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Nascer e Crescer

Print version ISSN 0872-0754On-line version ISSN 2183-9417

Nascer e Crescer vol.32 no.3 Porto Sept. 2023  Epub Sep 30, 2023

https://doi.org/10.25753/birthgrowthmj.v32.i3.33497 

Articles

Transformar para reforçar a confiança no SNS

1. Full Professor at the Faculty of Economics of the University of Coimbra; Head of the Center for Health Studies and Research of the University of Coimbra. 3004-512 Coimbra, Portugal. pedrof@fe.uc.pt


O SNS é um património moral irrenunciável da nossa democracia porque é indispensável à cidadania, à dignidade individual e à justiça coletiva.

António Arnaut

Nas últimas décadas, muito mudou nos sistemas de saúde dos vários países e surgiram vários desafios e problemas. De entre estes, podemos destacar o envelhecimento demográfico, a gestão dos recursos disponíveis, o surgimento da sociedade do conhecimento, a explosão das ferramentas e plataformas digitais, o avanço da tecnologia médica, as perspetivas, expectativas e ambições das novas gerações de profissionais e a maior consciência e vontade dos cidadãos em gerir a própria saúde e em participar nas decisões que a eles dizem respeito. Tudo se tornou extremamente mais complexo nestas últimas décadas e se intensificou aquando da Covid, com um controlo financeiro cada vez maior e mais centralizado.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é uma das maiores conquistas após o 25 de abril de 1974 e um dos principais fatores de coesão da sociedade do Portugal democrático. Para garantir a sua sustentabilidade para os próximos tempos, o nosso SNS tem, no entanto, necessariamente de passar por transformações de natureza estratégica.

Em geral, a existência de um SNS tem aspetos positivos. O primeiro deles é o acesso universal, garantindo a todos os cidadãos, independentemente da sua situação financeira, um acesso a cuidados de saúde essenciais e eliminando barreiras financeiras. Ninguém é deixado de fora do sistema de saúde devido à falta de recursos. Relacionado com o anterior, um SNS promove a equidade na prestação de cuidados de saúde, fazendo com que as pessoas recebam tratamento com base nas suas necessidades clínicas, e não na sua capacidade para pagar, reduzindo assim as desigualdades de saúde entre grupos socioeconómicos. Outro aspeto positivo tem a ver com a acessibilidade e com o facto de os custos dos cuidados de saúde serem cobertos essencialmente por impostos, fazendo com que os cuidados sejam mais acessíveis para indivíduos e famílias, e permitindo-lhe que não se preocupem com despesas médicas catastróficas. Um quarto ponto está relacionado com a missão do SNS de promover a saúde e prevenir a doença, essencial para a segurança e bem-estar da população. Por fim, num SNS existe supervisão pública sendo prestadas contas ao governo e aos cidadãos, podendo estes ter uma palavra a dizer.

Por outro lado, qualquer SNS está também associado a alguns problemas, que podem variar de acordo com a forma como é implementado e gerido em cada país. O primeiro são as listas de espera devido ao grande número de pessoas que procuram os serviços de saúde, de que podem resultar atrasos no tratamento e frustração para os doentes. A escolha limitada pode também ser percebida como uma desvantagem por aqueles que desejam mais opções de cuidados de saúde. Além disto, como o financiamento de um SNS tem origem no dinheiro dos contribuintes, está associado a orçamentos limitados e a pressões financeiras para conter custos, podendo necessariamente levar à falta de recursos, à redução de profissionais e a limitações na cobertura de serviços médicos. Um outro aspeto que normalmente coexiste em qualquer SNS são as interferências políticas e as burocracias, o que pode afetar as tomadas de decisão e a alocação de recursos de forma não totalmente baseada em critérios clínicos, assim como a estabilidade e a eficiência dos serviços. A acrescentar, os sistemas privados podem ter mais recursos para investir em tecnologias médicas mais recentes, podendo levar a possíveis melhorias no tratamento e nos serviços. Finalmente, os SNS podem enfrentar uma escassez de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, fazendo com que aumente ainda mais as listas de espera e a pressão sobre o sistema.

Face a estes problemas, e para garantir a sustentabilidade para os próximos tempos, o SNS português tem necessariamente de passar por transformações de natureza estratégica. É um facto que necessita de mais recursos para o seu desenvolvimento. Mas isso, só por si, não é suficiente. É preciso fazer as transformações necessárias para responder aos desafios da atualidade, pois são necessárias visão e ação estratégicas e um novo modelo de governança do sistema de saúde e do SNS.

Neste contexto, a Fundação para a Saúde SNS identificou dez teses para a transformação do SNS num mundo em mudança. Entre outros aspetos, estas transformações incluem os percursos de vida, o envelhecimento, as relações intergeracionais e a saúde mental. Além disto é realçada a importância da saúde pública, em especial de uma saúde pública local. Estas transformações devem ter como alvo a centralidade nas pessoas, os denominados cuidados personalizados, assegurando que toda a prescrição e intervenção em saúde têm em conta a forma como interferem com a vida e a segurança das pessoas. Isto inclui também o desenvolvimento de novos sistemas de informação digitalizados e centrados nas pessoas.

Há que apostar em mudanças adaptativas de proximidade, nas lideranças locais e na integração de cuidados, pois é necessária uma gestão descentralizada de proximidade, com adequada autonomia, de forma adaptativa e de acordo com as circunstâncias locais, através de lideranças empreendedoras, que assumam responsavelmente a autonomia de decisão face ao enquadramento proposto para a gestão da mudança. Deste modo, há que voltar a apostar no conceito de centro de saúde, uma unidade de proximidade dos cidadãos. E há que reativar o conceito de sistemas locais de saúde, agregando os vários interessas locais, sejam eles públicos, privados ou socias, juntamente com outros setores como o da educação.

O novo SNS tem também de se preocupar com a criação nos profissionais de uma confiança no futuro e na capacidade deste lhes proporcionar carreiras profissionais aliciantes e motivadoras. Isto inclui retribuições, condições de trabalho, diversidade de regimes e horários de trabalho, para além de processos eficazes para detetar situações de insatisfação e sofrimento profissional e de responder, a tempo, para as corrigir.

A inovação tecnológica tem de estar presente, englobando a aposta na inclusão digital das pessoas, num rigoroso respeito e defesa dos direitos e princípios digitais, e no estabelecimento de uma estratégia clara de incorporação tecnológica para o SNS. Por outro lado, é necessário ir além das lógicas orçamentais apenas centradas na criação de riqueza bruta, independentemente da sua qualidade e das desigualdades subjacentes. É preciso começar a financiar metas de bem-estar para a nossa população, com objetivos concretos a curto e a médio prazo, exigindo-se ara isso uma outra abordagem na preparação do Orçamento do Estado. O SNS deve passar a ser encarado não simplesmente como uma despesa, mas, sobretudo, como um importante investimento plurianual para se garantir o desenvolvimento económico e bem-estar das populações.

Por fim, há que superar os modelos de governação tradicionais, com respostas desarticuladas, fragmentadas e setoriais. Os diversos níveis de cuidados ainda se mantêm hoje organizados em “silos” entre os quais navegam perdidos os utentes.

Pessoalmente, tenho muitas esperanças na orientação que a nova Direção Executiva do SNS tem em mente, a médio e a longo prazo. No entanto, o maior problema é, atualmente, o curto prazo e a resolução dos problemas que muito estão a afetar as pessoas que recorrem aos serviços de saúde.

Em conclusão a esta reflexão pessoal da situação que vivemos hoje em dia com o SNS, é possível e urgente contribuir para que o nosso SNS se proteja do futuro. Para bem da saúde e bem-estar de toda a população, da economia do país, da coesão social e da própria democracia.

O futuro está em risco. Temos de unir esforços e todos são necessários. Não é tempo para guerrilhas motivadas por interesses pequenos. Considerando a realidade portuguesa, defendo que não temos alternativa a um SNS forte, que responda às necessidades das pessoas que a ele ocorrem e no qual têm confiança.

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