência macular e a retinopatia diabética, auxiliando também no tratamento médico ou por laser destas patologias1. É um método considerado seguro, mesmo com a administração endovenosa do fármaco, com uma taxa de efeitos adversos entre 3 a 20%, a maioria deles ligeiros, como náuseas ou vómitos2. Reações adversas após administração oral foram estimadas entre 1 a 2% dos casos. O procedimento apresenta uma baixíssima taxa de mortalidade (1:222 000) quando comparado com a administração de outros radiocontrastes hiperosmolares, razão pela qual as suas complicações têm sido pouco estudadas ao longo do tempo3.

A angiofluoresceinografia é, no entanto, a causa mais comum de emergência médica na observação oftalmológica de ambulatório. Devido ao risco de ocorrência de reações graves, os médicos e outros profissionais de saúde envolvidos no procedimento devem ser cuidadosos na monitorização do doente4. Alguns autores referem que doentes com história de reação adversa após angiofluoresceinografia têm 48,6% de probabilidade de voltarem a experienciar nova reação se submetidos a novo procedimento1,3. Isto pode sugerir o eventual desenvolvimento de sensibilização. Contudo, a prevalência de alergia à fluoresceína não é conhecida e crê‑se que fenómenos mediados por IgE sejam muito raros.

CASO CLÍNICO

Homem de 18 anos com antecedentes de rinite alérgica persistente, moderada a grave, controlada, com sensibilização a ácaros do pó doméstico e de armazenamento, medicado com desloratadina oral e fluticasona nasal.

Apresentava um quadro sindromático com estudo genético ainda em curso, caracterizado por epilepsia, surdez neurossensorial profunda, retinopatia pigmentada e miopia.

Tinha sido submetido a mais de dez angiografias da retina no passado para seguimento da sua patologia ocular, sempre com fluoresceína como meio de contraste radiológico e sempre sem registo de qualquer reacção adversa.

Durante a última angiografia ocular, cerca de cinco minutos após a administração endovenosa de fluoresceína (100 mg.mL‑1), o doente desenvolveu lesões maculo‑papulares pruriginosas que se dispersaram por todo o tegumento. Não se verificou qualquer outra sintomatologia associada, nomeadamente hiperemia conjuntival, edema e/ou eritema palpebral, queixas respiratórias ou gastrointestinais. O quadro teve resolução completa cerca de 60 minutos após administração de terapêutica endovenosa de urgência não especificada.

Foi referenciado à Consulta de Imunoalergologia com a hipótese diagnóstica de urticária aguda como reacção de hipersensibilidade tipo I à fluoresceína. Efetuou testes cutâneos (TC) por picada com fluoresceína (100 mg.mL‑1) e látex, os quais foram negativos. O soro fisiológico e a histamina (10 mg.mL‑1) foram utilizados como controlos negativo e positivo, respetivamente. O doente foi submetido, ainda, a testes intradérmicos com fluoresceína nas diluições de 1:1000, 1:100 e 1:10, obtidas a partir da formulação previamente identificada. Foi utilizado soro fisiológico como controlo negativo. Os testes foram positivos na diluição de 1:10 (pápula de 9 mm de maior diâmetro e eritema circundante) (Figura 1).

 

 

Os TC por picada e intradérmicos com fluoresceína (100 mg.mL‑1) nas diluições de 1:1000, 1:100 e 1:10 foram também realizados em 4 controlos (2 indivíduos saudáveis e 2 atópicos) e foram negativos.

DISCUSSÃO

As reações adversas após a angiografia com fluoresceína podem ser classificadas em ligeiras, moderadas ou graves3. As reações ligeiras são de caráter transitório e não requerem tratamento, como náuseas, vómitos, esternutos ou prurido. As reações moderadas, embora também transitórias, necessitam de tratamento, como a urticária, a febre, a síncope ou a necrose local. As reacções graves têm habitualmente efeitos prolongados e exigem tratamento intensivo, caracterizando‑se por complicações sistémicas a nível respiratório (ex. broncospasmo, angioedema), cardíaco (ex. isquemia miocárdica, choque) ou neurológico (ex. convulsões tonico‑clonicas), bem como situações afetando mais do que um órgão ou sistema em simultâneo (ex. anafilaxia). As reações ligeiras são as mais frequentes, com uma incidência de 2 a 14 %2.

No caso apresentado, a reação classificar‑se‑ia como moderada, muito rara (<1%)3.

O mecanismo fisiopatológico destas reações não está ainda estabelecido, sendo consideradas como possibilidades: 1. Fenómenos vasovagais com bradicardia, hipotensão e diminuição da perfusão de órgão; 2. Reações de hipersensibilidade mediadas por IgE; 3. Mecanismos histaminolibertadores não alérgicos; 4. Ativação simpática relacionada com a ansiedade, associada a taquicardia e stress miocárdico; 5. Efeito tóxico vasospástico direto da injeção endovenosa; 6. Efeitos de um contaminante ou excipiente; 7. Efeito direto e sistémico dos midriáticos tópicos, como a fenilefrina; 8. Destruição do endotélio vascular através do factor XII e da cascata de coagulação; 9. Combinação dos fatores anteriores3,4.

Estão descritos como fatores de risco para a ocorrência de eventos adversos a diabetes (p=0,002; RR=1,80), a hipertensão arterial (p=0,002; RR=1,84) e a atopia (p=0,001; RR=3,9)2,5. Num estudo recente, que documenta 10 casos de anafilaxia após administração de fluoresceína endovenosa, foi demonstrado que doentes diabéticos que iniciavam os sintomas menos de três minutos após o início do procedimento tinham um risco acrescido para hipotensão e choque, devendo ser cuidadosamente monitorizados6. Outros fatores, como a técnica e a velocidade de administração, o volume injetado ou a concentração da solução, não parecem ter influência no aparecimento de efeitos adversos7.

Os doentes com história de patologia alérgica (anafilaxia, asma brônquica, rinite alérgica ou urticária) também apresentam uma incidência superior de efeitos adversos após a administração de fluoresceína2. Alguns autores incluem, também, os doentes com alergia alimentar e os doentes com história prévia de alergia medicamentosa, em particular antibióticos betalactâmicos.8 Neste último grupo parece haver também um aumento da taxa de efeitos adversos moderados.

Quase todos os doentes com problemas oculares são expostos à fluoresceína durante os exames de rotina, o que pode explicar uma possível sensibilização a este composto.

O estudo alergológico, nomeadamente através de TC por picada e intradérmicos, deve sempre ser considerado em doentes com história compatível com hipersensibilidade à fluoresceína. Isto permite o diagnóstico diferencial com outros tipos de reação adversa e é essencial para o tratamento apropriado e aconselhamento do doente.

Contudo, de que tenhamos conhecimento, na literatura existem apenas 5 casos publicados em que a investigação alergológica nos doentes com história de reacção adversa após angiofluoresceinografia tenha sido positiva1,4,7,9.

Na verdade, a maioria dos eventos de maior gravidade foram considerados anafilactoides, devido à maior probabilidade de se tratarem de processos decorrentes da desgranulação mastocitária direta. Assim, os TC, quando negativos, não excluem que a fluoresceína seja o agente causal da manifestação clínica8. Os TC são fracos preditores da ocorrência de reações adversas na população geral, mas permanecem o método diagnóstico mais seguro de hipersensibilidade mediada por IgE, particularmente em doentes com manifestações graves, como a anafilaxia7. Outros métodos diagnósticos a considerar seriam o doseamento de IgE‑especifica para a fluoresceína, o qual não se encontra disponível no mercado, e o teste de ativação de basófilos, método ainda não validado.

No caso apresentado foi confirmada a hipótese de alergia à fluoresceína, tendo os testes intradérmicos documentado a presença de um mecanismo mediado por IgE. A diluição de 1:10, positiva neste doente, foi negativa em todos os quatro individuos‑controlo testados. O doente recebeu indicação para evicção deste meio de contraste radiológico, utilizando um fármaco alternativo caso necessitasse de efetuar nova angiografia da retina (ex. verde de indocianina). Contudo, a fluoresceína é um meio de contraste privilegiado para estudo das patologias coriorretinianas e existia a possibilidade de o doente necessitar novamente deste contraste por falta de alternativas viáveis. Nestas situações, a literatura propõe a utilização de pre‑medicacao com corticoides e anti‑histaminicos, que poderiam contribuir para uma suavização das manifestações clínicas. Em dois casos publicados foi tentada a dessensibilização à fluoresceína em doentes com história prévia de angioedema da face após angiofluoresceinografia.

Num dos casos foi seguido um protocolo de administração endovenosa com doses crescentes de fluoresceína ao longo de três dias, tendo a angiografia sido realizada ao terceiro dia, sem intercorrências9. Noutro caso, o protocolo foi cumprido com sucesso em apenas um dia10.

No caso do doente referido, este recebeu um protocolo de pré-medicação para situações de absoluta necessidade de utilização de fluoresceína (Quadro 1). Contudo, mesmo com pré-medicação existe sempre risco elevado em doentes com história de reação prévia e mesmo os doentes aos quais o fármaco é administrado pela primeira vez devem ser alertados para o risco imprevisível de ocorrência de eventos adversos1. Os profissionais de saúde envolvidos neste procedimento devem estar cientes de que o choque anafilático é uma complicação potencialmente fatal da angiofluoresceinografia, devendo estar sempre disponível equipamento de reanimação cardiorrespiratória. É fundamental a obtenção de dados detalhados do doente, em particular a história de administração prévia de fluoresceína ou reações anteriores de hipersensibilidade.

 

 

CONCLUSÃO

A maioria das reações adversas à fluoresceína devem‑se a mecanismos não mediados por IgE. A administração prévia de fluoresceína é o fator de risco mais importante para a ocorrência de reações adversas. A alergia à fluoresceína pode ser confirmada por testes cutâneos.

A angiofluoresceinografia é um método diagnóstico seguro mas com riscos potencialmente fatais, como a anafilaxia. Os profissionais de saúde envolvidos neste processo devem estar preparados para identificar os doentes de maior risco, bem como para identificar e tratar precocemente reações graves.

 

REFERÊNCIAS

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Contacto:

Ruben Daniel Duarte Ferreira

Serviço de Imunoalergologia, Hospital Santa Maria

Centro Hospitalar Lisboa Norte

Av Prof. Egas Moniz

1649‑035 Lisboa

E‑mail ruben.ferreira@gmail.com

 

Financiamento: Sem apoios financeiros a declarar.

 

Data de receção / Received in: 21/10/2015

Data de aceitação / Accepted for publication in: 31/11/2015

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