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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.25 no.3 Porto set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

 

Motivos de recurso ao Serviço de Urgência Pediátrica

 

Reasons to access to a Pediatric Emergency Department

 

 

Ana Cristina FreitasI; Ana Raquel MoreiraII; Soraia ToméII; Raquel CardosoII

I S. de Pediatria do Centro Materno Infantil do Norte, Centro Hospitalar do Porto. 4099-001 Porto, Portugal. anacrisfrei@gmail.com
II S. de Pediatria do Centro Hospitalar Médio Ave. 4761-917 Vila Nova de Famalicão, Portugal. araquelsmoreira@gmail.com; soraia.tome@chma.min-saude.pt; raquel.cardoso73@gmail.com

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Introdução: O recurso ao serviço de urgência (SU) hospitalar motivado por situações não urgentes é frequente e conduz a pior prestação de cuidados, insatisfação dos utentes e profissionais e aumento dos custos.

Objectivos: Determinar os motivos para recurso a SU pediátrica hospitalar.

Material e métodos: Estudo descritivo, transversal, entre 10/10 e 31/12/2013 em SU pediátrico hospitalar, através de análises de inquéritos preenchidos de forma anónima pelos acompanhantes e complementados com informação clínica pelo médico.

Resultados: Foram analisados 481 questionários. O recurso ao SU ocorreu nas primeiras 24 horas de doença em 48% dos casos. Os principais motivos foram: noção de doença grave e urgente (33%), local de atendimento mais próximo (17%), preferência por avaliação por pediatra (17%). A maioria teve alta sem realização de exames complementares de diagnóstico ou tratamento (89%) e os principais diagnósticos de alta foram nasofaringite e gastroenterite agudas. Apenas 19,7% das idas ao SU poderiam ser consideradas como “justificadas” pelo cumprimento dos critérios de OMS para urgência hospitalar ou por orientação prévia por outra entidade de saúde. Não existem diferenças estatisticamente significativas entre as características das crianças que recorreram ao SU de forma “justificada” e “não justificada”.

Discussão e conclusão: O reconhecimento de situações clínicas que justifiquem o recurso ao SU hospitalar não parece relacionado com habilitações literárias parentais ou atribuição de médico de família. A percepção de doença grave em situação benigna com recurso precoce e injustificado ao atendimento em contexto de serviço de urgência denota falta de educação para a saúde na população geral.

Palavras-chave: serviço de urgência; pediatria; sociedade


ABSTRACT

Introduction: Hospital emergency department (ED) utilization by non-urgent situations is common and leads to worse care, patients and professionals dissatisfaction and increasing costs.

Objective: To determine the reasons and adequacy for the use of a hospital pediatric ED.

Methods: Descriptive, cross-sectional study between October 10 and December 31 2013 at an hospital pediatric ED, through analysis of questionnaires completed by child caretakers and with clinical data provided by the doctor who observed the child.

Results: There were 481 validated and analised questionnaires. ED use within the first 24 hours of disease was observed in 48%. The main reasons were: notion of a serious and urgent disease (33%), being the nearest facility (17%), preference for evaluation by a pediatrician (17%). Most were discharged without any additional diagnostic test or specific treatment (89%) and the main discharge diagnosis were acute nasopharyngitis and gastroenteritis. Only 19.7% of ED episodes were considered as “justified” by the WHO criteria for hospital emergency or by referral from another health institution. There are no differences between children who used pediatric ED in a “justified” or “unjustified” way.

Discussion and conclusion: Recognition of clinical situations that justify the hospital ED use seems unrelated to parental education or primary care doctor assignment. The notion of serious illness in low-severity situations with early and fast access to a tertiary health care facility reveals lack of information on health concepts by the general population.

Keywords: emergency service; pediatrics; society


 

 

INTRODUÇÃO

Um episódio de urgência é definido como uma situação clínica de instalação súbita com risco de estabelecimento de falência de funções vitais.1 Segundo a OMS, os episódios clínicos podem ser classificados em urgências hospitalares (emergência vital ou necessidade de utilizar meios de diagnóstico ou terapêutica não disponíveis nos cuidados de saúde primários), urgências não hospitalares (necessidade de assistência médica imediata, sem que exista perigo de vida para o doente) e episódios não urgentes (situação que pode aguardar por avaliação em consulta programada pelo médico assistente).2

O recurso ao serviço de urgência (SU) hospitalar por situações não urgentes é frequente.3-8 Esta realidade condiciona pior prestação de cuidados às situações verdadeiramente urgentes, insatisfação dos utentes e profissionais e insuficiência de recursos humanos.9

O objectivo deste trabalho foi determinar os motivos alegados pelos acompanhantes das crianças doentes para recorrer a um serviço de urgência pediátrica hospitalar e a sua adequação, relacionando-os com as características socioeconómicas e clínicas da população em estudo.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Estudo descritivo e transversal, realizado em serviço de urgência pediátrica hospitalar entre 10 de outubro e 31 de dezembro de 2013, através da análise de inquéritos preenchidos pelos acompanhantes das crianças observadas em serviço de urgência pediátrica hospitalar e pelo médico pediatra que as observou. O estudo foi realizado num Centro Hospitalar localizado na região norte do país e responsável pela prestação de cuidados de saúde a uma população de cerca de 250.000 habitantes, que apresenta nível de urgência médico-cirúrgica e urgência pediátrica com equipa de profissionais especializada em pediatria em funcionamento em local físico próprio. A realização do estudo durante a estação do Outono/Inverno foi relacionada com a superior afluência ao serviço de urgência por motivos médicos neste período. O estudo e inquérito aplicado foram aprovados pela direção clinica e comissão de ética hospitalar. A entrega dos questionários ficou a cargo de funcionários administrativos, tendo sido entregue aos acompanhantes de crianças levadas ao serviço de urgência no momento de abertura do episódio de urgência entre as 08 e as 22 horas de dias úteis, com exceção dos casos motivados por traumatismo ou acidente escolar. Cada inquérito foi preenchido de forma escrita e anónima pelo acompanhante da criança no período de espera pela observação médica e entregue ao médico, que o completou com a informação clínica. Foram excluídos os inquéritos entregues sem preenchimento, ou os que não incluíam informação clínica ou os motivos de recurso ao SU. As questões de preenchimento pelo acompanhante da criança incluíram: data e hora de ida ao SU, relação do acompanhante com a criança, características epidemiológicas (data de nascimento, sexo, agregado familiar, idade e escolaridade dos pais) e clínicas (doença crónica, seguimento em médico de família e seguro de saúde) e características do episódio de urgência (duração do episódio de doença, motivos de ida ao SU e avaliação prévia por outro médico). De entre os motivos descritos para recurso a SU pediátrico hospitalar, o inquérito abrangia as seguintes: encaminhado do médico de família/pediatra, indicação da linha “saúde 24”, levado por ambulância/INEM ou por funcionário da escola, local de atendimento médico mais próximo, não possuir médico de família, não confiar na avaliação por médico de família, preferir avaliação médica por pediatra, dificuldade ou demora em obter avaliação por médico de família, noção de potencial doença grave e urgente e outros (campo aberto de escrita livre). O médico responsável pela observação da criança preencheu as últimas questões, de forma anónima: diagnóstico de alta, realização de exames complementares de diagnóstico, medicação parentérica ou internamento hospitalar.

Os inquéritos foram analisados de forma anónima, as variáveis categóricas são apresentadas como frequências e percentagens e as variáveis contínuas como médias e desvios-padrão ou medianas e distâncias interquartis no caso de variáveis com distribuição não normal. Foi efetuado o teste t-student na comparação de variáveis contínuas e teste de chi-quadrado na comparação das frequências das variáveis categóricas, com o apoio do programa IBM SPSS Statistics® for Mac 22, tendo sido considerado o nível de significância de p<0,05.

 

RESULTADOS

Foram considerados válidos e analisados 481 inquéritos, com uma distribuição entre 0 e 42 inquéritos por dia (média de 9 inquéritos por dia) e maioritariamente até às 20 horas (60%). Os questionários foram referentes a idas ao SU pediátrico hospitalar de crianças com idade mediana de 4,6 anos (distância interquartil de 7,0 anos) e 52,9% do sexo masculino. A maioria foi acompanhada pelos pais (88% pela mãe e 9,8% pelo pai), tinha agregado familiar constituído por família nuclear (73,6%), com habilitações literárias dos pais correspondentes aos 3º ciclo e ensino secundário (60%), não apresentava doença crónica (86,5%), tinha médico de família atribuído com consultas regulares (94% e 79%, respetivamente) e não possuía seguro de saúde (78,6%).

A ida ao SU ocorreu maioritariamente nas primeiras 24 horas de doença (gráfico 1). Os motivos para recurso a SU hospitalar estão descritas no quadro 1, sendo os principais: noção de potencial doença grave e urgente, local de atendimento mais próximo e preferência por avaliação por pediatra. Os principais diagnósticos de alta, segundo a classificação internacional de doenças (CID-10), foram nasofaringite aguda, gastroenterite de origem infecciosa presumível e amigdalite aguda – quadro 2. Das crianças observadas, 89,5% não realizaram qualquer procedimento ou tratamento endovenoso e 96,6% tiveram alta para o exterior sem referenciação necessária. No total, foi atribuída alta hospitalar do episódio de urgência sem realização de exames complementares ou tratamento parentérico em 89% das crianças.

 

 

 

 

 

 

Considerando a necessidade de investigação ou tratamento específico no episódio de urgência ou referência prévia por outra entidade de saúde como critérios para recurso “justificado” ao SU, 19,7% das crianças cumpriram estes critérios. Não se observaram diferenças estatisticamente significativas entre as características das socioeconómicas ou clínicas das crianças levadas ao SU de forma “justificada” e “não justificada”, nomeadamente idade, escolaridade parental, agregado familiar, doença crónica, seguro de saúde, vigilância regular em médico de família e duração da doença, conforme descrito no quadro 3.

 

 

 

DISCUSSÃO

A redução da utilização indevida dos serviços de urgência hospitalares em Pediatria depende da compreensão da sua motivação pelos cuidadores e acompanhantes das crianças doentes. No nosso estudo, os principais motivos foram a noção de potencial doença grave e urgente, proximidade do local e preferência por avaliação pela especialidade de Pediatria. Estes resultados são semelhantes aos descritos por Costa et al em estudo realizado em hospital na região do Porto em 1997, o que mostra uma manutenção nos comportamentos sociais em saúde nos últimos 15 anos.4

O receio de doença grave por parte dos acompanhantes não se correlaciona com a gravidade clínica, na medida em que os principais diagnósticos de alta foram nasofaringite, gastroenterite e amigdalite agudas e a maioria das crianças teve alta sem necessidade de intervenção hospitalar específica. Este padrão de diagnóstico de alta e posterior orientação é o habitualmente descrito em estudos realizados em contexto de serviço de urgência hospitalar.3,4,10 Kubieck et al analisou um grupo de crianças/acompanhantes que recorreram a serviço de urgência hospitalar por motivos não urgentes, constatando que 63% consideravam a situação clínica da criança como muito ou extremamente grave.11

De facto, apenas 19,7% dos episódios de urgência foram classificados como “justificados”. Em outros estudos nacionais semelhantes, publicados há mais de 10 anos, o recurso a urgência hospitalar foi considerado adequado em 20 a 42%.3,4 Estes valores são inferiores aos descritos em outros centros estrangeiros, em que o uso dos serviços de urgência hospitalares por motivos não-urgentes, ultrapassam os 50%.5-8

Vários autores descreveram fatores associados à adequação na utilização do SU hospitalar, como referenciação prévia por outra entidade de saúde e doença crónica.6,10

Por outro lado, factores como idade inferior a 6 anos, duração da doença inferior a 24-72 horas e proximidade do local de residência foram associados a inadequação no recurso à urgência hospitalar.3,6,8

O nosso estudo não identificou nenhuma característica com associação ao recurso “não justificado” ao SU hospitalar. A estruturação dos cuidados de saúde em cada país e a realidade social e cultural local influenciam os resultados obtidos pelos diversos autores, condicionando dificuldade na sua extrapolação. Em Portugal, o sistema de referenciação entre instituições de saúde encontra-se devidamente organizado, nomeadamente através de sistemas integrados que abrangem o médico assistente, centros de referenciação hospitalar e a urgência pediátrica.12 No entanto, a acessibilidade aos serviços de saúde é livre e depende da escolha dos utentes. As suas escolhas por sua vez estão na dependência de uma ampla variedade de factores, desde facilidade de acesso até conhecimentos em gravidade e atuação em situações de doença aguda.

O período de realização do estudo poderá condicionar os resultados, sem que no entanto seja uma variável analisada na literatura publicada sobre este tema. As variáveis que condicionaram a amostragem não foram controladas, podendo também influenciar os resultados. A sua interpretação e extrapolação são condicionadas pelas características inerentes às características do centro hospitalar onde foi realizado o estudo e às características sócio-económicas e culturais do meio onde está inserido. Estes factores não foram avaliados, com exceção do nível de escolaridade parental, posse de seguro de saúde e utilização de cuidados de saúde primários. As características das unidades de saúde primárias que funcionam na dependência do serviço de urgência também não foram estudadas, podendo influenciar a análise dos resultados.

 

CONCLUSÃO

O reconhecimento de situações clínicas que justifiquem o recurso ao SU hospitalar não parece relacionado com habilitações literárias parentais ou atribuição de médico de família. A noção de doença grave em situação de baixa gravidade com recurso precoce e rápido a atendimento de saúde diferenciado denota falta de informação em conceitos de saúde pela população geral. O impacto de práticas de educação para a saúde foi avaliado por outros autores, demonstrando possível redução nas idas não urgentes ao SU hospitalar.13 Esta e outras estratégias deverão ser estudadas de forma optimizar o recurso a meios de saúde diferenciados pela sociedade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Ana Cristina Freitas Serviço de Pediatria
Centro Materno Infantil do Norte
Centro Hospitalar do Porto
Largo Prof. Abel Salazar,
4099-001 Porto
Email: anacrisfrei@gmail.com

Recebido a 03.09.2015 | Aceite a 15.02.2016

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