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Nascer e Crescer

versión impresa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.24 no.1 Porto mar. 2015

 

EDITORIAL

 

Sobre alimentos e medicamentos – perguntas que poderá colocar

 

 

José Pedro L. NunesI

I Professor associado, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, 4200-319 Porto, Portugal. E-mail: jplnunes@med.up.pt

 

 

Se ligarmos a televisão, poderemos ouvir falar de um alimento que é ótimo para a saúde. Poderemos ainda ouvir falar de um medicamento maravilhoso para esta ou aquela doença. Poderemos perguntar-nos: serão mesmo?

Vejamos um par de exemplos, começando por olhar para o beta-caroteno – um composto presente nas cenouras que comemos (na verdade, é um percursor da Vitamina A). Um estudo publicado em 1986 (1) mostrou uma associação entre níveis baixos de beta-caroteno e o risco de carcinoma do pulmão (do tipo “squamous cell”). O mesmo trabalho mostrou uma associação semelhante com níveis baixos de vitamina E. Passemos para outro exemplo, o caso das arritmias em doentes com enfarte do miocárdio. Um estudo publicado em 1984 (2) mostrou uma associação entre a presença de arritmias ventriculares e a mortalidade nos dois anos subsequentes ao enfarte.

Estes dois estudos eram de natureza epidemiológica, e este tipo de trabalhos mostram a presença de uma associação, mas não necessariamente de causalidade. Para avaliarmos a causalidade, é necessário um estudo de intervenção controlado. O controlo consiste num grupo de pessoas que não tomam o produto em análise (seja um medicamento, um alimento, um dispositivo médico, uma cirurgia, etc.), que vão ser comparadas com as pessoas que de facto tomam o produto.

O que se passou com o beta-caroteno e com as arritmias cardíacas? Poderíamos pensar que seria bom aumentar o consumo do primeiro ou suprimir as segundas através de medicamentos específicos para o efeito. Um estudo controlado com placebo, publicado em 1994 (3), mostrou que a suplementação diária com 20 mg de beta-caroteno pode aumentar a incidência de cancro do pulmão em fumadores, enquanto que um outro ensaio clínico controlado com placebo, publicado em 1991 (4), mostrou que dois medicamentos anti-arrítmicos diferentes aumentavam a mortalidade de doentes com um enfarte do miocárdio prévio.

Podemos ver que dados relativos ao eletrocardiograma, a parâmetros bioquímicos ou a outro tipo de “marcadores substitutos” (“surrogate markers”), pode não ser suficiente – é frequentemente melhor ter dados sobre os chamados “hard endpoints”, incluindo a taxa de mortalidade.

É sabido desde a Antiguidade que os seres humanos utilizam o raciocínio indutivo – tentativas de atingir conclusões gerais com base em casos particulares – e também o raciocínio dedutivo, tentativas de atingir conclusões com base em premissas. Aristóteles desenvolveu a Lógica como uma forma de explorar o raciocínio dedutivo, mas poderá dizer-se que o mesmo autor também explorou o raciocínio indutivo, designadamente nos seus estudos de Biologia.

Se tentarmos utilizar o raciocínio dedutivo para estabelecer o que seriam os efeitos de um dado tipo de alimento, ou de medicamento, nos seres humanos, com base em estudos epidemiológicos (portanto, de associação), arriscamo-nos a cometer erros sérios (tal como demonstram os casos acima referidos). Devemos utilizar, ao invés, o método indutivo, e aplicar o conhecimento obtido num grupo limitado de pessoas (em ensaios clínicos controlados) a outras pessoas em situação similar (5).

Será que o método dedutivo é inútil? Certamente que não. O método dedutivo serve para levantar hipóteses, mas estas deverão ser testadas de uma forma empírica, e os resultados aplicados com base num raciocínio indutivo. Francis Bacon, em 1620, declarou que “Rejeitamos a prova pelo silogismo, porque opera na confusão e faz com que a Natureza nos fuja das mãos” (6). No que se refere aos efeitos de medicamentos e de alimentos sobre os seres humanos, tudo indica que Bacon estava certo (5).

Um outro ponto de interesse tem a ver com as explicações mecanísticas. Podemos regressar a Aristóteles, autor que insistiu na importância de compreender as causas dos fenómenos – porque é que as coisas acontecem (“Só compreendemos se soubermos a explicação” (7)). Compreender os mecanismos subjacentes aos efeitos de certos alimentos ou medicamentos nos seres humanos é claramente importante. Muitos medicamentos, de facto, foram sintetizados depois da molécula alvo (enzima, etc.) ser conhecida em detalhe. Contudo, a ação da penicilina foi estabelecida sem uma explicação mecanística precisa. A explicação detalhada do seu efeito foi atingida muito tempo depois do efeito (a morte de bactérias) ser conhecido. Relativamente aos efeitos de medicamentos e de alimentos nos seres humanos, carecemos de dados empíricos – com ou sem uma explicação mecanística.

Embora os ensaios clínicos controlados tenham sido desenvolvidos para estudar os efeitos dos medicamentos, podem ser utilizados para estudar qualquer tipo de intervenção em seres humanos. Investigadores espanhóis publicaram, em 2013, um estudo(8) que mostrou que o azeite extra virgem ou 30 gramas por dia de uma mistura de “nuts” (nozes, avelãs e amêndoas), no contexto de uma “dieta mediterrânica”, levaram a uma redução dos eventos cardiovasculares, quando comparados com uma dieta de controlo, em doentes com risco cardiovascular elevado. Assim, a investigação sobre as dietas pode vir a atingir um grau de conhecimento semelhante ao que atualmente existe para muitos medicamentos.

Todas as opiniões merecem ser ouvidas, e a intuição pode levar a respostas certas em alguns casos, mas para escolher o tipo de alimentos mais adequados (em especial, no caso de ocorrer um desvio em relação ao que seria um padrão comum/tradicional), ou para formar uma opinião sobre medicamentos/ dispositivos médicos/ cirurgia, talvez se possam colocar as seguintes questões:

1.  Existem dados sobre os efeitos? Se não existirem, será de ponderar seguir o conselho de Confúcio: “Desconhecendo as suas propriedades, não me atrevo a prová-lo” (9).

2.  Os dados são de natureza epidemiológica? Uma associação poderosa com um desfecho positivo constitui uma boa indicação, mas não providencia uma resposta definitiva.

3.  Os dados são sobre desfechos clínicos ou sobre “marcadores substitutos”? Os desfechos clínicos são claramente preferíveis.

4.  Existem explicações mecanísticas? Estas são importantes, mas estão num plano secundário quando comparadas com os dados empíricos.

5.  Existem dados de ensaios clínicos controlados? Os ensaios clínicos providenciam o nível ideal de evidência (prova). Infelizmente, somos frequentemente confrontados com informação inconclusiva, caso no qual não se preconiza uma atitude sistemática de “suspensão de julgamento” (10).

6.  Existem dados sobre efeitos a longo prazo? Estes dados tenderão a ser, com frequência, de natureza epidemiológica, mas poderão ser úteis.

Necessitamos de alimentos para sobreviver. O nosso instinto, que nos indica que o que sabe bem é bom, foi desenvolvido em tempos nos quais os nossos antepassados enfrentavam a falta de alimentos numa base diária, e nos quais a sobrevivência dos seres humanos dependia de conseguir lutar com animais e com seres humanos de outras tribos. O nosso apetite para o sal desenvolveu-se quando havia pouco sal na dieta. O ferro é importante para o transporte do oxigénio no sangue, e o fósforo é igualmente importante para a energia celular. Os alimentos com quantidades relativamente importantes de ferro e de fósforo, tais como a carne vermelha, podem ter sido importantes para os nossos antepassados manterem uma forma física que lhes permitisse a sobrevivência. Acredita-se, contudo, que o ferro é um nutriente importante para células microbianas causadoras de doenças, enquanto que o fósforo plasmático elevado se associa, em alguns contextos, a um aumento da mortalidade.

Precisamos de medicamentos para tratar ou para prevenir doenças. Os fármacos são frequentemente pequenas moléculas, muitas das quais capazes de invadir os nossos organismos através da sua “dissolução” passageira nas membranas celulares do tubo digestivo, alcançando assim o nosso “milieu intérieur”. Estas moléculas são frequentemente eliminadas do organismo pelo fígado e pelos rins, muitas vezes apenas após o primeiro destes órgãos ter produzido alterações químicas na estrutura das moléculas, tornando-as menos capazes de atravessar as membranas celulares. Estes “invasores convidados”, por assim dizer, já provaram ser capazes de curar muitas doenças, mas, infelizmente, falharam em muitas outras. Uma avaliação rigorosa dos seus efeitos é, consequentemente, necessária.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.      Menkes MS, Comstock GW, Vuilleumier JP, Helsing KJ, Rider AA, Brookmeyer R. Serum beta-carotene, vitamins A and E, selenium, and the risk of lung cancer. The New England journal of medicine 1986;315:1250-4.         [ Links ]

2.      Bigger JT, Jr., Fleiss JL, Kleiger R, Miller JP, Rolnitzky LM. The relationships among ventricular arrhythmias, left ventricular dysfunction, and mortality in the 2 years after myocardial infarction. Circulation 1984;69:250-8.         [ Links ]

3.      The effect of vitamin E and beta carotene on the incidence of lung cancer and other cancers in male smokers. The Alpha-Tocopherol, Beta Carotene Cancer Prevention Study Group. The New England journal of medicine 1994;330:1029-35.         [ Links ]

4.      Echt DS, Liebson PR, Mitchell LB, et al. Mortality and morbidity in patients receiving encainide, flecainide, or placebo. The Cardiac Arrhythmia Suppression Trial. The New England journal of medicine 1991;324:781-8.         [ Links ]

5.      Nunes JPL. Medical therapeutics: from induction to scientific evolution. Perspectives in biology and medicine 2013;56:568-83.         [ Links ]

6.      Bacon F. The New Organon. Cambridge: Cambridge University Press; 2000 (first published 1620).         [ Links ]

7.      Aristotle. Posterior analytics (The complete works of Aristotle, volume 1). Princeton, NJ: Princeton University Press; 1995.         [ Links ]

8.      Estruch R, Ros E, Salas-Salvado J, et al. Primary prevention of cardiovascular disease with a Mediterranean diet. The New England journal of medicine 2013;368:1279-90.         [ Links ]

9.      Confucius. Analects. London: Penguin Books; 1979.         [ Links ]

10.   Empiricus S. Outlines of Scepticism: Cambridge University Press; 2000.         [ Links ]

 

 

Recebido a 15.10.2014 | Aceite a 15.12.2014