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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754versão On-line ISSN 2183-9417

Nascer e Crescer vol.26 no.3 Porto set. 2017

 

CASE REPORTS | CASOS CLÍNICOS

 

MODY, a história de dois irmãos... porque o raro também acontece!

 

MODY, the story of two siblings… the rare also happens!

 

 

Andreia Filipa MotaI; Susana ParenteI; José Oliveira FreixoI

I Department of Pediatrics, Hospital de São Bernardo, Centro Hospitalar de Setúbal. 2910-446 Setúbal, Portugal. andreiafilipam.mota@gmail.com; susana.os.parente@gmail.com; j.oliveirafreixo@gmail.com

Correspondence to

 

 


RESUMO

Maturity Onset Diabetes of the Young (MODY) é um tipo de diabetes mellitus não insulino-dependente, sem insulinorresistência ou disfunção autoimune das células β pancreáticas. Apre senta história familiar e início antes dos 25 anos. Prevalência estimada de 1-4% dos doentes diabéticos pediátricos.

Apresentase o caso clínico de um rapaz, previamente saudável, cuja clínica de hiperglicemia em jejum fez diagnóstico inicial de diabetes mellitus tipo 1. Após conhecimento do diagnóstico de MODY na irmã da linhagem materna, não convivente, procedeu-se ao estudo genético, tendo-se identificado uma mutação em heterozigotia no gene GCK.

A elevada suspeição clínica, habitualmente suportada pela história familiar sugestiva, é o primeiro passo para o correto diagnóstico. No entanto, a necessidade de exames complementares dispendiosos e morosos e a sua prevalência dificultam o seu diagnóstico, impossibilitando desde o início a otimização da terapêutica e do prognóstico, bem como o aconselhamento genético.

Palavras-chave: MODY; diabetes mellitus; mutação; gene GCK


ABSTRACT

Maturity Onset Diabetes of the Young (MODY) defines   a subtype of non-insulin diabetes mellitus, without insulin resistance or autoimmune pancreatic β-cell dysfunction. Affects 1-4% of paediatric patients with diabetes. Usually there is a family history and it starts before 25 years-old.

We present a clinical case of a previously healthy boy, who was diagnosed with type 1 diabetes mellitus due to fasting hyperglycaemia. After getting to know the MODY diagnosis in a not cohabitant sister from maternal lineage, we performed a genetic study which identified a heterozygote mutation in GCK gene.

The high clinical suspicion, usually supported by suggestive familiar history, is the first step to make the correct diagnosis. However, this uncommon form of diabetes and the need    of expensive and long waiting complementary tests, delay identification, therapeutic and prognostic optimization, as well as genetic counselling.

Keywords: MODY; diabetes mellitus; mutation; GCK gene


 

 

INTRODUÇÃO

A diabetes mellitus (DM) define um conjunto de patologias caraterizadas por hiperglicemia secundária ao defeito de secreção ou ação da insulina1. Atualmente estima-se uma prevalência de 346 milhões de pessoas (6,4%), prevendo-se 440 milhões (7,7%) em 2030.1 A diabetes monogénica tem origem em mutações num único gene que regula a secreção da insulina, estimando-se atual mente uma prevalência de 1-2% do total dos doentes com diabetes e 1-4% das crianças e adolescentes com diabetes.1-5 Maturity onset diabetes of the young (MODY) define um grupo heterogéneo de alterações monogénicas que condicionam disfunção das células β.2,3,6 É o mais frequente entre as diabetes monogénicas, embora seja subdiagnosticado e careça de estudos populacionais para melhor caracterização1,2,6,7. História familiar de diabetes de qualquer tipo, início dos sintomas entre a segunda e a quinta décadas de vida, terapêutica com insulina dispensável ao controlo metabólico, ausência de fenótipo sugestivo de insulinorresistência e de autoimunidade para a célula β suportam o diagnóstico de MODY.2,6,7 O diagnóstico diferencial com a DM tipo 1 e tipo 2 e a identificação do subtipo de MODY impõe-se pelo padrão de hereditariedade, heterogeneidade clínica e especificidade do tratamento.2,6,8 Apresenta-se o caso clínico de um rapaz com diagnóstico inicial de DM tipo 1, cujo conhecimento do diagnóstico de MODY na irmã redirecionou a investigação diagnóstica.

 

CASO CLÍNICO

Rapaz de oito anos, caucasiano, com peso ao nascer 3,150Kg (percentil 15-50*) e comprimento 50,5cm (percentil 50*), previamente saudável, com bom desenvolvimento psicomotor e estaturo-ponderal, leptossómico, índice de massa corporal 16,4 (percentil 50-85*), sem acantose nigricans, lipodistrofia ou estrias cutâneas, normotenso e sem aparentes antecedentes familiares relevantes, nomeadamente de DM, que foi referenciado à consulta de endocrinologia por achado incidental de hiperglicemia em jejum (131mg/ dL). Da investigação inicial a destacar ausência de cetoacidose, hemoglobina glicada (HbA1c) 6,9%, função hepática e renal sem alteração e perfil lipídico adequado. Não foi realizada prova de tolerância à glicose oral (PTGO) por ausência de clínica sugestiva de insulinorresistência. Admitiu-se inicialmente o diagnóstico de DM tipo 1, pelo que iniciou insulina lenta subcutânea (0,1U/Kg/dia). Durante o acompanhamento em consulta bimestral, manteve hiperglicemia moderada em jejum, sempre com bom controlo metabólico (HbA1c 6,7-7,2%) e sem necessidade de aumento da dose total diária de insulina, como expectável na DM tipo1. Neste contexto e por suspeita de erro diagnóstico, cerca de 6 meses após o diagnóstico inicial, solicitaram-se anticorpos anti-insulina e anti-decarboxilase do ácido glutâmico (GAD), que foram negativos e o doseamento do péptido C que foi normal (0,6ng/mL). Pela mesma altura, num outro hospital, foi feito o diagnóstico de MODY tipo 2 na meia-irmã materna, residente numa área geográfica distinta e com a qual não tinha qualquer convivência. Procedeu-se então ao estudo genético no rapaz, o qual identificou a mutação C.1099G A em heterozigotia no gene GCK. Perante o diagnóstico de MODY tipo 2 suspendeu-se a insulinoterapia e iniciou-se terapêutica com metformina, mantendo o bom controlo metabólico (HbA1c 6,4-6,9%).

 

DISCUSSÃO

O MODY foi descrito pela primeira vez em 1974, quando Tattersall identificou três gerações numa família com DM não-insulino dependente, diagnosticado antes dos 25 anos.1,2,6,8-10 No entanto, só após o reconhecimento da sua base molecular, na década de 90, foi possível o diagnóstico genético.2,6,8 Atualmente conhecem-se diferentes subtipos de MODY, e apesar da prevalência e in cidência estarem provavelmente subestimadas, admite-se que na Europa 85% dos casos resultem de mutações nos genes que codificam a enzima glucocinase (GCK) [MODY tipo 2], os fatores de transcrição nucleares hepatocitários 1a (HNF1A) [MODY tipo 3] e os fatores de transcrição nucleares hepatocitários 4a (HN-F4A) [MODY tipo 1].1,2,4-7,11,12 Mais recentemente descreveram-se mutações nos genes do fator promotor de insulina (MODY tipo 4), do fator nuclear hepatocitário 1b (MODY tipo 5) e do fator de diferenciação neurogénica (MODY tipo 6).1,12 Paralelamente, também não se excluem mutações noutros genes ainda por identificar e a ocorrência de mutações de novo.1,5

O MODY é tipicamente assintomático, mas quando sintomático a clínica é heterogénea. Hiperglicemia na ausência de fenótipo sugestivo de insulinorresistência (obesidade central, lipodistrofia, acantose nigricans ou dislipidémia), com início entre a segunda e a quinta décadas de vida, induz frequentemente em erro diagnóstico com DM tipo 1, sendo frequente o início de insulinoterapia.1,2,4,12

Assim, no decorrer da investigação etiológica devemos estar atentos a: hiperglicemia em jejum não progressiva na ausência de insulinoterapia ou com necessidade de baixas doses de insulina (<0,5U/Kg/dia), péptido C doseável, inexistência de episódios de cetoacidose na ausência de insulina exógena, ausência de anticorpos anti-insulina, anti-ilhéus, IA-2 antigen ou anti-GAD especialmente ao diagnóstico, ausência de sinais de insulinorresistência ou de história familiar sugestiva. A constelação destes achados suporta a hipótese diagnóstica de MODY, devendo-se nestes casos proceder ao estudo genético, que apesar de dispendioso e moroso, tem o inegável benefício de estabelecer o diagnóstico definitivo e permitir a otimização terapêutica com melhoria na qualidade de vida.1-8,11,12 Contudo, o diagnóstico no próprio transporta a incerteza prognóstica para a descendência, pois apenas 50% herdarão a patologia, apesar de 95% terem risco de desenvolver qualquer tipo de DM ao longo da vida.2,8 Os diferentes padrões de hereditariedade e as mutações de novo são os responsáveis pela imprevisibilidade do padrão hereditário, apesar do padrão autossómico dominante ser o predominante no MODY.1,3-5,9 Este padrão está presente no caso descrito, pois apesar da inexistência de clínica na mãe, a hipótese plausível atendendo à história familiar é que ambos os filhos herdaram a mutação materna no gene GCK de modo autossómico dominante.

A mutação no gene GCK é a mais frequente em idade pediátrica, e traduz-se na inativação enzimática e consequentemente na secreção de insulina apenas para níveis glicémicos superiores ao normal.2,3,5,7-12 Explica-se assim a hiperglicemia moderada em jejum não progressiva, com pequenas oscilações aquando da sobrecarga com glicose, prova de tolerância à glucose normalmente inferior a 260mg/dL, bem como HbA1c<8%, ausência de sintomas secundários a hiperosmolaridade, baixo índice de complicações microvasculares e menor risco cardiovascular.2-6, 8-12 O caso descrito está de acordo com a principal mutação descrita em idade pediátrica na Europa.

As mutações nos genes HNF1A e HNF4A, frequentes na população diabética, caraterizam-se por euglicémia na infância, que progride gradualmente para hiperglicemia, devido à secreção de insulina progressivamente menor.1,2,11 Nestes o diagnóstico de DM estabelece-se após o aparecimento de sintomas de hiperosmolaridade, normalmente entre a segunda e a quinta décadas de vida.2,4-6,8

Embora ainda careça de investigação, a otimização terapêutica nos diferentes subtipos de MODY pretende minimizar as complicações micro e macrovasculares e o risco cardiovascular a longo prazo.2-5,7-10 Preconizam-se medidas dietéticas e vigilância clínico-analítica no MODY tipo 2, mas na presença de sintomas de hiperosmolaridade ou hiperglicemia significativa, as sulfonilureias em monoterapia parecem demonstrar maior benefício face à metformina.2-4,6,8-10 Os MODY tipo 1 e tipo 3 beneficiam do tratamento com sulfonilureias na dose mínima que permita a otimização do controlo metabólico.2-5,11 A insulinoterapia, embora possa permitir uma estabilização clínica inicial mais célere, demonstrou-se des- necessária ao controlo metabólico a médio/longo-prazo.1,2,4 No caso descrito obteve-se bom controlo metabólico com recurso à metformina, único fármaco hipoglicemiante aprovado em pediatria.

 

CONCLUSÃO

A raridade e heterogeneidade clínica, as múltiplas mutações e genes envolvidos e o baixo índice de suspeição clínica tornam o MODY um desafio diagnóstico e terapêutico, cuja prevalência e incidência estão provavelmente subestimadas, particularmente pelo erro diagnostico com DM tipo 1 ou tipo 2.1-3,6,8,9,11 No entanto, o estabelecimento do diagnóstico correto impõe-se pela especificidade terapêutica e valor prognóstico para o próprio e família.1,2,6-9 Assim, pretende-se com este caso clínico alertar para a importância do diagnóstico de MODY, rentabilizando os custos em saúde, melhorando a qualidade de vida, otimizando o prognóstico e possibilitando o aconselhamento genético.

 

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CORRESPONDENCE TO
Andreia Filipa Mota
Department of Pediatrics
Hospital de São Bernardo
Centro Hospitalar de Setúbal
Rua Camilo Castelo Branco n.º 175, 2910-446 Setúbal
Email: andreiafilipam.mota@gmail.com

Received for publication: 27.06.2016 Accepted in revised form: 06.12.2016

 

 

NOTAS

*Tabelas de percentis da Organização Mundial de Saúde, 2007.

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