SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21 número3Sequestro Vascular Intralobar: apresentação no primeiro ano de vidaCaso dermatológico índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.21 no.3 Porto set. 2012

 

Tuberculose e cancro – pior que um só dois!

 

Cristiana Couto1, Filipa Balona2, Maria João Sampaio3, Ana Torres4, Armando Pinto5, Ana Maia Ferreira5

1 S. Pediatria, U Guimarães, CH Alto Ave

2 S. Pediatria, CH Vila Nova de Gaia-Espinho

3 S. Pediatria, U Padre Américo, CH Tâmega e Sousa

4 S. Pediatria, H Viana do Castelo, ULS Alto Minho

5 S. Pediatria, IPOFG, Porto

CORRESPONDÊNCIA

 

RESUMO

Introdução: A tuberculose é um problema de saúde global e crescente. A doença pulmonar primária é a forma mais comum de apresentação da tuberculose activa. A tuberculose esqueléti­ca é pouco comum e representa 10 a 20% das formas extrapulmonares no doente imunocompetente. Quando existe imunossu­pressão, esta forma é mais frequente podendo estar presente, de modo isolado ou em associação com tuberculose pulmonar, em quase metade dos casos. A sua apresentação clínica é ines­pecífica e o diagnóstico diferencial inclui diversas patologias, sendo essencial um elevado índice de suspeição.

Caso clínico: Os autores apresentam o caso clínico de uma criança com tumor de Wilms, em tratamento com quimiote­rapia, que desenvolveu tuberculose óssea.

Discussão: Salienta-se a importância do diagnóstico dife­rencial da tuberculose com doença oncológica (primária ou se­cundária), a limitação dos métodos imagiológicos, a importância da confirmação diagnóstica através de estudos histopatológicos e microbiológicos, e a necessidade de um plano terapêutico ade­quado e o mais precoce possível.

Palavras-chave: Neoplasias, tumor de Wilms, neoplasias ósseas, tuberculose osteoarticular.

 

Tuberculosis and cancer – worse than one only two!

ABSTRACT

Introduction: Tuberculosis is a global and growing health problem. Primary pulmonary disease is the most common form of presentation of active tuberculosis. The skeletal tuberculosis is uncommon and represents 10 to 20% of extrapulmonary disease in immunocompetent individuals. In immunosupressed patients, bone involvement is more common, either singly or in associa­tion with pulmonary tuberculosis, reaching half of the cases. Its clinical presentation is nonspecific and the differential diagnosis includes several pathologies, therefore a high index of suspicion is required.

Case report: The authors report the clinical case of a child with Wilms’ tumor who was diagnosed with bone tuberculosis during the treatment of nephroblastoma.

Discussion: It is emphasized the importance of differential diagnosis of tuberculosis with malignancy (primary or secondary), the limitation of imaging methods, the importance of diagnostic confirmation by histopathological and microbiological studies, and the need for an appropriate treatment plan and as early as possible.

Keywords: Neoplasms, Wilms tumor, bone neoplasms, os­teoarticular tuberculosis.

 

INTRODUÇÃO

A tuberculose, que adquiriu maior importância nos últimos anos pela resistência aos fármacos e pela predilecção pelos imu­nodeprimidos (1), é uma preocupação global (1,2). A sua incidência crescente tem sido atribuída à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, imigração, más condições sociais e menor im­plementação dos programas de controlo (2,3). A doença pulmonar primária é a forma mais comum de apresentação da tuberculose activa (1). A tuberculose esquelética é pouco comum e representa 10 a 20% das formas extrapulmonares e 1 a 2% de todos os ca­sos de tuberculose (2). No doente imunodeprimido, esta forma é mais frequente podendo estar presente, de modo isolado ou em associação com tuberculose pulmonar, em quase metade dos casos (4). O seu diagnóstico diferencial inclui uma multiplicidade de infecções (bacterianas, víricas e fúngicas), doenças autoimu­nes e neoplásicas, entre outras (1), pelo que um elevado índice de suspeição é essencial para o diagnóstico precoce e para o tratamento e cura da doença (2). Os autores apresentam o caso clínico de uma criança com doença oncológica na qual, durante o tratamento com quimioterapia, a infecção pelo Mycobacterium tuberculosis foi considerada como causa possível de queixas osteoarticulares “de novo”. Discutem-se as dificuldades diagnós­ticas, nomeadamente no que respeita ao diagnóstico diferencial com doença metastática.

 

CASO CLÍNICO

Criança do sexo feminino, cinco anos, raça caucasiana, natural e residente em Vila Nova de Gaia. Antecedentes patoló­gicos, pessoais e familiares, irrelevantes. Em Novembro de 2008 é referenciada pelo hospital da área de residência para o Insti­tuto Português de Oncologia Francisco Gentil – Porto (IPOPFG) por massa retroperitoneal, com o diagnóstico subsequente de nefroblastoma do pólo superior do rim direito; o estadiamento revela tratar-se de doença localizada. Inicia quimioterapia neo­-adjuvante com actinomicina D e vincristina de acordo com o protocolo da International Society of Paediatric Oncology (SIOP) de 2001. Subsequentemente realiza exérese cirúrgica que inclui nefroureterectomia direita. O exame anátomo-patológico revela nefroblastoma de risco intermédio, do tipo regressivo no estadio III, com base na classificação pós-tratamento, o que traduz uma boa resposta à quimioterapia num tumor localmente avançado. Prossegue tratamento com quimioterapia sistémica (actinomici­na D, vincristina e doxorrubicina) e radioterapia do leito tumoral. Em Abril do ano seguinte, em consulta de seguimento, refere dor na região inguinal direita e claudicação da marcha, de carácter intermitente. O exame objectivo revela dor desencadeada pela rotação interna da articulação coxofemural direita. Consideran­do o carácter intermitente das queixas, adopta-se uma atitude expectante. Na reavaliação após dois meses observa-se persis­tência da claudicação da marcha, ainda intermitente, nesta altura associada a dor na região anterior e proximal da perna direita. O exame objectivo demonstra dor à palpação da metade proxi­mal da tíbia direita. Face à persistência das queixas, colocam­-se como principais hipóteses de diagnóstico: doença óssea metastática, artrite reactiva, infecção osteoarticular e neoplasia primária musculo-esquelética. É realizado estudo complementar analítico, incluindo hemograma e bioquímica sérica, de que se salientam anemia (hemoglobina 9,7 g/dl), normocítica normocró­mica, e elevação discreta dos marcadores de citólise hepática (TGO e TGP), alterações expectáveis e não valorizáveis numa criança em quimioterapia. Serologias para citomegalovírus, vírus Epstein-Barr, vírus herpes simples e vírus da hepatite A, sem al­terações sugestivas de infecção recente. Prova de Mantoux, ne­gativa. Do estudo imagiológico destacam-se: telerradiografia da anca e perna direitas sem alterações osteoarticulares valorizá­veis; ressonância magnética (RM) da perna direita com alteração de sinal na diáfise proximal da tíbia (Figura 1); e cintigrafia óssea com foco de hiperfixação na extremidade proximal da tíbia direi­ta, suspeitos de traduzir metástases (Figura 2). A ecografia abdo­minopélvica exclui recidiva local da doença neoplásica ou metastização abdominal, nomeadamente hepática. A telerradiografia e tomografia computorizada (TC) torácicas excluem alterações pleuroparenquimatosas, de carácter metastático ou infeccioso. Para esclarecimento etiológico realiza-se biópsia óssea guiada por imagem: a citologia é inconclusiva, a histologia mostra es­casso infiltrado inflamatório e ausência de células neoplásicas, e o estudo microbiológico é negativo. Optou-se por biópsia óssea cirúrgica no sentido de aumentar a representatividade da amos­tra: a histologia mostra fragmentos ósseos com focos de osteo­necrose e espaços intertrabeculares preenchidos por exsudado fibrinoleucocitário com espaços vasculares ectasiados, sem si­nais de malignidade; o estudo microbiológico apresenta imuno­citoquímica negativa, cultura em Lowenstein-Jensen negativa e reacção em cadeia da polimerase (PCR) para Mycobacterium tuberculosis complex positiva. Perante o diagnóstico de tuberculose óssea, a criança inicia terapêutica antituberculosa, incluindo dois meses de terapêutica quádrupla (iso­niazida, rifampicina, pirazinamida e etam­butol) e, subsequentemente, dez meses de terapêutica dupla (isoniazida e rifampi­cina). O rastreio de conviventes (realizado no Centro de Doenças Pulmonares) foi negativo. Actualmente, a criança encontra­-se em seguimento no IPOPFG após termi­nar quimioterapia adjuvante em Agosto de 2009, sem recidiva local da doença oncoló­gica ou sinais de metastização à distância. Cumpriu terapêutica antituberculosa, com melhoria sintomática significativa; o estudo imagiológico demonstra alterações suges­tivas de resolução do processo infeccioso e a cintigrafia óssea apresenta distribuição do radiofármaco normal para a idade. De­senvolveu sintomatologia dispéptica como efeito adverso atribuível à terapêutica an­tituberculosa que controlou com inibidor da bomba de protões.

 

Figura 1 – RM da perna direita: diáfise proximal da tíbia direita com área de ocupação da medular óssea que capta contraste, sugestiva de infiltra­ção metastática. Sem outras alterações relevantes.

 

Figura 2 – Cintigrafia óssea: focos de hiperfixação dos difosfonatos na extremidade proximal da tíbia direita, suspeitos de traduzir metástases. Restante distribuição do radiofármaco normal para o grupo etário.

 

Discussão: As neoplasias renais re­presentam 6,3% dos tumores malignos diagnosticados em menores de 15 anos de idade (5), sendo o tumor de Wilms a forma mais comum (1,5,6,7). Este ocorre sobretudo em crianças menores de cinco anos (5) e habitualmente manifesta-se sob a forma de uma massa abdominal assintomática (6). Nos centros europeus, o tratamento baseia-se na quimioterapia pré-operatória, cirurgia e tratamento pós-operatório que depende do estadiamento (8,9). Actualmente a taxa de sobrevida global ronda os 85% (6). O local de metastização mais comum é o pulmão, seguindo-se os gânglios linfáticos e fígado(9). O tumor de Wilms raramente metastiza para o osso, medula óssea ou cérebro (9).

No caso apresentado, o estadiamento inicial do nefro­blastoma revelou tratar-se de doença localizada. Não obstan­te, durante o período de terapêutica adjuvante, o aparecimento de queixas álgicas osteoarticulares obrigou à consideração da hipótese de metastização óssea. Na ausência de metastização para outras localizações, foram consideradas outras hipóteses nomeadamente a infecção osteoarticular, facilitada pela imunos­supressão. A radiografia do osso envolvido pode ser útil, mas é inespecífica (10) e neste caso foi normal. A RM da perna direita e a cintigrafia óssea foram sugestivas de infiltração metastática na tíbia direita. Todavia, apesar da importância reconhecida à RM nestes casos, a ausência de achados patognomónicos obri­ga a outros testes para confirmação diagnóstica (10). Os exames histológico e microbiológico são importantes para o diagnósti­co, especialmente em associação com técnicas de detecção por PCR(10). A colheita de tecidos por técnicas minimamente invasi­vas, guiadas por imagem, é actualmente o gold standard (10). No doente imunodeprimido é frequente a anergia tuberculínica, os granulomas são escassos, mal circunscritos, por vezes inexis­tentes, podendo também faltar a necrose caseosa (4). O prognós­tico é habitualmente bom com o tratamento correcto; pode ocor­rer incapacidade residual funcional, habitualmente resultando no atraso diagnóstico (3).

Os autores pretendem reforçar a importância do reconheci­mento da infecção por Mycobacterium tuberculosis nas crianças sob terapêutica imunossupressora, mesmo na presença de ma­nifestações clínicas frustres, evidenciando a importância do seu diagnóstico diferencial com doença oncológica (primária ou se­cundária) (10,11), num contexto epidemiológico adequado, ou seja, residência em área geográfica entre as de maior incidência (12).

 

BIBLIOGRAFIA

1. Mayers M, Adam H. Tuberculosis. Pediatr Rev 2008; 29: 140-2.         [ Links ]

2. Leo H, Peh W. Skeletal tuberculosis in children. Pediatr Ra­diol 2004; 34: 853-60.         [ Links ]

3. Vaughan K. Extraspinal osteoarticular tuberculosis a forgot­ten entity? West Indian Med J 2005; 54: 202-6.         [ Links ]

4. Gomes MJ, et al. Ramiro Ávila, coord e direc. Tuberculose: aspectos actuais. Lisboa: Hospital Pulido Valente – Departa­mento de Pneumologia, 1992.         [ Links ]

5. Bernstein L, Linet M, Smith M, Olstran A. Renal tumors. In: Ries L, Smith M, Gurney J, Linet M, Tamra T, Young J, Bu­nin G, editors. Cancer incidence and survival among children and adolescents: United States SEER Program 1975-1995. National Cancer Institute, SEER Program. No. 99-4649. Be­thesda: NIH Pub; 1999. p. 79-90.         [ Links ]

6. Ahmed H, Arya M, Tsiouris A, Sellaturay S, Shergill I, Dufty P, et al. An update on the management of Wilms’ tumour. EJSO 2007; 33: 824-31.         [ Links ]

7. Ko E, Ritchey M. Current management of Wilms’ tumor in children. J Pediatr Urol 2009; 5: 56-65.         [ Links ]

8. Sucesso M, Ferreira A, Maia I, Pinto A, Estevinho N, Norton L. Tumor de Wilms e tuberculose: diagnósticos diferenciais num caso de apresentação simultânea. Nascer e Crescer 2006; 15: 37-8.         [ Links ]

9. Pritchard-Jones K. Controversies and advances in the mana­gement of Wilms’ tumour. Arch Dis Child 2002; 87: 241-4.         [ Links ]

10. Amukotuwa S, Choong P, Smith P, Powell G, Slavin J, Schli­cht S. Tuberculosis masquerading as malignancy: a multimo­dality approach to the correct diagnosis – a case report. Int Semin Surg Oncol 2005; 2: 10-21.         [ Links ]

11. Fonseca-Santos J. Tuberculosis in children. Eur J Radiol 2005; 55: 202-8.         [ Links ]

12. Fonseca Antunes A. Relatório para o Dia Mundial da Tuber­culose. Programa Nacional de Luta contra a Tuberculose. Ponto da situação epidemiológica e de desempenho. Direc­ção Geral de Saúde, 2010.         [ Links ]

 

CORRESPONDÊNCIA

Cristiana Couto

E-mail: cristianacouto@yahoo.com.br

 

AGRADECIMENTOS

À Dra. Lucília Norton.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons