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Nascer e Crescer

Print version ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.24 no.3 Porto Sept. 2015

 

CASOS CLÍNICOS | CASE REPORTS

 

O adolescente e a doença crónica: a propósito de um caso de adolescente com Síndrome de Klippel-Trenaunay

 

The adolescent and the chronic illness: an adolescent with Klippel-Trenaunay Syndrome

 

 

João CanhaI; Inês PortinhaII

I S. de Psiquiatria e Saúde Mental Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/ Espinho.4434-502 Vila Nova Gaia, Portugal. E-mail: joao.canha@chvng.min-saude.pt
II Departamento de Pedopsiquiatria e Saúde Mental da Infância e da Adolsescência Centro Hospitalar do Porto, 4099-099 Porto, Portugal. E-mail: inescportinha@gmail.com

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Introdução: A relação do adolescente com a doença crónica é complexa e causa desequilíbrios no seu desenvolvimento biopsicossocial. A adolescência constitui uma fase crítica de mudança que pode afectar e ser afectada pela doença, independentemente da sua especificidade.

Caso Clínico: Adolescente de 16 anos do sexo masculino, portador de síndrome de Klippel-Trenaunay, que apresenta sintomatologia do foro depressivo e ansioso, alteração de atitudes e comportamentos face à doença e dificuldade na adesão terapêutica, relacionados com o processo de integração e gestão da sua doença, com impacto físico, psíquico e social.

Conclusão: As alterações desenvolvimentais da adolescência colocam desafios acrescidos à gestão da doença crónica. Por isso, impõe-se aos serviços de saúde a compreensão do seu impacto global com especial atenção à percepção da qualidade de vida e bem-estar e a criação de espaço para que este possa ser abordado e minimizado.

Palavras-chave: Adolescent; Development; Chronic disease; Psychological adjustment; Klippel-Trenaunay syndrome


ABSTRACT

Introduction: The relationship between the adolescent and his chronic illness is complex and causes imbalance in his biopsychosocial development. Adolescence constitutes a critical stage with changes that may affect and be affected by illnesses, regardless its specificity.

Case Report: Sixteen year-old male with Klippel-Trenaunay syndrome presenting depressive and anxious symptoms and poor therapeutic adherence, in relation to his poor adjustment to the disease, with physic, psychic and social impact.

Conclusion: Physical and psychological changes during adolescence pose increased challenges to the management of chronic illness. Therefore, health services should understand its global impact specially on life quality and well-being perception - and adress this issue with the patients.

Keywords: Adolescent; Development; Chronic disease; Psychological adjustment; Klippel-Trenaunay syndrome


 

 

INTRODUÇÃO

A doença crónica na adolescência constitui-se como um desafio aos profissionais de saúde que ultrapassa largamente a especificidade da afecção orgânica e seu tratamento.1-3 A adolescência representa uma etapa crítica do desenvolvimento marcada por múltiplas experiências de confrontação e adapta ção, relacionadas com vários factores: as alterações físicas e biológicas, a experimentação de papeis emocionais e sociais, a transição entre dependência e independência, ou as preocupações com o auto-conceito.4 A doença crónica interfere frequentemente com o normal crescimento e traz maior risco ao desfecho adaptativo deste processo, o que por sua vez, pode ameaçar a normal gestão dos cuidados à doença.4,5Ela acrescenta desequilíbrios no crescimento orgânico e fisiológico do adolescente, mas pode também ser ela própria influenciada pelos processos psíquicos de individuação e socialização que nesta fase alteram a percepção e a atitude face à doença.2

Sabe-se que os conceitos de identidade, auto-imagem e desenvolvimento do ego estão afectados no adolescente portador de doença crónica, principalmente nos casos de doença grave e naqueles com maior QI verbal.2 A imagem corporal e a vida sexual são duas das dimensões mais susceptíveis de per turbação, parecendo haver nalguns estudos maiores índices de insatisfação com o corpo.2 São também mais susceptíveis ao desenvolvimento de perturbações psiquiátricas, emocionais e comportamentais e ao aparecimento de sintomatologia depressiva, ansiosa e baixa auto-estima.2,4,5

Estes doentes são confrontados com restrições no estilo de vida, com aumento de dependência em relação à família e difi culdades na integração no grupo de pares.2,5 Questões como o vestuário, a prática de exercício ou as actividades de grupo podem conflictuar com as características da doença e/ou do tratamento, levando a que estes sejam colocados em segundo plano, em detrimento da dimensão social2. Os comportamen tos daí resultantes põem muitas vezes em perigo a sua saúde, provocando descompensação clínica, alterando tratamentos ou precipitando hospitalizações.3

Não existe um claro consenso quanto à prevalência da doença crónica nos adolescentes, principalmente devido à di versidade de definições. Situar-se-á entre os 7 e os 15%, de acordo com a abrangência da definição utilizada.2

O Síndrome de Klippel-Trenaunay (SKT) pode ser englobado dentro do grupo de doenças crónicas de início precoce. Caracteriza-se por uma malformação vascular combinada, complexa e congénita, rara e de etiologia desconhecida, constituindo-se pela tríada:6

  • Angioma plano localizado num membro
  • Malformações venosas
  • Hipertrofia dos tecidos moles e/ou ósseos

Esta tríada verifica-se na totalidade em cerca de 30 a 60% dos casos, sendo que é necessária a combinação de duas destas condições para firmar o diagnóstico. Podem ainda estar associadas anomalias venosas profundas, capilares  e linfáticas, complicações tromboembólicas e coagulopatias de consumo.6,7

Não foram encontradas, até hoje, alterações psicopatológicas associadas especificamente a esta síndrome. Ela constitui, contudo, uma doença crónica que impõe sérios desafios ao desenvolvimento biopsicossocial na adolescência. Os autores descrevem o caso de um adolescente com SKT, discutindo o impacto psíquico e desenvolvimental associado à doença crónica.

 

CASO CLÍNICO

Rapaz de 16 anos, com Síndrome de Klippel-Trenaunay diagnosticado aos 3 anos de idade, frequentando as consultas de Ortopedia, Cirurgia Vascular e Hematologia. Apresenta alterações no membro inferior com angioma plano, mal-formação vascular e hipertrofia dos tecidos moles, coagulopatia de consumo crónica e valores de fibrinogénio persistentemente diminuídos, apresentando risco trombótico e hemorrágico.

Gestação de 38 semanas, com história de diabetes gestacional e parto por cesariana. Desenvolvimento psicomotor adequado à idade. Boa adaptação no período pré-escolar, com bom aproveitamento até ao 7º ano. Relata dificuldades de integração no 8º e 9º anos, com deterioração das interacções com os pares (associada à imagem corporal e diminuição das capacidades motoras) e diminuição do rendimento escolar, motivo pelo qual decidiu inscrever-se noutra escola. Frequenta actualmente o 10º ano, referindo boa integração. Participa em actividades num grupo desportivo onde se diz sentir aceite e admirado, participando em espectáculos escolares. Descreve-se como reservado e pouco interactivo ao primeiro contacto.

Internado aos 16 anos durante 40 dias por extenso hematoma toraco-abdominal de difícil resolução, associado a hemorragia activa e algia intensa, em relação com ruptura muscular a nível da cintura escapular esquerda ocorrida em contexto de prática de actividade física baseada em hiper-extensões articulares. Foi pedida avaliação por pedopsiquiatria por manifestar dificuldades na adaptação ao internamento e sintomatologia depressiva. Apresentava humor triste e labilidade emocional, anorexia e emagrecimento de 11kg desde há cerca de 30 dias, sentimentos de desesperança e menos-valia. Associa o quadro ao internamento prolongado, à imobilização, e relata dúvidas sobre a recuperação física, o receio de perda das capacidades motoras e impossibilidade de manutenção das suas actividades e estilo de vida. Foi medicado com sertralina 50mg/dia que suspendeu 2 meses após a alta por regressão da sintomatologia. No mesmo ano esteve internado 10 dias por síndrome febril com bacteriémia a Proteus mirabilis, e 22 dias por hematoma na região poplítea do membro inferior e dor na articulação coxo-femural. Ambos os casos estão também associados à prática de exercício físico onde usa hiper-extensão articular, que não abandonou por se identificar com a modalidade e não querer perder o grupo onde se inseriu e se sente bem. Após o último internamento não frequentou a escola durante cerca de 2 meses por dificuldades de mobilização, tendo decidido suspender o ano e mudar de escola.

Após suspensão da medicação antidepressiva admite agravamento de sintomatologia do foro ansioso-obsessivo que nunca tinha relatado até então. Apresentava preocupações exacerbadas com a sua saúde, questionando sobre estilos de vida saudável (p.ex, alimentação), ideias de contaminação e rituais de verificação. Retomou sertralina com escalada de dose até aos 150mg/dia, com esbatimento das ideias obsessivas e dos rituais. Mantém prática da actividade física e participação em concursos e espectáculos. Apesar dos riscos que a actividade acarreta, afirma fazer parte da sua identidade e da sua forma de interagir com os outros

 

DISCUSSÃO

O caso apresentado exemplifica muitas das dificuldades apresentadas pelos adolescentes no seu “diálogo” com a doença crónica e parece ir ao encontro de muitos dos dados abordados na literatura. Esta é escassa no que concerne o impacto psicológico e a psicopatologia associada ao SKT, ao que não é alheio o facto de ser uma condição rara. Um estudo holandês8 encontrou um impacto considerável na percepção da qualida de de vida destes doentes, quando comparados com a população geral. Esta diferença pode acentuar-se na adolescência com o agravamento de alguns sintomas7,8. Um dos primeiros estudos realizados com doentes com SKT9 mostra que estes sofrem do impacto psicológico negativo da doença, sobretudo aqueles que se percepcionam como tendo pior saúde. Pontuam mais nas dimensões somática e psicológica comparativamente à população geral, nomeadamente no que se refere ao traço ansiedade.

Contudo, é necessário ter em conta as repercussões que uma condição crónica, independentemente das suas características, provoca no desenvolvimento biopsicossocial do adolescente. Stein e Jessop sublinharam a existência de um impacto transversal ao nível psicossocial na doença crónica, alertando para a importância do que é semelhante, mais do que as especificidades de cada doença1. Este caso salienta essa transver salidade, ao evidenciar repercussões e dificuldades observadas noutras doenças crónicas mais estudadas, como a diabetes ou a asma.

O doente descrito desenvolve pela primeira vez sintomatologia depressiva associada ao internamento prolongado e à consciencialização do impacto da doença na sua vida e na forma como se percepciona. Algumas situações parecem ressaltar atitudes de negação, nomeadamente quando repete actividades que comportam risco de agravamento da doença. Por outro lado evidencia ideias ruminativas quando se mostra exageradamente preocupado com a sua saúde. Este aparente contrassenso pode ser explicado pela influência de múltiplos factores emocionais e desenvolvimentais nesta fase de crescimento. A con frontação com a doença crónica, sobretudo aquando dos seus períodos de exacerbação ou descompensação, expõe as repercussões daí resultantes no presente e no futuro, na concepção da sua auto-imagem, na idealização do self e do seu projecto de vida. Isto pode ter conduzido às preocupações exageradas que verbaliza sobre a sua saúde geral e ao aparecimento de perturbação ansiosa relacionada com hábitos de vida saudáveis. O desenvolvimento da sintomatologia obsessiva poderá ser compreendida, neste contexto, pela percepção de dificuldade no “controlo” da sua saúde e do seu bem-estar, pela ambivalência emergente entre a atenção aos cuidados de saúde e o desejo de ignorar uma doença que condiciona a sua liberdade. Segundo os estudos científicos, a sintomatologia depressiva parece estar mais associada à gravidade da doença, aos eventos de vida negativos e ao sexo feminino, o mesmo acontecendo com a utilização de estratégias de coping de culpa (auto ou hetero-atribuída), ruminação, catastrofização e negação5.

No caso apresentado, a reincidência da prática de actividade física favorece um prejuízo ou agravamento da doença. A manutenção da actividade de grupo, o reconhecimento dos pares e a identificação com a prática física demonstra o maior peso da socialização, da necessidade de aceitação e de igualdade na tomada de algumas decisões face à doença. É nesta ambivalente convivência com a doença que desenvolve o seu proceso de individuação, de independência familiar e de inte gração social. Dois internamentos parecem ter resultado directamente da pobre compliance, o que, juntamente com a longa duração dos mesmos e respectivas convalescenças, levou à perda de um período académico importante e à decisão de desistência do ano lectivo. Deve ainda salientar-se o relato das dificuldades de integração no 3º ciclo, aliadas à quebra do rendimento escolar, que já tinham contribuído para a mudança de escola. Coloca-se aqui em equação a problemática da adesão ao tratamento em sentido lato, definida por Haynes como todo o comportamento coincidente com a orientação médica seja em relação à toma da medicação ou seguimento de dieta, ou mes mo execução de mudanças no estilo de vida10. A pobre adesão à terapêutica nestes adolescentes verifica-se em múltiplos estudos e pode estar associada a factores cognitivos, emocionais e psicológicos, à percepção da doença ou a características do meio circundante3,4. O parco desenvolvimento do pensamento abstracto, a incapacidade de antecipação das consequências futuras ou o falso conceito de invulnerabilidade poderão estar implicados2. Assim, os comportamentos de risco ou explorató rios típicos deste período podem exacerbar-se nos adolescentes com doença crónica, uma vez que, ao contrário do que se poderia pensar, poderão ter mais tendência para se envolverem em actividades sociais e colocarem-se em situações de risco, à procura do desejo de “ser igual aos outros”.3 Por outro lado, os comportamentos de não-compliance também devem ser consi derados como fazendo parte do desenvolvimento apropriado na adolescência. É por isso importante não julgar ou repreender o doente, procurando dar espaço a que este se possa expressar sobre o tratamento.3 Este caso retrata também a perturbação ao nível académico, nomeadamente o menor aproveitamento escolar, também encontrado num estudo recente realizado numa população de adolescentes portugueses.11 Tem sido sugerido que este impacto tem por base o medo da divulgação da doença e da estigmatização, as incompatibilidades vocacionais, as faltas à escola devido à doença, ao seu tratamento, ou simplesmente a maior susceptibilidade ao absentismo.

O caso relatado espelha a complexidade da convivência do adolescente com a doença crónica, materializando várias questões e preocupações salientadas na literatura. Em razão da evolução no conhecimento clínico e terapêutico, as doenças tendem a apresentar uma evolução cada vez mais crónica. As mudanças psíquicas e comportamentais próprias da adolescência podem sofrer maior desequilíbrio quando existe uma doença crónica, expondo necessidades de cuidados ao nível psicosso cial, preventivo e reabilitativo.1 Uma abordagem holística, com apoio psicoeducativo e psicoterapêutico, vocacionada para melhorar a adaptação e a adesão, pode preencher um “espaço vazio” deixado pela especialização dos cuidados médicos.1,3,9 Deve ser proporcionado o espaço para que o adolescente exponha as suas dificuldades, elegendo a melhoria do bem-estar como um dos objectivos principais do tratamento5. A relação clínico-paciente poderá ter mais importância do que aquela que se atribui no que respeita a melhoria da adesão ao regime terapêutico:3

NOTA: O presente artigo está redigido segundo a antiga ortografia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

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Endereço para correspondência
João Canha
Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental
Rua Conceição Fernandes
Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/ Espinho
4434-502 Vila Nova Gaia, Portugal.
Email: joao.canha@chvng.min-saude.pt

Recebido a 05.05.2014 | Aceite a 20.04.2015

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