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Nascer e Crescer

Print version ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.25 no.3 Porto Sept. 2016

 

CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS

 

Um caso pediátrico de tuberculose miliar: achados raros e evolução atípica

 

A pediatric case of miliary tuberculosis: rare findings and atypical course

 

 

Carla Gomes GarcezI; Susana CarvalhoI; Ana AntunesI; Augusta GonçalvesI; Carla MoreiraI; Henedina AntunesI, II

I S. de Pediatria do Hospital de Braga. 4710­243 Braga, Portugal. carla.garcez@live.com.pt; carvalhosusana@hotmail.com; ana.antunes.p@gmail.com; aug.goncalves@gmail.com; carlapaulamoreira@iol.pt; henedinaantunes@gmail.com
II Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS), Escola de Ciências da Saúde, Universidade do Minho e ICVS/3B’s ­ Laboratório Associado, Braga/Guimarães. 4710 Braga, Portugal. henedinaantunes@gmail.com

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Introdução: A tuberculose miliar resulta da disseminação linfohematogénica do Mycobacterium tuberculosis, sendo uma manifestação grave da infeção.

Caso clínico: Criança de 9 anos, género feminino, com his­ tória de febre prolongada. O diagnóstico de tuberculose miliar foi colocado após telerradiografia torácica com infiltrado reticu­ lonodular difuso bilateral, e corroborado pelo achado de tubér­ culos coroideus no olho direito e visualização de bacilos álcool­ ­ácido resistentes em amostra de suco gástrico. Detetaram­se tuberculomas cerebrais na ressonância magnética. Isolou­se Mycobacterium tuberculosis multissensível em amostras de suco gástrico. Após mais de 40 dias de tratamento, persistia a febre e baciloscopia positiva. Foi excluída infeção pelo vírus da imunodeficiência humana. Não foram detetadas complicações. Posteriormente, a evolução clínica foi favorável.

Discussão/Conclusão: A tuberculose mantém­se um diag­ nóstico relevante na criança com febre prolongada. A associa­ ção da imagem torácica, baciloscopias positivas e tubérculos coroideus foram fundamentais para a celeridade do diagnóstico e implementação do tratamento. Reforça­se a importância de manter elevado índice de suspeição para uma patologia que tem tratamento.

Palavras-chave: bacilos álcool­ácido resistentes; febre persistente; tuberculomas cerebrais; tubérculos coroideus


ABSTRACT

Bachground: Miliary tuberculosis results from lympho­ hematogenous dissemination of Mycobacterium tuberculosis and it’s a severe manifestation of the disease.

Case report: A nine­year old girl was admitted to our hospital with persistent fever. Acute miliary tuberculosis was diagnosed after chest radiography revealing diffuse, bilateral, small lung nodules, tubercular choroiditis in the right eye and positive acid­fast bacilli in gastric aspirate. Brain magnetic resonance imaging showed several small nodular lesions consistent with tuberculomas. Mycobacterium tuberculosis was identified in gastric aspirate cultures. Fever and positive acid­fast bacilli in gastric aspirate persisted after more than 40 days of therapy. It was excluded human immunodeficiency virus infection. No complications were reported. Later, clinical outcome was good.

Discussion: Tuberculosis remains a relevant diagnosis in children with prolonged fever. The classic image on chest radiography, tubercular choroiditis and the presence of acid­fast bacilli in gastric aspirate were essential in making a prompt diagnosis and appropriate implementation of therapy. It emphasized the importance of maintaining a high index of suspicion for a condition that is treatable.

Keywords: acid­fastbacilli; cerebral tuberculomas; persistent fever; tubercular choroiditis


 

 

INTRODUÇÃO

A tuberculose miliar (TM) resulta da disseminação linfohe­ matogénica do bacilo Mycobacterium tuberculosis.1,2 É uma manifestação grave da infeção, com incidência até 5%, afetando principalmente crianças mais jovens e imunocomprometidos.1­3 A apresentação clínica é variável e o envolvimento de múltiplos órgãos é comum, com doença pulmonar em mais de 50% dos casos e envolvimento do sistema nervoso central em cerca de 20% dos casos.2,4

Em Portugal tem­se assistido a uma diminuição constante da incidência de tuberculose. Em 2012, foi de 21,6/100000 ha­ bitantes, com 69 casos (2,8%) notificados na faixa etária entre os 0­14 anos.5,6

 

CASO CLÍNICO

Rapariga de nove anos de idade, etnia cigana, com défice cognitivo ligeiro, epilepsia controlada farmacologicamente e an­ tecedentes de meningite meningocócica aos 7 anos de idade. O plano nacional de vacinação estava atualizado, incluindo a vaci­ na BCG (Bacillus Calmette-Guérin) administrada ao nascimento. A história familiar era irrelevante.

Recorreu ao nosso hospital por febre com 19 dias de evolu­ ção, sem outros sintomas associados. Tinha realizado antibiote­ rapia prévia por suspeita de amigdalite aguda. Negava contato com pessoas com doenças infeciosas. Na admissão, apresenta­ va aspeto emagrecido e palidez cutânea, sem outras alterações ao exame físico.

No serviço de urgência realizou telerradiografia de tórax que mostrou infiltrado micronodular difuso bilateral, padrão mi­ liar (Fig. 1), e análises sanguíneas que revelaram: hemoglobina 11,4 g/dL, contagem total de leucócitos 4.800/uL (neutrófilos 60,5%, linfócitos 28,6%), proteína C reativa (PCR) 63 mg/L (nor­ mal <2,90 mg/L) e velocidade de sedimentação (VS) 27 mm/h (normal <15 mm/h). Colocou­se como hipótese de diagnóstico mais provável a tuberculose miliar. Foi avaliada por Oftalmolo­ gia, observando­se tubérculos coróideus no olho direito. A pro­ va de Mantoux revelou induração de 14 mm às 72 horas. Nas amostras de suco gástrico colhidas nos primeiros 3 dias após admissão foi realizado exame direto, visualizando­se bacilos ál­ cool­ácido resistentes (BAAR), teste de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN), positivo para Mycobacterium tuberculosis, e exame cultural, com posterior crescimento de Mycobacterium tuberculosis sensível. Efetuou ecografia abdominal, com ligei­ ra hepatomegalia homogénea, sem outras alterações. Realizou ressonância magnética cerebral que mostrou lesões nodulares parenquimatosas compatíveis com tuberculomas (Fig. 2), e es­ tudo citoquímico e microbiológico do líquido cefalorraquidiano que foram normais.

 

 

 

 

Durante o internamento verificou­se em termos analíticos aumento progressivo da leucocitose e elevação persistente da PCR (Fig. 3). Efetuou tomografia computorizada torácica (30º dia de tratamento) sem evidência de complicação, nomeadamente presença de cavitação, abcesso, derrame pleural ou atelectasia (Figura 4). Completou, ainda, investigação com a realização de cintigrafia óssea e ecocardiograma, que foram normais. As serologias para vírus da imunodeficiência humana (VIH) 1 e 2 foram negativas. Persistiam BAAR em amostra de suco gástrico colhi­ da após 43 dias de tratamento. O teste molecular de resistên­ cias à isoniazida e rifampicina revelou estirpe de Mycobacterium tuberculosis sensível.

Tratando­se de um caso provável de tuberculose miliar, no 2º dia após a admissão iniciou tratamento quádruplo clássico (etambutol, isoniazida, rifampicina e pirazinamida). Manteve fe­ bre durante o internamento, sem novos sinais/sintomas ou alterações no exame objetivo, tendo ficado apirética após 46 dias de tratamento.

Teve alta após dois meses de internamento, com exame ob­ jetivo normal e baciloscopias negativas. O exame oftalmológico realizado na data de alta confirmou resolução das lesões coroi­ deias.

Cumpriu terapêutica quadrúpla durante dois meses e com isoniazida e rifampicina mais 10 meses. A adesão ao tratamento foi confirmada pela visita domiciliária diária de uma enfermei­ ra para observar a toma dos antibacilares. Após três anos de seguimento em consulta hospitalar não se registaram intercor­ rências. Foi realizado rastreio aos conviventes não se tendo de­ tetado o caso índex.

 

DISCUSSÃO

Apresentamos o caso de uma criança com febre prolonga­ da, o que associado ao aspeto miliar clássico na telerradiografia torácica apontou o diagnóstico de TM, apoiado pela observação de BAAR em amostra de suco gástrico e prova de Mantoux po­ sitiva. Dado ser comum o envolvimento de múltiplos órgãos na TM, pesquisamos outros locais de disseminação, objetivando­-­se envolvimento cerebral e oftalmológico. O diagnóstico con­ firmou­se por exame micobacteriológico e TAAN positivos para Mycobacterium tuberculosis.2,4

Na criança, a tuberculose constitui um desafio diagnóstico, dada a variabilidade e inespecificidade das manifestações clí­ nicas e dificuldade de obtenção do diagnóstico definitivo.4,7 As manifestações mais frequentes da tuberculose na idade pediá­ trica são a doença parenquimatosa pulmonar e a adenopatia intratorácica, responsáveis por cerca de 60 a 80% dos casos. De entre as manifestações extrapulmonares, a linfadenopatia é a mais comum (67%), seguida pelo envolvimento do sistema nervoso central (13%) e pleural (6%), miliar/disseminado (5%) e esquelético (4%).3 A TM é uma manifestação grave da infeção, sendo mais frequente em crianças até aos 3 anos e/ou infetadas pelo vírus da imunodeficiência humana, o que não se verificou neste caso. O atraso no diagnóstico e tratamento parece ser causa importante de mortalidade, atingindo 15­20% na idade pediátrica.3,5,8

As manifestações clínicas iniciais da TM são inespecíficas, sendo a febre o sintoma mais comum, seguido pela malnutrição, tosse, perda ponderal, queixas respiratórias e hepatoespleno­ megalia.4 No caso apresentado, o síndrome febril prolongado era o único sintoma, reforçando a necessidade de considerar a tuberculose neste diagnóstico diferencial, dado Portugal ser um país de incidência intermédia da doença.5,6,9 O padrão miliar clássico da telerradiografia torácica foi decisivo para a rapidez do diagnóstico, no entanto pode estar ausente em até 50% dos casos.4

Na TM pode haver envolvimento de qualquer órgão, muitas vezes assintomático. No caso apresentado havia envolvimento pulmonar, oftalmológico e cerebral, sem manifestações clíni­ cas associadas. Cerca de 20­40% das crianças têm meningi­ te tuberculosa,2 ausente neste caso, apesar do envolvimento cerebral por tuberculomas. Estas lesões cerebrais geralmente desaparecem com o tratamento adequado, podendo também cicatrizar com calcificações.10 Dado a ausência de sinais ou sin­ tomas neurológicos, a sensibilidade do agente ao tratamento instituído durante 12 meses e a comprovação de melhoria clí­ nica, analítica e radiológica nos restantes sistemas de órgãos atingidos, não se considerou necessário, até ao momento, repe­ tição da ressonância magnética cerebral. Quando presentes, os tubérculos coroideus são patognomónicos de TM, constituindo uma pista valiosa para o diagnóstico. Assim, todos os doentes com suspeita de TM devem ser submetidos a exame oftalmo­ lógico sistemático. As lesões geralmente involuem com o trata­ mento correto e atempado, embora possa ocorrer diminuição variável da acuidade visual.2,11

A confirmação do diagnóstico é conseguida através da iden­ tificação do agente. Na criança há maior dificuldade de obtenção do diagnóstico definitivo, dado que as lesões são geralmente pau­ cibacilares,3,11­13 e o diagnóstico micobacteriológico é conseguido em apenas 30­40% dos casos.3,11 A colheita de suco gástrico é o método mais utilizado. Apesar de ser uma intervenção descon­ fortável e que exige internamento, apresenta maior custo­efetivi­ dade e é menos invasiva que a broncoscopia.3 A observação de BAAR em amostra de suco gástrico é rara na idade pediátrica,3 e foi decisiva para o início precoce da terapêutica.

As alterações analíticas são inespecíficas.4,12,13 A contagem de leucócitos totais habitualmente é normal, sendo rara a leuco­ penia ou leucocitose. Os reagentes de fase aguda estão eleva­ dos na maioria dos casos.4 Neste caso, objetivou­se leucocitose com neutrofilia e elevação da PCR, associada a persistência de febre durante 45 dias e baciloscopia positiva, mesmo sob tratamento em doses adequadas e com adesão garantida por observação. Esta evolução atípica conduziu à necessidade de exclusão de complicação ou tuberculose multirresistente.

O diagnóstico foi confirmado pelo TAAN e corroborado pelo isolamento em cultura do Mycobacterium tuberculosis, em amostra de suco gástrico. De realçar a importância do exame cultural para testar a sensibilidade do agente aos antibacilares.

Alguns estudos indicam que a vacinação com a vacina BCG é efetiva na redução da incidência da TM, especialmente em crianças.14,15 No caso apresentado, a criança foi vacinada com a vacina BCG ao nascimento. Apesar de a vacina atualmente utili­ zada poder ajudar a reduzir a incidência da TM, devem manter­se esforços no sentido de desenvolver uma vacina mais eficaz. 14,15

A tuberculose é um importante problema de saúde pública e deve ser considerada como diagnóstico diferencial em diversas situações clínicas. No caso apresentado a associação de diver­ sos fatores, alguns bastante raros, foi fundamental para o diag­ nóstico rápido e implementação da terapêutica adequada, com evolução favorável. Reforça­se a importância de manter elevado índice de suspeição para uma patologia que tem tratamento. A evolução clínica atípica revelou­se um desafio e obrigou a dis­ cussão multidisciplinar constante.

 

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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Carla Gomes Garcez
Serviço de Pediatria
Hospital de Braga
4710­243 Braga
Email: carla.garcez@live.com.pt

Recebido a 17­11­2015 | Aceite a 14­03­2016

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