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Nascer e Crescer

versión impresa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer v.19 n.3 Porto sep. 2010

 

As mães nem sempre têm boas intenções…

 

Manuel Salgado1

1 Consulta de Reumatologia Pediátrica, HPCoimbra

  

Desde que começámos a especialidade ouvimos repetidamente a frase “As mães quase sempre têm razão”. Quase …

Em Julho de 2009 o “Zacarias” (chamemos-lhe assim), de 9 anos de idade, foi enviado à Consulta de Reumatologia Pediátrica (CRP) do Hospital Pediátrico de Coimbra por olho vermelho crónico, bilateral, refractário à medicação tópica ocular (colírios e pomadas de corticóides e antibióticos) e à medicação oral com prednisolona.

As queixas tinham-se iniciado em Abril de 2007, com blefarite e chalázio bilaterais, resistentes à terapêutica convencional, que exigiu abordagem cirúrgica em ambas as pálpebras superiores. Recidivaram pouco tempo depois. Em Junho de 2007, às manifestações anteriores associou-se hiperémia conjuntival crónica, bilateral, acompanhada de intensa fotofobia. Estas manifestações revelaram-se também refractárias às terapêuticas tópicas.

Em Fevereiro de 2009, numa fase de agravamento, foi-lhe diagnosticada “quera­toconjuntivite bilateral complicada de precipitados subepiteliais com neovascularização corneana”. A biópsia da conjuntiva, realizada em Junho de 2009, revelou “conjuntivite crónica com exuberância de plasmócitos”. No mesmo tempo operatório, foram realizadas injecção subconjuntival com corticóide, em ambos os olhos, que viria a revelar-se também ineficazes. Posteriormente iniciou medicação tópica com ciclosporina que viria a ser interrompida dias depois por intolerância local (intensa fotofobia). A corticoterapia sistémica entretanto iniciada foi igualmente ineficaz.

Em Julho de 2009, numa abordagem conjunta de Oftalmologia e de Reumatologia Pediátricas, e na presunção de se poder tratar de “pênfigo ocular”, associou ciclosporina oral na dose de 3,5 mg/kg/dia. Finalmente assistiu-se a uma progressiva melhoria clínica, mantendo contudo a blefarite crónica e algum grau de hiperémia ocular e de fotofobia.

Estávamos neste impasse, sem um diagnóstico preciso e sem uma melhoria sustentada…

Em Janeiro de 2010, um dos novos doentes enviados à CRP apresentou manifestações clínicas em tudo sobreponíveis às do “Zacarias”.

 A “Epifânia” (nome igualmente suposto), também com 9 anos de idade, foi referenciada à CRP por queratoconjuntivite crónica, com 15 meses de evolução, com uma evolução crónica com agudizações frequentes e refractária à medicações tópicas instituídas. Nas fases de agravamento apresentava hiperémia ocular, geralmente sem exsudado, intensa fotofobia e já compromisso da acuidade visual (“visão a 20% no olho direito”). A hiperémia ocular e a fotofobia melhoravam sob corticoterapia tópica, para recorrerem de imediato após a sua suspensão. Desde o segundo ano de vida que sofria de hordeólos e chalázios recorrentes.

Pela cronicidade e gravidade das queixas, a criança foi sujeita a uma extensa “peregrinação médica”, com recurso a múltiplas urgências, múltiplas e diferentes consultas em oftalmologistas - “13 diferentes” (sic) -, pediatras (“vários”), clínicos gerais e um reumatologista, num total de “mais de trinta médicos diferentes” (sic).

Em Janeiro de 2010, na observação conjunta (Reumatologia e Oftalmologia) constatámos blefarite bilateral, hiperémia conjuntival bilateral, bulbar e tarsal, telangiectasias na margem palpebral, queratite com leucoma e neovascularização inferior da córnea direita.

“Glooglámos”. O que não fizemos com o “Zacarias”.

Dois dias depois assumimos o diagnóstico de rosácea ocular complicada de queratoconjuntivite flictenular. Iniciou eritromicina oral (para ser administrada durante muitos meses) (1) associado ao tratamento tópico dirigido. A boa evolução veio a confirmar o diagnóstico. Mantém as sequelas da queratite crónica com leucoma no olho direito. Actualmente é seguida exclusivamente em consultas de Oftalmologia Pediátrica.

As manifestações clínicas do “Zacarias” eram semelhantes às da “Epifânia”. Em Fevereiro de 2010 assumiu-se o mesmo diagnóstico para o “Zacarias”. Suspendeu-se a ciclosporina oral e iniciou eritromicina (para ser administrada durante vários meses, quiçá anos) (1).

Inicialmente a resposta parecia ser favorável. Mas eis que volta tudo ao mesmo: agravamento, melhoria, agravamento, vários contactos telefónicos, antecipação e multiplicação de consultas. Os avanços e recuos levaram, em Junho de 2010, a reiniciar a prednisolona sistémica e, poucos dias depois, também a ciclosporina sistémica. Os controlos analíticos apertados, com doseamento sérico da ciclosporina, foram os requisitos subsequentes pela potencial iatrogenia resultante da associação cicloporina e eritromicina (ambos antibióticos macrólidos). Também sem sucesso.

Nos primeiros dias de Julho, no imediato a um novo contacto telefónico da mãe para o Oftalmologista assistente, referindo “Está outra vez pior”, foi considerado paradoxal.

Estávamos na pausa matinal do café, num local público. Este momento de relaxe mental deu a inspiração que faltava: a “Epifânia” fora sujeita a uma peregrinação médica; pelo contrário “Zacarias” mantinha-se fiel ao seu Oftalmologista. Outros doentes, já teriam pedido outra(s) opinião(ões).

Qual a razão para uma confiança acrítica tão prolongada? “Não bate certo. Interna-se e vamos ver o que acontece”.

Já com o plano instituído, nesse mesmo dia, o Oftalmologista confessou que, desde há várias semanas, recebia mensagens românticas da mãe do “Zacarias” no telemóvel.

A boa evolução no internamento proporcionou que fosse suspensa a corticoterapia e a ciclosporina sistémicas. O “Zacarias” teve alta 14 dias depois, apenas medicado com eritromicina oral e tópicos oculares. Passou a ter um novo médico oftalmologista assistente, agora do sexo feminino.

Em Outubro de 2010 estava assintomático e já quase sem tópicos. Para Dezembro de 2010 está programada uma redução na dose diária de eritromicina.

A descrição da orientação e da evolução deste sindroma de Munchausen-like para a pedopsiquiatria e pediatria social fogem ao âmbito desta descrição.

Admitimos hoje que a melhoria parcial pelo uso da ciclosporina sistémica se deveu à sua actividade como antibiótico macrólido.

Na sequência da troca de Oftalmologista, as mensagens recebidas pelo especialista do sexo masculino, inicialmente românticas passaram para um tom mais acusador à mistura com declarações de encanto. Também aconselhado pelos colegas directamente envolvidos no caso, este colega ignorou toda e qualquer mensagem. Por precaução, mantém-nas gravadas no seu telemóvel e vai-nos informando das mesmas.

 

BIBLIOGRAFIA

1. Cetinkaya A, Akova YA. Pediatric ocular acne rosacea: long-term treatment with systemic antibiotics. Am J Ophthalmol 2006;142:816-21.         [ Links ]

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