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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.30 no.4 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Dez-2022

https://doi.org/10.32932/rpia.2022.12.092 

ARTIGO DE REVISÃO

Anafilaxia no idoso: Particularidades na abordagem diagnóstica e terapêutica

Anaphylaxis in the elderly: Diagnostic and therapeutic management particularities

1 Serviço de Imunoalergologia, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, EPE, Vila Nova de Gaia, Portugal


RESUMO

Com o aumento global da esperança média de vida e consequente prevalência crescente de patologias relacionadas com o envelhecimento, as doenças do foro alérgico não são exceção, sendo cada vez mais frequentes na prática clínica diária. A anafilaxia, enquanto reação de hipersensibilidade grave e potencialmente fatal, encontra‑se associada a uma maior morbimortalidade nesta faixa etária, apresentando particularidades próprias que merecem ser destacadas, não só ao nível do diagnóstico, como do seu tratamento. A presença de múltiplas comorbilidades e consequente polimedicação, frequentemente com fármacos anti‑hipertensores que podem não só condicionar reações anafiláticas, como também dificultar o tratamento destas, juntamente com o predomínio de sintomas cardiovasculares e outros fatores inerentes ao envelhecimento, conferem maior vulnerabilidade a esta população. Assim, torna‑se pertinente identificar e sensibilizar os profissionais de saúde para a existência de características particulares da anafilaxia no idoso, de modo a permitir uma intervenção mais direcionada e uma melhoria no prognóstico destes doentes.

Palavras‑chave: Anafilaxia; comorbilidades; envelhecimento; idoso

ABSTRACT

The global increase in life expectancy is associated to the rising prevalence of pathologies typically related to aging, with allergic diseases being growingly described. Anaphylaxis, a severe and potentially fatal hypersensitivity reaction, is associated with higher morbidity and mortality in this age group, presenting particularities that deserve to be highlighted, not only regarding its diagnosis but also its treatment. The existence of multiple comorbidities resulting in polymedication, namely with antihypertensive drugs that may not only condition anaphylactic reactions but also hinder their treatment, together with the predominance of cardiovascular symptoms and other age associated factors, confer greater vulnerability to this population. It is therefore pertinent to identify and raise awareness of the existence of particularities of anaphylaxis in the elderly, allowing a more directed intervention and improvement in prognosis.

Keywords: Aging; anaphylaxis; comorbidities; elderly

INTRODUÇÃO

A esperança média de vida tem vindo a aumentar ao longo dos anos, não só na Europa como em todo o mundo1,2. Em Portugal, em 2020, 22,1% tinham mais de 65 anos segundo o Eurostat, e a OMS prevê que em 2050 uma em cada seis pessoas tenha mais que 60 anos. Convencionalmente, a definição de idoso considera todos os que têm 65 ou mais anos3. Juntamente com outras patologias tipicamente associadas ao envelhecimento, tem vindo a ser observada uma maior incidência das doenças alérgicas em idade geriátrica, com uma estimativa de cerca de 10%, com tendência a aumentar2,4,5. Este aumento resulta não só do maior número de diagnóstico de doenças alérgicas na infância em doentes que atingem faixas etárias avançadas, como da existência, na atualidade, de um maior esclarecimento e capacidade de diagnóstico das patologias alérgicas no idoso1.

O maior conhecimento fisiopatológico das patologias alérgicas, associado à evolução dos meios auxiliares de diagnóstico, veio desempenhar um papel importante, ao permitir o esclarecimento diagnóstico. Patologias como a alergia alimentar, a alergia a fármacos e a anafilaxia têm vindo a ser cada vez mais frequentes em pessoas com mais de 65 anos4,6.

Durante o processo de envelhecimento ocorrem múltiplas alterações a nível fisiológico, nomeadamente nos mecanismos do sistema imunológico adaptativo, que facilitam o aparecimento da doença alérgica1. A diferente distribuição linfocitária, com redução do seu número, assim como a presença de um estado inflamatório crónico relacionado com a produção de citocinas específicas, com um predomínio do papel das citocinas de tipo 2, dotam este processo, denominado imunossenescência, de características únicas que serão abordadas de seguida1,7.

A anafilaxia é uma reação de hipersensibilidade grave e potencialmente fatal que pode afetar doentes de qualquer faixa etária8. O seu diagnóstico, segundo os novos critérios propostos pela World Allergy Organization em 2020, deve ser considerado sempre que se verifica uma reação de início súbito com envolvimento da pele e/ou mucosas (urticária, eritema ou prurido generalizado, angioedema) associada a sintomas respiratórios e/ou cardiovasculares e/ou gastrointestinais, ou início súbito de hipotensão, broncospasmo ou obstrução da via aérea, quando a anafilaxia é considerada possível, mesmo na ausência dos sintomas cutâneos típicos9. A sua incidência global varia entre 50 a 112 episódios por 10 000 pessoas‑ano, enquanto a prevalência se estima entre 0,3‑5,1%9. Em Portugal, o levantamento de dados nacionais relativos aos 10 anos de registo nacional de anafilaxia, que incluiu 1783 doentes com anafilaxia com idades compreendidas entre os 3 meses e os 90 anos, apresentou como média de idades 32±20 anos, observando‑se a presença de 6% pertencentes à faixa etária superior a 65 anos10. Na população adulta avaliada neste trabalho, as causas principais de anafilaxia foram os fármacos, seguindo‑se os alimentos e venenos de himenópteros10.

A literatura atual carece de informação relativa às características e abordagem dos doentes idosos que se apresentam com anafilaxia, ao contrário do que se observa para a idade pediátrica. Torna‑se assim relevante explorar a doença alérgica no idoso, nomeadamente da anafilaxia, reação grave e potencialmente fatal. Esta abordagem torna‑se particularmente desafiante nesta faixa etária perante a existência de uma série de obstáculos potenciais que se poderão verificar, não só ao nível do diagnóstico, como do tratamento.

IMUNOSSENESCÊNCIA

A imunossenescência refere‑se às diferentes alterações que ocorrem ao nível do sistema imunitário ao longo da vida, tanto da imunidade inata como adaptativa2.

O número total de linfócitos, o principal subtipo circulante dos leucócitos nos primeiros anos de vida, diminui progressivamente desde o início da idade adulta, atingindo números muito reduzidos a partir dos 60 anos de idade1. Relativamente à população de linfócitos T, que representam o subtipo predominante, corresponde a cerca de 55‑70% do total de linfócitos nos jovens e permanece assim até idades avançadas1. Contudo, ao longo dos anos verifica‑se uma redução das subpopulações linfocitárias caracterizada por uma diminuição de células naïve e uma acumulação de células de memória e linfócitos senescentes2.

A imunossenescência é um processo de remodelação constante, verificando‑se também como sua manifestação a existência de um estado pró‑inflamatório sistémico crónico de baixo grau, com produção de diferentes citocinas circulantes que vão afetar a funcionalidade do sistema imunitário nos idosos1,2. Apesar de as citocinas de tipo 1 (IFN‑ų, TNF‑ß, IL‑2, IL‑12) serem quantitativamente dominantes, parece haver também um aumento dos níveis de imunoglobulina E total e de citocinas de tipo 2 (IL‑4, IL‑5) com o envelhecimento, traduzindo uma alteração dinâmica, com um aumento do papel das citocinas de tipo 2 em detrimento das citocinas de tipo 12,11. Também se observa uma disfunção das células apresentadoras de antigénio, caracterizada pela alteração na expressão de moléculas coestimuladoras, condicionando uma disfunção na apresentação e processamento antigénico2.

Associadamente, surgem alterações na população linfocitária com a idade, observando‑se um declínio gradual dos linfócitos B, presentes em número elevado aquando do nascimento, ao contrário das células natural killer, que apesar de existentes em número reduzido nos primeiros anos de vida, vão aumentando progressivamente1.

Apesar da redução de linfócitos B com o envelhecimento, observa‑se um aumento significativo do nível sérico das imunoglobulinas G e A e das subclasses da imunoglobulina G12. A deterioração das respostas primárias à imunização e outros aspetos da imunidade humoral, incluindo a resposta das mucosas e produção de autoanticorpos, levantam a hipótese de um desarranjo ao nível da função dos linfócitos B e/ou a sua compartimentalização nos tecidos linfoides secundários com a idade1.

Há também evidência, relativamente às células efetoras da resposta alérgica, de redução na desgranulação dos eosinófilos em resposta à estimulação pela IL‑5 e uma diminuição da função dos mastócitos, apesar de não se observar redução do seu número a nível tecidular1,2.

ANAFILAXIA NO IDOSO

Fatores de risco

Os idosos constituem um grupo de risco particular para anafilaxia, não só devido à existência de diversas comorbilidades presentes nesta faixa etária, como também ao facto de frequentemente se encontrarem polimedicados, notadamente com fármacos que poderão dificultar o tratamento de uma reação anafilática. Vários estudos realizados no âmbito da anafilaxia demonstraram o maior risco existente nesta população para reações graves6,1315.

A idade avançada tem sido consistentemente associada a um maior risco de morte por anafilaxia16,17,18,20.

No Reino Unido, a idade média para morte por anafilaxia a fármacos foi de 58 anos e na Austrália a maioria ocorreu entre os 55 e 85 anos16. Um estudo epidemiológico realizado também no Reino Unido, que analisou dados relativos a um período de 20 anos, constatou que os doentes com mais de 65 anos tinham um maior risco de admissão hospitalar e morte nos casos de anafilaxia iatrogénica e por picada de himenópteros21. Nos Estados Unidos, um estudo epidemiológico demonstrou que a taxa de mortalidade por anafilaxia foi superior nas idades compreendidas entre os 75 e os 84 anos, aumentando com a idade22, enquanto noutro se verificou um maior risco a partir dos 65 anos de anafilaxia grave associada a necessidade de admissão hospitalar em cuidados intensivos, entubação ou reação quase-fatal17.

Relativamente às comorbilidades, destacam‑se de forma mais significativa, não só as doenças respiratórias, como também as doenças cardiovasculares e cerebrovasculares1. No que diz respeito à presença de comorbilidades, as doenças respiratórias obstrutivas, como a asma e a doença pulmonar obstrutiva crónica, são um fator de gravidade conhecido e transversal a todas as idades que, associando‑se à diminuição da função pulmonar que se verifica no envelhecimento, condicionam o risco de ocorrência de reações mais graves pela diminuição da reserva respiratória resultante da obstrução brônquica e consequente hipoxemia, podendo cursar com paragem respiratória9,23.

Destacam‑se também as doenças cardiovasculares como a insuficiência cardíaca congestiva, a doença cardíaca isquémica, a hipertensão e as disritmias1. Nas pessoas com idade superior a 50 anos, a presença de morbilidade cardiovascular preexistente condiciona um maior risco de anafilaxia fatal, nomeadamente quando associada a fármacos16. Um estudo realizado nos EUA demonstrou que a idade superior a 65 anos e a presença de comorbilidades, sobretudo respiratórias e cardíacas, estavam significativamente relacionadas com anafilaxia grave, implicando necessidade de internamento, entubação ou critérios de anafilaxia quase‑fatal17. A doença coronária preexistente também é considerada um fator de pior prognóstico na anafilaxia(24). As doenças cardiovasculares têm como mecanismo subjacente uma disfunção endotelial resultante de alterações ao nível das vias de sinalização vascular endotelial25. Os mecanismos envolvidos são complexos e implicam múltiplos mediadores vasoativos, ocorrendo uma remodelação sistémica microvascular com consequente perturbação da vasodilatação dependente do endotélio e aumento da vasoconstrição25. A disfunção destas vias de sinalização pode levar a respostas desreguladas aos mediadores vasoativos da anafilaxia, com atingimento dos mecanismos fisiológicos compensatórios, ou potencialmente interferir com os efeitos da adrenalina, predispondo os doentes a uma reação mais grave26. A anafilaxia pode evoluir para choque anafilático como consequência da diminuição do tónus vascular e extravasamento de fluidos, resultando num misto de choque distributivo, hipovolémico e possivelmente cardiogénico, pela ação dos mediadores alérgicos que também podem afetar a função cardíaca27. O efeito da adrenalina resulta da estimulação dos recetores α‑1 e ß‑1 adrenérgicos, mas também dos ß‑2, que promovem a broncodilatação e estabilização dos mastócitos e basófilos.

As comorbilidades cardiovasculares implicam um atingimento dos mecanismos fisiológicos compensatórios, o que poderá levar a uma incapacidade em tolerar as complicações da anafilaxia, como hipotensão, hipoxia ou disritmias, ou mesmo o tratamento desta com adrenalina, quando comparado com os doentes jovens17,22. Esta situação poderá ser ainda mais relevante nos doentes com doença coronária, pois o aumento dos mastócitos cardíacos associado à estenose coronária subjacente aumenta o risco de hipoxia miocárdica17.

Patologias crónicas como diabetes mellitus e doença renal crónica, frequentes na população idosa, podem cursar com insuficiência renal aguda como complicação de choque anafilático, no contexto da desidratação28.

As doenças neoplásicas, mais frequentes na população idosa, também podem estar associadas a um maior risco de anafilaxia(29,30). Esta resulta predominantemente de hipersensibilidade aos fármacos antineoplásicos, dos quais se destaca pela sua frequência e importância os sais de platina e taxanos, que muitas vezes obriga a esquemas de dessensibilização, procedimentos que condicionam por si só um risco acrescido de reações anafiláticas, e que, associados ao estado clínico do doente muitas vezes debilitado e com menor reserva fisiológica, podem cursar com pior prognóstico29,30.

A obesidade, apesar de não diretamente associada a nenhum grupo etário específico, pode estar presente no idoso, podendo associar‑se a maior risco de anafilaxia, nomeadamente em contexto perioperatório, com bloqueadores neuromusculares31.

A presença de doenças mastocitárias sistémicas confere um risco aumentado de anafilaxia independente da idade, mas, pela sua gravidade, interessa referir a importância da sua investigação nos doentes com história de anafilaxia, incluindo nos doentes com idade avançada6,13.

A polimedicação é frequentemente encontrada na população idosa, explicada em parte pela coexistência de múltiplas doenças crónicas32. Uma definição possível de polimedicação é a toma regular de cinco ou mais fármacos32. Os idosos encontram‑se assim particularmente suscetíveis, não só à ocorrência de efeitos secundários adversos, como a potenciais interações farmacológicas nocivas32,33.

A medicação crónica cardiovascular, prescrita com maior frequência nos doentes idosos, pode também influenciar negativamente o prognóstico de uma reação anafilática26. O uso de medicação anti‑hipertensora associa‑se ao envolvimento de um maior número de órgãos e sistemas durante a anafilaxia e a um maior risco de admissão hospitalar, independentemente da idade26,34.

Este risco aumenta quando se verifica a utilização de múltiplos fármacos anti‑hipertensores em simultâneo, que poderá resultar da presença e gravidade das comorbilidades cardiovasculares subjacentes ou da combinação dessas comorbilidades com os fármacos prescritos para as tratar26,34. O papel dos fármacos anti‑hipertensores na anafilaxia, sobretudo os bloqueadores beta‑adrenérgicos e os inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA), pode ocorrer de diferentes formas, estando associada a efeitos diretos nos mastócitos, com consequente aumento na concentração dos seus mediadores, contribuindo também para o agravamento da deterioração dos mecanismos compensatórios tipicamente associado ao envelhecimento2,6,13,17. A utilização de IECA demonstrou estar associada a reações anafiláticas graves em doentes com alergia a veneno de himenópteros26.

Os IECA inibem competitivamente a enzima conversora da angiotensina, impedindo a angiotensina I de ser convertida em angiotensina II, o que leva a ausência de vasoconstrição periférica e diminuição de resistência vascular periférica, diminuindo a pressão arterial35. A enzima conversora da angiotensina encontra‑se também envolvida no metabolismo de vários peptídeos, nomeadamente a bradicinina. A bradicinina estimula a síntese de óxido nítrico, o que potencia a vasodilatação, podendo causar hipotensão e também estimular o aparecimento de broncospasmo e de angioedema, nomeadamente faríngeo26.

Sendo o choque anafilático um choque do tipo distributivo, a utilização de IECA pelos seus mecanismos inerentes poderá contribuir para um pior prognóstico. Estudos englobando grupos populacionais de maiores dimensões são necessários para determinar de forma precisa os mecanismos responsáveis pela maior gravidade da anafilaxia verificada nos doentes sob tratamento com IECA34. Também se observa um aumento da gravidade da anafilaxia em doentes medicados com bloqueadores beta‑adrenérgicos, predominantemente não cardiosseletivos, podendo ocorrer com a administração da adrenalina um efeito α‑adrenérgico isolado com potencial hipertensão grave23. Na anafilaxia, através do bloqueio dos recetores ß‑adrenérgicos, podem levar à exacerbação do broncospasmo, reduzir a contractilidade cardíaca com bradicardia paradoxal e interferir com a resposta terapêutica da adrenalina, tanto através do bloqueio dos recetores ß‑1 como ß‑226,36,37. No entanto, em doentes com patologia cardíaca, como insuficiência cardíaca congestiva ou doença isquémica miocárdica, a utilização de bloqueadores beta‑adrenérgicos poderá melhorar a sobrevida, sendo o benefício terapêutico de redução de mortalidade por doença cardíaca potencialmente superior ao risco de agravamento da reação anafilática38.

Diversos outros fármacos poderão interferir com as células efetoras da reação alérgica, como os anti‑inflamatórios não esteroides (AINES) que, através do aumento da formação de leucotrienos, funcionam como cofatores importantes tanto para a urticária como para a anafilaxia e facilitam também a absorção de alergénios a nível gastrointestinal2,6,13.

Os antidepressivos tricíclicos, inibidores da monoamina oxidase (MAO), e os neuroléticos podem aumentar o risco cardíaco associado à administração de adrenalina pelo aumento da sua concentração sérica acima de níveis terapêuticos, ao interferirem com a sua degradação2,23,39.

A utilização de fármacos com potencial sedativo, assim como psicotrópicos, podem alterar a capacidade de reconhecimento dos sintomas, com o consequente aumento do risco de morte6,13.

Esta junção de diferentes fatores de risco interfere no prognóstico e na resposta ao tratamento da anafilaxia na população idosa1.

Etiologia

Os fatores desencadeantes também diferem muitas vezes dos observados nos doentes mais jovens. Foi demonstrado que a anafilaxia de causa iatrogénica resultante da utilização de fármacos ou meios de contraste iodado aumentava com a idade, estando também associada a uma maior gravidade nos doentes idosos6,15,16,19,40,41. A frequência de doentes polimedicados aumenta com o envelhecimento, facilitando a possibilidade de sensibilização devido à maior exposição do indivíduo a múltiplos fármacos, podendo desta forma resultar num aumento do risco de reação de hipersensibilidade a fármacos41.

Em idade geriátrica, verifica‑se também a utilização concomitante de fármacos de diferentes classes, sendo a mais frequente a associação de antibióticos e AINES, aumentando o risco de reação de hipersensibilidade a fármacos6. Foi demonstrado que a idade e a utilização de fármacos, tanto por via oral como endovenosa, apresentavam correlação significativa com a ocorrência de hipotensão como sintoma da anafilaxia25. O facto de ser mais frequente a administração parentérica, que condiciona uma maior e mais rápida exposição ao alergénio, poderá também favorecer a ocorrência de reações de maior gravidade1,39. Campbell et al. verificaram igualmente um maior número de anafilaxias relacionadas com a utilização de meios de contraste iodados, o que se associa provavelmente à crescente necessidade de recorrer a meios de diagnóstico imagiológico com o envelhecimento, sobretudo na população analisada pelos autores, em contexto de serviço de urgência40.

A idade também é considerada fator de risco para anafilaxia associada a veneno de himenópteros, sendo mais frequentemente encontrada nas faixas etárias avançadas6,19,4244.

Estes dados demonstram que a reatividade clínica aos venenos de himenópteros aumenta com a idade, apesar de o risco de exposição individual ser comparável ao de adultos mais jovens, embora este estudo sugira que os idosos possam estar mais expostos ao exterior em atividades de lazer, nomeadamente de jardinagem, ou pela maior frequência de comorbilidades, sobretudo cardiovasculares, que poderão intensificar o padrão de resposta clínica6.

O aumento da mortalidade que se observa nestas faixas etárias verifica‑se sobretudo em anafilaxias de causa iatrogénica e por veneno de himenópteros, desencadeantes mais frequentemente observados nos idosos, e que por si só se encontram associadas a pior prognóstico(9). Também se poderá explicar pela suscetibilidade aumentada para anafilaxia grave que se observa nesta população, onde se verifica maior frequência de sintomas cardiovasculares, sintomas estes que se poderão dever, em parte, ao papel desempenhado pelos mastócitos cardíacos21.

Outros estudos demonstraram que os alimentos foram o fator desencadeante menos frequente nesta faixa etária, ao contrário do que se verifica na infância e em doentes mais jovens10,40,42.

Manifestações clínicas

Vários estudos têm vindo a demonstrar que as manifestações clínicas também apresentam alguma variabilidade consoante a faixa etária afetada, com um predomínio dos sintomas cardiovasculares resultantes da disfunção do sistema cardiovascular central e periférico como manifestação de reação anafilática, e que revelam maior gravidade2,6,24,42,43. Nos idosos, a presença de sintomas como cianose, síncope e tonturas, são altamente preditivos de choque, e o seu rápido reconhecimento é crítico para adotar o tratamento adequado(6). Apesar de o choque mais frequentemente observado nesta faixa etária ser o choque sético, é importante alertar que outras causas podem ser possíveis e deverão ser equacionadas, nomeadamente a anafilaxia(45. Campbell et al. verificaram em doentes com mais de 50 ou 65 anos observados no serviço de urgência que os sintomas cardiovasculares tinham maior probabilidade de ocorrer em doentes mais idosos, destacando‑se a hipotensão, e que estes tinham também menor probabilidade de ter alta diretamente para o domicílio40. Outro estudo realizado em três países da Europa Central demonstrou que a idade era um fator de risco importante para o aparecimento de sintomas circulatórios, sobretudo nos doentes de idade mais avançada43.

As manifestações cardiovasculares podem incluir hipotensão e choque, disritmias, disfunção ventricular e paragem cardíaca24. O atingimento da circulação coronária durante a reação pode levar a eventos agudos isquémicos, incluindo angina e enfarte do miocárdio como parte do quadro de anafilaxia (síndrome de Kounis)24,46, muitas vezes subdiagnosticada, sendo mais frequente em idosos do sexo masculino com antecedentes de patologia cardiopulmonar, caracterizando‑se pela ocorrência de síndromes coronárias agudas associadas a reações de hipersensibilidade47. Resulta da desgranulação mastocitária que ocorre durante a reação alérgica com a consequente libertação de diversos mediadores inflamatórios, e patofisiologicamente divide‑se em três tipos: tipo 1 quando envolve espasmos coronários transitórios ou persistentes sem doença coronária subjacente; tipo 2 quando existe rutura de placa ateromatosa preexistente; e tipo 3 quando implica eventos alérgicos associados a trombose de stent46,47.

A síndrome de Takotsubo também se pode associar a anafilaxia, sendo uma cardiomiopatia induzida pelo stress caracterizada por disfunção sistólica ventricular esquerda reversível, sem doença coronária significativa46.

O aumento da mortalidade, assim como a maior ocorrência de envolvimento cardiovascular nos doentes idosos, poder‑se‑á dever à maior suscetibilidade do sistema cardiovascular aos mediadores libertados pelos mastócitos, relacionada com a idade, e à existência de comorbilidades subjacentes, como a presença de doença coronária2. Os mastócitos existem distribuídos por todo o corpo, incluindo o coração e vasos os sanguíneos, estando aumentados nos doentes com doença cardíaca isquémica e cardiomiopatias dilatadas, o que eleva o risco de anafilaxia fatal nestes doentes24. Os mediadores libertados pelos mastócitos cardíacos em grande quantidade têm a capacidade de induzir vasospasmo de artérias coronárias de grande calibre, de reduzir globalmente a circulação sanguínea a nível do miocárdio, através da interferência no tónus vasomotor das pequenas artérias coronárias intramurais, assim como a possibilidade de provocar diretamente efeitos disritmogénicos, nomeadamente através da hiperativação do sistema adrenérgico2,24. O aumento da instabilidade cardiovascular nos doentes mais idosos poderá também relacionar‑se com a diminuição da capacidade de ativação de mecanismos compensatórios, secundária à toma de medicação como bloqueadores beta‑adrenérgicos, ou à presença de um maior número de comorbilidades, como doença vascular periférica ou coronária2,40.

Os sintomas cutâneos são os mais frequentemente referidos, no entanto, a sua ausência verifica‑se com maior frequência nos doentes idosos, estando associada a reações anafiláticas de maior gravidade6,25. Este fenómeno pode atribuir‑se ao rápido desenvolvimento do comprometimento circulatório e a uma diminuição da vascularização cutânea observada nesta faixa etária, podendo contribuir de forma significativa para um atraso no diagnóstico e consequente tratamento da reação anafilática6,9. Esta ausência de sintomatologia cutânea também se poderá explicar pela toma de fármacos que possam afetar a reatividade cutânea, como os bloqueadores beta‑adrenérgicos e neuroléticos6.

Outras particularidades

Nestas faixas etárias poderá ser mais difícil a colheita de uma história clínica detalhada, incluindo a pesquisa de cofatores potenciais, notadamente pela presença de possíveis alterações mnésicas ou mesmo da existência de processos demenciais48. O reconhecimento dos sintomas também poderá estar afetado, e o isolamento familiar e social, nomeadamente o residir sozinho ou estar institucionalizado, poderão ser uma realidade mais premente, com a consequente dificuldade em reconhecer sinais clínicos e obter apoio médico de forma atempada48. A capacidade de adaptação do doente idoso poderá também estar afetada, nomeadamente nos cuidados necessários associados a esta patologia e que poderão interferir no seu dia a dia, resultando num prejuízo na qualidade de vida, com importantes implicações psicológicas21.

DIAGNÓSTICO

O subdiagnóstico da anafilaxia nos serviços de urgência foi observado durante vários anos, possivelmente associado ao incorreto conhecimento dos critérios diagnósticos, à presença de sintomatologia inespecífica (dispneia, mal‑estar geral) e ao facto de poder ser autolimitada, com o desaparecimento de sinais importantes para o diagnóstico aquando da chegada ao serviço de urgência40,49. A incerteza no diagnóstico pelos diferentes padrões de manifestações clínicas, assim como a ausência de sintomas cutâneos em até 20% dos casos, que ocorre mais frequentemente nos doentes idosos, pode resultar no atraso diagnóstico e no tratamento apropriado6,25.

Num estudo referente a 164 reações fatais, a adrenalina apenas tinha sido administrada antes da paragem cardíaca em 14% dos casos, verificando‑se como fator confundidor a presença de diagnóstico prévio de asma nos doentes que tinham predomínio de sintomas respiratórios50.

Apenas disponível em alguns centros, a medição da triptase sérica poderá ser considerada como biomarcador de ativação mastocitária, com potencial contributivo para o diagnóstico de anafilaxia a posteriori; no entanto, a sua elevação pode não ocorrer em todos os casos e sobretudo não deverá nunca ser considerada útil no que diz respeito à tomada de decisão terapêutica de administração de adrenalina, que deverá ser imediata36,51.

A apresentação de reação bifásica não parece ter incidência aumentada nos idosos, não tendo sido observada diferença estatisticamente significativa na incidência de reações bifásicas com a idade40. Um estudo prospetivo verificou que estas ocorriam com maior frequência após reações hipotensivas25. Atualmente, segundo as recomendações da World Allergy Organization, cerca de metade das reações bifásicas ocorrem nas primeiras 6 a 12 horas, devendo manter‑se vigilância mais prolongada até às 24 horas, sobretudo no caso de reações graves e se necessidade de administração de múltiplas doses de adrenalina14. Torna‑se desta forma importante reforçar a necessidade de vigilância prolongada pelo risco de deterioração posterior(14.

De realçar ainda a possibilidade da existência de cofatores para a ocorrência da anafilaxia, como o exercício, o álcool, infeções agudas, stress e toma de AINES, que poderão dificultar o seu diagnóstico9. A associação do exercício à alergia alimentar em doentes jovens tem vindo a ser cada vez mais descrita, mas o papel desempenhado pelos cofatores também poderá ser importante nas faixas etárias mais avançadas6. No idoso, a presença de cofatores como a toma frequente de AINES e o exercício físico, como uma caminhada de intensidade ligeira ou também em situações de lazer (dançar, jardinagem) deverão ser equacionadas6,13,52.

TRATAMENTO

Em caso de anafilaxia, as taxas de hospitalização e admissão em unidades de cuidados intensivos são superiores nos doentes com idade mais avançada, independentemente da gravidade da reação, indicando que estes doentes necessitam de uma intervenção médica específica, muitas vezes como resultado das comorbilidades que apresentam6.

Apesar de os doentes idosos apresentarem mais manifestações cardiovasculares, nomeadamente hipotensão, a maioria dos estudos realizados constata nestas idades um menor recurso à adrenalina como tratamento da anafilaxia40,53. Isto poder‑se‑á dever não só ao subdiagnóstico frequente anteriormente referido, como també ao receio de possíveis efeitos secundários cardiovasculares da adrenalina nesta população23,53. Um estudo publicado recentemente com dados do Registo Europeu de Anafilaxia observou o oposto, verificando um maior recurso à adrenalina em doentes idosos, o que poderá estar relacionado em parte com a maior gravidade das reações apresentadas por estes doentes; no entanto, menos de um em cada três doentes receberam adrenalina como tratamento de primeira linha(6). Verifica‑se também frequentemente a utilização de adrenalina endovenosa, com casos de sobredosagem presentes em 15,5% dos episódios, apesar de a administração intramuscular da adrenalina ser recomendada e segura6,53. Isto potencia substancialmente a gravidade e o risco de um prognóstico potencialmente fatal. A adrenalina por via intramuscular deve ser preferida, pelo menor risco de erros de dosagem, assim como pela redução de efeitos secundários cardiovasculares, nomeadamente taquiarritmias fatais, hipertensão grave, enfarte do miocárdio e acidente vascular cerebral; a adrenalina endovenosa deve ser reservada para os doentes que não respondem a repetidas doses de adrenalina intramuscular e para as situações de paragem cardíaca6,9,27,53,54. A maioria dos efeitos adversos cardíacos observados parece ocorrer nas situações de administração endovenosa de adrenalina e a sobredosagem parece ser a responsável pela maioria dos eventos54. Torna‑se, portanto, muito importante a educação e sensibilização dos profissionais de saúde, sobretudo nos serviços de urgência e emergência, onde os idosos têm maior probabilidade de se apresentar.

Não existe nenhuma contraindicação absoluta para administração de adrenalina perante uma anafilaxia, sendo uma intervenção indispensável; no entanto, existe o risco potencial de ocorrência de eventos adversos cardíacos com a sua administração, destacando‑se a isquemia e as taquidisritmias55. Este risco poderá estar aumentado nos idosos, com estudos demonstrando maior risco a partir dos 50 anos de idade, recomendando‑se que os doentes com mais de 80 anos sejam cuidadosamente monitorizados55. De realçar que a utilização da adrenalina não está contraindicada nos doentes com doença cardiovascular, sendo que a sua utilização poderá aumentar a contratilidade miocárdica, assim como a circulação coronária, o que poderá minorar as situações de síndrome coronária aguda6,15. As linhas de orientação europeias atuais reforçam claramente o benefício da utilização da adrenalina perante uma suspeita de anafilaxia, comparativamente com os seus possíveis riscos6.

Um dos fatores de risco referidos e com potencial interferência no tratamento da anafilaxia é a possibilidade de ausência ou redução da resposta terapêutica à administração da adrenalina na presença de cotratamento com fármacos anti‑hipertensores, nomeadamente bloqueadores beta‑adrenérgicos9. O bloqueio dos recetores beta‑adrenérgicos aumenta a resposta final dos órgãos aos mediadores libertados durante a anafilaxia, levando a que a utilização de adrenalina possa ser ineficaz, embora o risco se encontre reduzido com os novos fármacos mais seletivos46,56. Para alguns doentes, a dose habitual de adrenalina demonstra‑se assim ineficaz devido ao bloqueio dos recetores beta, mas para outros a ausência de bloqueio dos efeitos alfa‑adrenérgicos pode levar a um aumento da pressão arterial e promover o vasospasmo coronário37. Nestas situações, os profissionais de saúde deverão considerar a utilização de glucagon, que poderá ser eficaz na reversão da ação dos betabloqueadores no tratamento da anafilaxia refratária à adrenalina9. O glucagon, atuando via adenilciclase, tem propriedades inotrópicas e cronotrópicas positivas, exercendo efeitos vasculares independentes dos recetores beta‑adrenérgicos, induzindo também o aumento de catecolaminas endógenas57.

O efeito da adrenalina poderá ser potenciado pelo tratamento concomitante com doses moderadas a altas de antidepressivos tricíclicos, inibidores da monoamina oxidase e também pelo consumo de cocaína e anfetaminas, este último através do aumento da sensibilização miocárdica39.

A administração de fluidoterapia de acordo com as recomendações no tratamento da anafilaxia deverá ser também instituída, uma vez que os doentes podem rapidamente perder cerca de 30% do seu volume intravascular para o espaço extravascular em menos de 10 minutos, sendo que nos doentes com instabilidade cardiovascular a adrenalina pode não ser eficaz se o volume circulatório não for reposto27,36,58. Não existem recomendações específicas para a administração de fluidoterapia no doente idoso ou com comorbilidades cardiovasculares no tratamento da anafilaxia; no entanto, é pouco provável que a administração de um bólus endovenoso único de cristaloides possa condicionar sobrecarga no contexto de um choque anafilático ou anafilaxia refratária, e a utilização criteriosa de fluidos endovenosos poderá ser potencialmente vital27.

ORIENTAÇÃO CLÍNICA

A educação do doente é um ponto‑chave na orientação clínica em anafilaxia. Esta educação deverá não só ser efetuada ao próprio doente como aos cuidadores e familiares que mais frequentemente com ele contactam, na impossibilidade de o próprio doente a poder administrar, tanto por impedimento a nível motor como em caso de perda de consciência ou mesmo pela dificuldade em identificar a reação e sua gravidade36.

Verificou‑se que nos doentes idosos há uma menor probabilidade de terem alta com prescrição de dispositivo autoinjectável de adrenalina, sendo que em alguns casos poderá justificar‑se, em parte, pelo facto de nesta faixa etária muitas das anafilaxias observadas serem de causa iatrogénica, portanto com risco potencialmente menor de reincidência no domicílio40,59.

O plano de ação e devido ensino deve englobar não só o reconhecimento dos sintomas e sinais que poderão estar presentes numa anafilaxia, como acompanhar‑se do esclarecimento de quando deverá ser administrado o dispositivo autoinjector de adrenalina, juntamente com a aprendizagem e treino da correta técnica de administração36.

Na escolha de um dispositivo autoinjectável de adrenalina deverá ser tida em conta a facilidade de administração, assim como a preferência do próprio doente. A comparticipação total pelo Estado do dispositivo autoinjector de adrenalina em Portugal foi aprovada a 30 de outubro de 2020, eliminando o fator da incapacidade económica, que até à data era de importância, particularmente nas faixas etárias mais avançadas, cujas despesas médicas ocupam frequentemente uma parcela significativa do orçamento individual59.

Relativamente às limitações inerentes a esta faixa etária na realização da técnica correta de administração do dispositivo autoinjetável de adrenalina destacam‑se as limitações ao nível da mobilidade e coordenação neuromotora, a coexistência de doença osteomuscular e a disfunção cognitiva / dificuldades na compreensão que diminuem a probabilidade de uma administração bem‑sucedida com a absorção da dose terapêutica pretendida2,6,13.

A identificação das dificuldades individuais, nomeadamente no acesso aos cuidados de saúde, deve ser pesquisada, devendo ser reforçada a importância da evicção dos potenciais fatores desencadeantes. A identificação das consequências psicológicas do diagnóstico, com possível interferência na qualidade de vida, nomeadamente situações de ansiedade, pânico, hipocondria ou depressão, relativos à incerteza de episódios futuros ou sensação de perda de controlo relativamente à sua saúde, deverão ser pesquisadas39.

A otimização das comorbilidades presentes, assim como o ajuste da medicação crónica quando indicado, nomeadamente da medicação cardiovascular, não deverá ser protelado, podendo contribuir de forma significativa para a redução do risco no caso de nova anafilaxia. Perante um doente idoso com risco elevado de anafilaxia e que se encontre sob tratamento com bloqueadores beta‑adrenérgicos deverá ser efetuada uma avaliação individualizada, juntamente com avaliação multidisciplinar com Cardiologia1.

É essencial que em cada consulta ou contacto com profissionais de saúde sejam relembrados todos estes fatores, assim como repetido o treino relativo à autoadministração do dispositivo autoinjetor de adrenalina. Toda esta informação deverá ser igualmente facultada por escrito36.

De realçar que muitos dos doentes idosos com anafilaxia que se apresentam no serviço de urgência não são posteriormente encaminhados para observação pela especialidade de Imunoalergologia. No estudo realizado por Campbell et al, apenas um terço dos doentes idosos foram avaliados por um Imunoalergologista após a alta40, perdendo‑se a oportunidade, não só da realização de uma correta investigação e esclarecimento diagnóstico, como de uma melhor orientação terapêutica e consequente educação do doente e seus familiares para o risco de reincidência. Torna‑se assim premente contrariar esta tendência, sensibilizando os profissionais de saúde que contactam com estes doentes nos serviços de urgência ou cuidados de saúde primários para a importância da orientação do doente após a alta, podendo influenciar de forma significativa o seu futuro40.

CONCLUSÃO

Uma revisão das características e particularidades da abordagem diagnóstica e terapêutica da anafilaxia no idoso torna‑se assim pertinente, embora sejam necessários estudos que demonstrem como a imunossenescência influencia os mecanismos da resposta alérgica no idoso, incluindo a anafilaxia6,13.

A anafilaxia no idoso existe e reveste‑se de características próprias que condicionam um maior risco de anafilaxia fatal, pelo que a sua prevenção e adequado tratamento são fundamentais. Estes doentes têm reações mais graves, com necessidade mais frequente de adrenalina e internamento hospitalar, reforçando a importância de reconhecer a anafilaxia nestas idades, assim como as suas particularidades e necessidades específicas que se encontram apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1 Principais particularidades e fatores de risco associados à anafilaxia no idoso. 

O subdiagnóstico relativo à identificação e reconhecimento da anafilaxia como manifestação de doença alérgica nos doentes idosos, apesar da presença de sinais e sintomas de envolvimento multissistémico, foi algo observado durante muitos anos, e que é importante combater.

Existem atualmente critérios diagnósticos bem estabelecidos para esta entidade, com guidelines divulgadas internacionalmente sobre como reconhecer e tratar estas reações9,36. Apesar de estas não se debruçarem nas especificidades do idoso, se bem aplicadas permitem melhorar de forma importante a identificação e o tratamento da anafilaxia, influenciando de forma significativa o prognóstico nestas idades.

Considera‑se também importante o estudo e desenvolvimento de marcadores biológicos sensíveis e específicos que possam melhorar o correto diagnóstico da anafilaxia em tempo útil, nomeadamente em situações particulares, como no caso do doente idoso60.

Torna‑se também relevante a investigação adicional dos fatores que predispõem a um pior prognóstico e que condicionam maior vulnerabilidade à anafilaxia em idade avançada, pois poderão ser pontos importantes de intervenção e com potencial de melhoria no futuro destes doentes.

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Recebido: 07 de Fevereiro de 2022; Aceito: 05 de Março de 2022

Autora correspondente: Lise Brosseron Serviço de Imunoalergologia Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, EPE Rua Conceição Fernandes S/N 4434-502 Vila Nova de Gaia E-mail: lisesbb@gmail.com

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