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Nascer e Crescer

versión impresa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.24 no.1 Porto mar. 2015

 

CASO CLÍNICO / CASE REPORTS

 

Criança com múltiplas equimoses… Serão maus tratos?

 

Child with multiple ecchymoses … is it abuse?

 

 

Sara Pimentel MarcosI, Margarida ValérioI, Maria Manuel VilhenaI

I Serviço de Pediatria, Hospital de São Francisco Xavier, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, EPE, 1449-005 Lisboa, Portugal. E-mail: sarasenamarcos@gmail.com; margaridajnvalerio@gmail.com; nene.vilhena@gmail.com

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Caso clínico: Os maus tratos infantis são um problema de saúde pública que pode, em algumas situações, ser mimetizado por patologia da hemóstase. Pretende-se alertar para esta problemática através da descrição do caso clínico de uma criança com quadro de discrasia hemorrágica (equimoses dispersas), em que se levantou a suspeita de abuso físico. Da avaliação realizada, incluindo o estudo da coagulação, conclui-se tratar-se de Doença de von Willebrand tipo I grave, não se tendo provado disfunção social.

Comentários: Perante uma suspeita de maus tratos baseada em sinais de discrasia é absolutamente necessário excluir uma alteração da hemostase. A avaliação laboratorial deve ter em conta a história pessoal e familiar de discrasia, as alterações do exame objetivo e a prevalência das patologias. A confirmação diagnóstica de uma patologia da hemóstase não exclui, contudo, um mau trato físico concomitante devendo ser mantida a vigilância da situação social.

Palavras-chave: Doença de von Willebrand, equimoses, maus tratos, patologia da hemostase.


ABSTRACT

Case report: Child abuse is a public health problem; bleeding disorders can mimic some of these situations. We alert to this problem reporting a case of suspected child abuse in a toddler with multiple ecchymoses. The history and clinical evaluation, including coagulation tests, achieved the diagnosis of severe type I von Willebrand disease failing to prove social dysfunction.

Comments: Physical abuse suspicion in children with bruising symptoms should raise the concern of a potential bleeding disorder. Laboratory tests should be done on the basis of patient and family history, physical examination and prevalence of bleeding conditions. Nonetheless, laboratory testing indicating the presence of a bleeding disorder does not exclude concomitant child abuse and social monitoring and vigilance should be maintained.

Keywords: Child abuse, bleeding disorder, ecchymoses, von Willebrand disease.


 

 

INTRODUÇÃO

Os maus tratos infantis são um problema de saúde pública, estimando-se que 40 milhões de crianças em todo o mundo sejam vítimas de alguma forma de abuso1,2. No nosso país, o número de menores sinalizados e acompanhados pelas comissões de proteção de crianças e jovens tem vindo a aumentar, tendo no ano de 2013 sido feitas 2235 comunicações pelos estabelecimentos de saúde (5.9% do total)3.

Relativamente ao abuso físico, as equimoses dispersas são uma forma de apresentação que frequentemente levanta esta suspeita ao nível dos cuidados de saúde4,5. Apesar de não excluírem maus tratos concomitantes5, muitas destas situações irão corresponder contudo a alterações da hemostase como a hemofilia, a doença de von Willebrand (DvW), défice de outros fatores da coagulação, défice de vitamina K, defeitos fibrinolíticos ou do fibrinogénio e distúrbios plaquetários6. Dada a raridade de algumas destas discrasias é inconcebível fazer uma investigação analítica extensa a todas as crianças. A extensão da avaliação laboratorial perante uma suspeita de maus tratos físicos no contexto de uma discrasia mucocutânea deve ter em conta a história pessoal e familiar de discrasia e as características do exame físico. A Academia Americana de Pediatria sugere um painel inicial de exames que inclui o tempo de protrombina (TP), tempo de trombina parcial ativada (aPTT), Fator de von Willebrand atividade do cofator da ristocetina (FvW:RCo), antigénio do FvW (Ag FvW), Fator VIII (FVIII), Fator IX (FIX), hemograma e contagem de plaquetas, tendo em conta a prevalência das patologias e o seu potencial de causar as alterações encontradas4. A maioria dos défices de fatores pode ser detetada pelo prolongamento dos TP e aPTT, sendo importante ter em consideração que na DvW (quando o défice de FVIII é ligeiro) e na hemofilia ligeira-moderada o aPTT pode estar normal e que os defeitos fibrinolíticos, do fibrinogénio e outros defeitos raros das plaquetas não são detetáveis neste rastreio4-6.

 

CASO CLÍNICO

Criança de 19 meses, sexo masculino, trazida ao serviço de urgência (SU) por múltiplas equimoses. Vinha acompanhada pelos pais, revoltados, após terem sido confrontados pela diretora da creche com a hipótese de a criança ser vítima de maus tratos físicos. Referiam que sempre fizera equimoses com facilidade e que as associavam às brincadeiras com o irmão, negando maus tratos por parte da família.

Tratava-se de uma família nuclear, de pais jovens, não consanguíneos. A mãe, impaciente e ansiosa, referia ter também tendência para equimoses fáceis. O pai e o irmão de 3 anos eram saudáveis e não havia história de doenças hematológicas na família. Dos antecedentes pessoais a assinalar um episódio de hemorragia de difícil controlo, por traumatismo do lábio, aos 17 meses, não havendo referencia a outras discrasias, nomeadamente epistáxis, hemorragias no parto, na queda do cordão umbilical, na administração de vacinas, nunca tendo sido submetido a nenhuma cirurgia.

À observação tinha um aspeto cuidado, comportamento alegre e boa relação com os pais. Apresentava múltiplas equimoses, em diferentes fases de evolução, na região anterior e posterior do tronco e nos membros inferiores; tinha uma pequena escoriação com hematoma na região malar esquerda. Não se encontraram outras alterações, nomeadamente sinais de trauma, hemorragia ativa, adenomegalias nem organomegalias. Na avaliação laboratorial realizada no SU não havia alteração dos valores de hemoglobina, contagem de plaquetas, TP, aPTT ou do fibrinogénio.

Foi orientado para a Consulta de Pediatria para esclarecimento da situação social e eventual prosseguimento do estudo da coagulação. A avaliação social não concluiu disfunção familiar nem problemas ao nível da creche. Repetiu estudo da coagulação, agora com aPTT aumentado (42,8 segundos, para um controlo de 25-36 segundos), doseamento de FvW:Rco (1,8%) e do Ag FvW (9,3%) gravemente diminuídos e défice ligeiro do FVIII funcional (33%); o doseamento de FIX funcional era normal. Colocou-se a hipótese de uma coagulopatia (DvW com défice ligeiro FVIII) e foi transferido para a Consulta de Hematologia Pediátrica de um centro de referência onde repetiu estudo da coagulação seguido da análise multimérica do FvW (em laboratório nacional de referência) que confirmou a hipótese de DvW tipo 1 grave. Posteriormente fez prova com desmopressina não se tendo obtido resposta. Desde então já teve 2 internamentos por hemorragia aguda (epistáxis e hemorragia digestiva alta), com boa resposta à terapêutica com ácido aminocapróico e derivado plasmático FvW/FVIII, e foi submetido a cirurgia otorrinológica sob profilaxia com FvW/FVIII, sem intercorrências. Foi feito o estudo de discrasia ao restante agregado familiar, acabando por se confirmar DvW tipo I no pai.

 

DISCUSSÃO

A DvW é a coagulopatia hereditária mais frequente, com uma prevalência de 1-2% da população. É causada por uma alteração do FvW, que participa na hemostase primária (adesão das plaquetas ao subendotélio lesado contribuindo para a formação do trombo plaquetário) e secundária (transporte do FVIII, estabilizando-o e prolongando a sua semivida). A clínica (hemorragia mucocutânea, hemorragia pós intervenção cirúrgica) traduz este “duplo” defeito7-9.

No caso apresentado, o quadro clínico (equimoses dispersas, em vários estádios) levantou a suspeita de abuso físico paralelamente à hipótese de uma alteração da hemóstase (quadro 1). Apesar da avaliação no SU ter sido inconclusiva, o doseamento normal do aPTT não excluía DvW. Para o diagnóstico da DvW é necessário o doseamento do Ag FvW, FvW:Rco, FVIII funcional e análise multimérica do FvW, tendo em conta que o FvW sofre variações com a idade, grupo de sangue, estados de inflamação, stress, hormonas e exercício, podendo ser necessário repetir esta avaliação. De acordo com os valores e alterações encontradas, a doença classifica-se em 3 tipos. Na DVW tipo I, responsável por 65%-80% dos casos, há um défice parcial do FvW:RCo (5-40%) com diminuição sobreponivel do Ag FvW; a transmissão é autossómica dominante, a sintomatologia é geralmente moderada e a penetrância é variável dentro da mesma família. Na DvW tipo II, a que correspondem 20-35% dos casos, há uma expressão anormal (qualitativa) do FvW que se traduz por uma redução marcada do FvW:RCo e moderada do Ag FvW; a transmissão é autossómica dominante ou recessiva e subdivide-se em 2A, 2B, 2M, 2N com clínica variável. Na DvW tipo 3, a forma mais rara, o FvW está virtualmente ausente (FvW:Rco <5%) com redução significativa do FVIII (<6%); a transmissão é autossómica recessiva e caracteriza-se clinicamente por hemorragia grave; os portadores heterozigóticos podem ser assintomáticos ou exibir doença moderada.7-9.

 

 

Desta forma, no caso clínico em questão, quando se prosseguiu a escalada diagnóstica, a diminuição acentuada do FvW:Rco juntamente com a do Ag FvW, sem redução significativa dos níveis de FVIII e análise multimérica normal orientaram para o diagnóstico de DvW tipo 1 (que neste caso se classificou de grave pelo muito baixo valor percentual do FvW:Rco).

Após um diagnostico de DvW deve fazer-se a prova com desmopressina para decidir o tratamento em caso de hemorragias futuras. Apesar dos bons resultados na maioria dos casos de DvW tipo I, o tratamento com desmopressina não se mostrou benéfico nesta criança com uma forma doença grave restando, como alternativa terapêutica em situação de hemorragia, a reposição com derivado plasmático FvW/FVIII.

O pai, apesar de também ter a doença, esteve sempre assintomático o que reflete a diferente penetrância da patologia7,8. Apesar de não excluir maus tratos9, o diagnóstico de patologia da hemóstase tornou essa hipótese menos provável, que acabou por ser afastada após uma avaliação e vigilância da situação social que se revelou sem alterações.

 

CONCLUSÃO

Qualquer patologia da hemostase que curse com equimoses pode, de acordo com a sua localização e distribuição, levantar a suspeita de abuso. Assim, é necessário excluir uma doença deste tipo numa criança alegadamente vítima de maus tratos, tendo em conta que este diagnóstico não exclui um mau trato físico concomitante. É dever do médico fazer uma avaliação clínica e social cuidada de cada situação de forma a evitar erros que poderão ter consequências catastróficas para a família3,4,9.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.      United Nations. World report on violence against children. 2006. Acessível em: http://www.who.int        [ Links ]

2.      Leça A, Perdigão A, Laranjeira A, Menezes B, Velez C, Prazeres V, et al. Maus tratos em crianças e jovens-guia prático de abordagem, diagnóstico e intervenção. Direcção Geral Saúde; Fevereiro 2011. Acessível em: http://www.dgs.pt - Microsite Crianças e Jovens em Risco.         [ Links ]

3.      Comissão Nacional de Proteção das Crianças e jovens em Risco. Relatório anual da avaliação da actividade das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens no ano de 2013. Acessível em: http://www.cnpcjr.pt/        [ Links ]

4.      Anderst JD, Carpenter SL, Abshire TC, Section on Hematology/ Oncology and Committee on Child Abuse and Neglect of the American Academy of Pediatrics. Evaluation for bleeding disorders in suspected child abuse. Pediatrics 2013;131(4):e1314–22.         [ Links ]

5.      Laposata ME, Laposata M. Children with signs of abuse: when is it not child abuse? Am J Clin Pathol 2005;123(1):S119-24.         [ Links ]

6.      Carpenter SL, Abshire TC, Anderst JD, Section on Hematology/ Oncology and Committee on Child Abuse and Neglect of the American Academy of Pediatrics. Evaluating for suspected child abuse: conditions that predispose to bleeding. Pediatrics 2013;131(4):e1357–73.         [ Links ]

7.      Montgomery RR, Gill JC, Di Paola J. Hemophilia and von Willebrand disease. In: Nathan and Oski’s: Hematology of Infancy and Childhood, 6th ed. Philadelphia. Saunders Elsevier; 2003. p. 1487-524.         [ Links ]

8.      Lillicrap D. von Willebrand disease: advances in pathogenetic understanding, diagnosis and therapy. Blood 2013;122(23):3735-40.         [ Links ]

9.      Sousa LA, Ferrão A, Morais A. Doença de von Willebrand: dificuldades no diagnóstico. Acta Pediatr Port 2006;37(4): 158-61.         [ Links ]

 

AGRADECIMENTOS

À Dra. Maria João Palaré, do Serviço de Hematologia Pediátrica do Hospital de Santa Maria, pela orientação do caso apresentado.

 

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não existir qualquer conflito de interesses relativamente ao presente artigo.

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

 

EM DESTAQUE

Perante uma suspeita de maus tratos baseada em sinais de discrasia é absolutamente necessário excluir uma alteração da hemostase. Um diagnóstico deste tipo não exclui um mau trato físico concomitante devendo ser mantida a vigilância da situação social.

Physical abuse suspicion in children with bruising symptoms should raise the concern of a potential bleeding disorder. This diagnosis doesn’t rule out concomitant child abuse and social monitoring should be maintained.

 

 

Endereço para correspondência
Sara Pimentel Marcos
Estrada do Forte do Alto do Duque, 1495-005 Lisboa
Serviço de Pediatria, Hospital de São Francisco Xavier, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, EPE;
Telefone: 210 431 147
E-mail: sarasenamarcos@gmail.com

Recebido a 22.05.2014 | Aceite a 09.01.2015