A analogia adaptada entre as histórias de Agatha Christie e o livro de Manuel Alegre podia servir para nome de um filme internacional e ajusta-se perfeitamente à realidade da alergia humana e animal.
Sensibilização a diferentes alergénios, diferentes taxas de sensibilização, diferentes padrões de alergia, mas igualmente alérgicos, são o mote. Do nosso lado e do deles fomos descobrindo novas e interessantes semelhanças: a dermatite e a conjuntivite alérgicas causam-nos prurido, o broncospasmo asmático causa-nos dispneia, a alergia alimentar provoca-nos dermatite, queilite e enterite, e às vezes pior. A higiene, nossa e deles, tomou lugar nas nossas vidas. Estamos mais limpos, mas também mais
alérgicos. Afinal, milhões de anos de evolução prepararam-nos para combater autonomamente os inimigos invisíveis, que agora eliminamos preventivamente, deixando o sistema imunitário numa espécie de ócio instável.
A segurança apresenta uma inegável vantagem, a da própria sobrevivência, mas isso não nos basta. Queremos qualidade de vida. Estudamos e aprendemos para isso.
Animais nossos amigos - Amigos dos nossos animais!
Atualmente, ao arranjar um animal de estimação adere-se a este espírito, perfeitamente inserido no objetivo de qualidade de vida e indissociável da preocupação com a saúde familiar, relacionada com afeções, quer de natureza zoonótica, quer alérgica. Se somos alérgicos ao gato, ao coelho ou ao cão que temos lá em casa, a questão assume quase sempre contornos de grande delicadeza. Como vamos, afinal, fazer perante uma situação tão complexa como não podermos conviver plenamente com o nosso
companheiro, aquele familiar de uma espécie diferente?
Outras vezes, são eles que, sensibilizados, desenvolvem alergias diversas, como às pulgas, aos ácaros do pó doméstico, aos pólenes, aos fungos aerógenos, à comensal Malassezia ou a alimentos. O prurido faz o animal coçar-se, ferir-se, infetar-se e sofrer. A sua qualidade de vida fica seriamente comprometida e nós, os donos, ou tutores, como agora se usa, sofremos igualmente. Pretende-se, pois, que, tal como nós, sejam tratados o mais eficazmente possível.
São várias as opções terapêuticas, desde a comum farmacoterapia, onde os corticosteroides sistémicos mantêm a sua eficácia e utilidade, sobretudo perante situações agudas, evitando também a progressão da memória imunitária no sentido alérgico. Nos nossos animais, onde o órgão-alvo é frequentemente a pele, o papel dos anti-histamínicos encontra-se muito limitado, face à diversidade dos imunomediadores envolvidos. O recurso aos mais recentes fármacos disponíveis, atuando sobre a IL-31 (mediador fundamental no desencadeamento do prurido), quer indiretamente, como o maleato de oclacitinib (inibidor da janus quinase 1), ou diretamente, como o lokivetmab (anticorpo monoclonal, caninizado, recombinante, anti-IL-31), constitui um marco muito favorável no controlo do prurido e respetivas consequências, sem os efeitos secundários a longo prazo dos corticosteroides sistémicos.
No entanto, não estão isentos de efeitos secundários, como os de natureza digestiva, relacionados com o oclacitinib, ou os relacionados com a possível resposta imunitária adversa, associada à pequena componente não canina, remanescente no lokivetmab, sobretudo naquelas administrações mais prolongadas.
Não sendo qualquer tratamento 100% eficaz ou isento de efeitos secundários, ressalta-se a utilidade de uma abordagem terapêutica multimodal, a nível da evicção do contacto com as espécies alergénicas implicadas, da integridade da barreira cutânea, da inibição dos mediadores inflamatórios e pruriginosos e do recondicionamento da resposta imunitária. Clinicamente diagnosticada a condição atópica ou de alergia alimentar, torna-se fundamental identificar as espécies alergénicas relacionadas com a alergia individual. Se, perante a alergia alimentar, aquela identificação passa pelo recurso a provas de provocação com alimentos simples, após um período de dieta de exclusão, para o diagnóstico de alergia a aeroalergénios a identificação deverá realizar-se recorrendo a testes cutâneos, maioritariamente intradérmicos, e ao doseamento de IgE específicas circulantes, facultando a informação necessária para a imunoterapia específica. Não sendo possível, por enquanto, recorrer a imunoterapia verdadeiramente alergénio-específica baseada em alergénios moleculares, em virtude de o próprio diagnóstico resolvido por componentes não estar disponível, a vacinação para alergia canina ao ácaro Dermatophagoides farinae, por exemplo, faz-se já com a garantia de concentração para Der f 15 e Der f 18, alergénios major para o cão.
Para além do cão, a alergia equina e felina são atualmente também muito relevantes em termos de casuística, ainda que o conhecimento existente se encontre mais incipiente. Contudo, nos últimos anos, vimos observando um progresso muito rápido do conhecimento científico relativamente ao cavalo. Por exemplo, a maioria dos alergénios moleculares hoje conhecidos para animais pertence a diferentes espécies de culicoides e é justamente para o cavalo. Quanto ao gato, o diagnóstico de síndrome atópica ainda se baseia bastante na exclusão de outras afeções. O conhecimento das concentrações mais adequadas dos extratos para testes cutâneos requer também mais investigação, sobretudo na espécie felina.
Encontramo-nos, pois, num momento de viragem no desenvolvimento do conhecimento científico em imunoalergologia veterinária e comparada. A vertente veterinária tira vantagem da informação e recursos metodológicos desenvolvidos para a nossa espécie, enquanto a vertente humana beneficia da informação obtida no domínio veterinário, onde os animais são nossos conviventes e, em condições éticas, possíveis modelos de estudo.