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Nascer e Crescer

versión impresa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer v.19 n.4 Porto dic. 2010

 

Plasticidade Cerebral no Desenvolvimento da Linguagem

Cerebral Plasticity in the Development of the Language

 

Teresa Temudo1

1 Serviço de Neuropediatria, Departamento da Infância e Adolescência, CH Porto

 

Em 1996, tinha terminado o ciclo de estudos especiais em Neuropediatria havia apenas um ano, assisti a uma conferência que me impressionou. A Karin Dias tinha organizado um congresso no Centro Cultural de Belém e, de entre os vários convidados estrangeiros, uma senhora entre os sessenta e os setenta, destacava-se por várias razões: era magra e alta, com um ar austero e algo de pássaro, cabelo branco arrepanhado num carrapito, voz sentenciosa. Fez-me lembrar uma professora primária dos anos cinquenta. Havia uma aura de admiração e respeito à sua volta e contavam-se histórias sobre a rigidez do seu carácter. Era a famosa Isabelle Rapin, Suíça que aos 20 anos tinha emigrado para os Estados Unidos para aprender Neurologia Pediátrica! Especialista em perturbações da linguagem da criança, autismo, doenças degenerativas do SNC, muitos artigos publicados, vários livros escritos, incontáveis conferências por todo o mundo… Durante a minha formação em neuropediatria nada me tinham ensinado de autismo ou perturbações do desenvolvimento da linguagem, sendo considerados problemas neurológicos “menores”ou da alçada dos Pediatras do desenvolvimento ou Psiquiatras infantis. Porque, tendo como formação de base a neurologia de adultos, se tinha ela interessado por tais coisas? Aguardei com impaciência a sua palestra sobre perturbações do desenvolvimento da linguagem. Falou com clareza e de forma entusiasta e, embora eu pouco soubesse do assunto, a sua palestra era tão “arrumada” que, após ouvi-la, pensei ter aprendido alguma coisa. Quando terminou, alguém da assistência lhe perguntou quantas consultas necessitava de fazer a uma criança para lhe diagnosticar o problema específico de linguagem. Ela respondeu orgulhosa:”In one shot!”

Nos anos que se seguiram, vi várias crianças com problemas da linguagem, a quem fiz diagnósticos ao fim de dar tiros para vários lados… Fui aos livros, li artigos, mas aquilo continuava a ser para mim, embora muito interessante, também muito complicado.

De todos os meninos que vi com este problema, o que mais me ensinou foi o Guilherme. Tinha cinco anos quando foi trazido à minha consulta, após ter feito muitos exames e ter andado em vários médicos. Bonitinho, cabelo claro e face redonda, tinha um ar doce e triste. Os pais eram gente simples, amável e inteligente. Traziam-mo porque o Guilherme, filho único, não se fazia entender.

– Como assim? – perguntei.

– Ele entende tudo, doutora, faz recados, é inteligente, ajuda em casa, mas quando quer falar, ninguém percebe nada do que diz. Fica muito nervoso porque nós não o entendemos. Repete e volta a repetir, mas ninguém entende nada! Já está há um ano na terapia da fala, mas não vale a pena, porque passa o tempo a chorar quando está lá dentro e agora recusa-se a ir….Não sabemos que mais lhe fazer!

O Guilherme, ao lado, baixou a cabeça e começou a soluçar. Pus-lhe um braço pelos ombros e puxei-o para junto de mim (que nós os Neuropediatras podemos fazer estas coisas!). Tirei da gaveta a minha colecção de animais e pedi para ele mos nomear. “Ca-ca”, era o gato; “ca-ca-ca”, o cavalo; “ca”, o cão; “ca-ca-ca”, o macaco. Se eu pedia para repetir, o som era invariável.

Não sabia exactamente qual era o problema mas tinha a certeza que o Guilherme ouvia, compreendia muito bem e obedecia a ordens e tinha o resto do exame neurológico inteiramente normal. A RMN cerebral e o EEG que trazia eram também normais. Mais importante ainda era o facto do Guilherme estar deprimido e se recusar a colaborar na terapia da fala. Falei com ele e expliquei-lhe em linguagem simples que era importante ele praticar com a terapeuta e não desistir. Da minha parte ajudei-o com uns miligramas de Sertralina que prescrevi.

Já em casa, fui aos livros. Apraxia verbal, era esse o diagnóstico. Algo impedia a programação dos movimentos dos órgãos fonatórios. Mas, porquê? E como ajudá-lo?

 Passados seis meses voltou à consulta. Quando abriu a porta sorriu, depois deu-me um beijo e colocou-se ao meu lado, de pé. Pareceu-me que esperava que eu lhe rodeasse novamente o corpinho com o meu braço. Fi-lo e ele deixou-se ali ficar encostado a mim enquanto eu ia falando com os pais.

– O Guilherme anda mais contente e está a fazer terapia da fala duas vezes por semana – disse a mãe.

Mostrei-lhe de novo os animais e tentei que os nomeasse. Pouco parecia ter progredido e eu continuava a só entender um “ca-ca-ca” silabado. Contudo, agora “cacarejava” alegremente.

– Continua Guilherme, já estás muito melhor! – menti.

Os pais estavam ansiosos porque tinham que tomar uma decisão. Era o último ano de pré-escola e a Educadora Infantil aconselhou-os a adiar a entrada para o Ensino Básico. Eles não o queriam fazer porque, diziam, apesar das dificuldades na linguagem, o Guilherme era muito inteligente e tinha vontade de aprender.

– A doutora o que acha? – perguntaram. Eu partilhava da opinião da Educadora e disse-o.

– Claro que vocês é que decidem, conhecem-no melhor que ninguém. E tu, Guilherme, queres ir para a escola?

Ele abanou a cabeça afirmativamente. Ficou decidido que iria. Embora eu pensasse que as hipóteses que tinha de aprender a escrever e ler eram quase nulas, respeitei o instinto dos pais e fiquei a aguardar….Marquei consulta para dali a um ano, insistindo para que mantivesse a terapia da fala.

Nas férias da Páscoa voltaram. Como de costume, o Guilherme entrou na frente e, após me dar um beijo, postou-se de pé a meu lado.

 Então? – perguntei cheia de curiosidade – como correram as coisas?

Bem. – respondeu o Guilherme num tom de voz nasalado – Sou o melhor!

Nem queria acreditar no que ouvia! O Guilherme conseguira naquele ano adquirir a linguagem que não conseguira desenvolver até aí. A prosódia era muito particular, mas compreendia-se o que dizia. Para além disso, aprendera a ler e a escrever e era o melhor da classe. Mais uma vez se confirmava que o instinto dos pais está normalmente certo….Mas, o que é que tinha acontecido no seu cérebro, que porta, que estrada se tinha aberto, de forma a ele ultrapassar as suas dificuldades?

A vida é engraçada e, a minha em particular (que é a que conheço melhor), é cheia de coincidências. Em 2005 a Isabelle Rapin, após ter ouvido uma minha apresentação num congresso Europeu, quis conhecer-me. Convidou-me para fazermos um trabalho em conjunto. Passados dois anos fui ter com ela a Nova York e fiquei alojada na sua casa. Trabalhávamos doze horas por dia no seu gabinete da Albert Einstein University e, apenas à noite, na sua cozinha-escritório conversávamos de variadas coisas. Contei-lhe a história do Guilherme e a minha surpresa pelo salto de desenvolvimento da linguagem, coincidente com a aprendizagem da leitura e escrita. Disse-me que também já tinha constatado o mesmo em outros casos de apraxia verbal congénita e concluiu com o seu tom sentencioso.

– Neuroplasticity, my dear!

 

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