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Portugaliae Electrochimica Acta

versão impressa ISSN 0872-1904

Port. Electrochim. Acta vol.33 no.6 Coimbra nov. 2015

https://doi.org/10.4152/pea.201506317 

Um Quimico sui generis

João Evangelista Simãoa,*

Departamento de Quimica, Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal.

 

Abstract

Communication by Prof. Dr. João Evangelista Simão when receiving the SPE Award for his outstanding scientific career and for his contribution to the Portuguese Electrochemical Society at the XIX Meeting of the Portuguese Electrochemical Society and XVI Iberic Meeting of Electrochemistry.

 

Sumário

Intervenção do Senhor Professor Doutor João Evangelista Simão ao receber o Prémio da SPE pela sua notável carreira científica e pela sua contribuição para a Sociedade Portuguesa de Electroquímica, por ocasião do XIX Encontro da Sociedade Portuguesa de Eletroquímica e XVI Encontro Ibérico de Eletroquímica.

 

Foi no ano lectivo de 1963/64 que iniciei os trabalhos de Doutoramento no Departamento de Química Física da Universidade de Bonn, cidade que então era a capital da Alemanha Ocidental. Foi meu supervisor o Prof. Mark von Stackelberg, grande especialista em Polarografia. Um dia, numa das muitas reuniões de apreciação dos resultados que eu ia obtendo, aquele professor aconselhou-me a leitura de um livro que ele achava muito interessante e significativo: ''Der Untergang des Abendlandes'' (O Declínio do Ocidente).

Nessa altura estava a Europa toda ela activamente empenhada em recuperar dos efeitos da II Guerra Mundial. Americanos e europeus davam as mãos num ingente esforço para reerguer as economias da Alemanha e dos outros países que tinham sofrido os efeitos devastadores dessa horrível contenda. Era a afirmação de um Ocidente que se considerava ser o centro do mundo. No entanto, já se preanunciava o princípio do fim desse estatuto. Viria depois a União Europeia e, a seguir, a sociedade mundializada na qual hoje estamos inseridos. Mas já naquela altura o meu supervisor tinha a percepção de que a importância da Europa no espaço global estaria em declínio…

*

A personagem, que a Sociedade Portuguesa de Electroquímica resolveu homenagear nesta sessão, é uma figura que tem algo de singular. Imaginem um garoto de aldeia, filho de gente humilde, que acaba de concluir a Quarta Classe do Ensino Primário Elementar e gostaria de continuar a estudar. Ele era o terceiro de cinco irmãos, mas nenhum deles iria prosseguir os estudos porque a família não reunia as condições económicas indispensáveis para tanto. Estava-se em 1940, com a depauperada economia portuguesa ainda a recuperar daquele enorme descalabro financeiro da Primeira República, que dera origem à revolução de 28 de Maio de 1926. Era, mutatis mutandis, uma situação formalmente parecida com a que hoje estamos a viver.

Ainda se não tinham esbatido em Portugal os efeitos da guerra de Espanha e já começava a II Grande Guerra, esse horrível conflito que haveria de provocar um saldo negro de 50 milhões de vítimas. Quando, em 1940, acabei a 4a Classe, já em plena Grande Guerra, as drásticas limitações económicas dela decorrentes tornavam economicamente incomportável continuarmos os estudos, pois isso só seria possível indo para um colégio na sede do concelho. Mas, como eu dizia que queria ir para o Seminário, o conselho de família anuiu e lá fui. Onze anos depois eu era padre. Estava-se então no início dos anos 50 e era já bastante evidente o forte dinamismo do progresso científico, que, vindo desde os finais do século XIX, se expandia a passos largos, exercendo uma influência decisiva sobre a modernização desta nossa sociedade francamente a caminho de se tornar uma aldeia global. Novos recursos económicos, mais cultura científica. A Igreja não podia deixar de reagir aos ''desafios'' que a cultura científica lhe colocava. Daí a decisão de preparar, para os seus seminários, professores que fossem licenciados nos domínios científicos em desenvolvimento. Os Seminários diocesanos fizeram-no e as Ordens Religiosas também. O que se pretendia era que os padres estivessem ao corrente do que ia acontecendo nestas áreas científicas, se familiarizassem com o mundo das Ciências, para estarem em condições de poderem compaginar a linguagem científica com a linguagem teológica/bíblica. Isto porque Ciências e Religião, sendo campos diferentes, não são exclusivos nem incompatíveis.

A propósito disto devo dizer que, até hoje, nunca encontrei aí qualquer dificuldade ou contradição. Cada uma em seu campo, Ciência e Religião estão ambas ao serviço das pessoas, das comunidades, em suma, da humanidade. Foi assim neste contexto que, por ordem do meu Bispo, eu me matriculei na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, na Licenciatura em Ciências Fisico-Químicas.

Para poder fazer essa matrícula foram-me exigidos os exames do V e do VII anos do Liceu. O que fiz no Liceu Normal D. João III, em Coimbra.

Concluída a Licenciatura, iniciei a minha carreira académica no Departamento de Química da Universidade de Coimbra, como Segundo Assistente. Seguiu-se o Doutoramento no Departamento de Química-Física da Universidade de Bonn, Alemanha, o doutoramento na Universidade de Coimbra, a contratação como Professor Auxiliar, como Professor Extraordinário e, finalmente, como Professor Catedrático.

Em termos de Universidades em que exerci a minha actividade, registo, por ordem cronológica: Coimbra, Bonn, Lourenço Marques, Coimbra, Minho e, finalmente, Aveiro.

E no que concerne ao domínio científico de investigação, saliento: Electroquímica, Polarografia, Voltametria, Cinética de reacções de interface. A minha actividade como padre cessou oficialmente em 1972, quando eu pedi e me foi concedida autorização para casar. No entanto, a minha fé não mudou, antes foi sendo actualizada e reforçada a sua expressão face ao constante desenvolvimento da investigação e dos conhecimentos científicos. Efectivamente, segundo a minha perspectiva, a fé é chamada a iluminar o porquê e o sentido da minha existência: eu não pedi para vir, mas estou cá. Porquê? Sobretudo, com que objectivo?

Do ponto de vista biológico, a gente sabe: nasce, cresce, luta pela sobrevivência, procria e morre. Não faz isso sozinho, mas em sociedade. Aliás, nós já nascemos como membros de uma comunidade, da qual somos parte integrante. Para podermos sobreviver e progredir em sociedade, precisamos todos uns dos outros. E para isso cada um deve contribuir com o seu quantum pessoal de saber, de trabalho, de progresso científico, de solidariedade. Naturalmente todos nós, cada um por sua vez, vamos um dia parar no tempo e, em consequência disso, iremos ficar desactualizados. Será que vamos deixar de entender o mundo, como pensam os jovens já a respeito dos seus pais?

Aqui eu gostava de reflectir um pouco. Se a sociedade humana, como comunidade viva que é, está em constante devir, isso acontece como consequência do somatório de todas as pequenas modificações - contributos pessoais, positivos e negativos -que cada indivíduo, onde quer que exerça a sua actividade, introduz na comunidade humana, com os seus novos conhecimentos, os seus erros, os seus progressos e os seus retrocessos. Espectaculares, uns, dramáticos, outros, normais, a maior parte. Avanços e recuos, que, no seu conjunto, acabam por apresentar um saldo universal positivo. A cada um de nós se pede trabalho, engenho e arte. Só um cataclismo mundial, eventualmente possível como consequência de agressões sistemáticas ou de algum acidente cósmico, poderá fazer recuar a humanidade, eventualmente destruindo-a. Voltar-se-ia então ao início de um novo sistema.

Quando uma sociedade perde os valores da solidariedade, da justiça, da entreajuda, ou da mútua compreensão, ela definha e morre. Da história da humanidade conhecemos exemplos de civilizações florescentes que desapareceram. Mas a história também nos diz que atrás de cada civilização que definha, outra surge e se afirma, evidenciando já especificidades e características diferentes. Eventualmente num plano mais elevado, pois ela assenta sobre as conquistas da anterior.

*

Num ambiente, como este em que nos encontramos aqui, será muito pertinente colocar a seguinte questão: o que é que a Electroquímica, ou a Sociedade Portuguesa de Electroquímica têm a ver com isto?

A resposta só pode ser: têm algo, senão mesmo tudo, a ver, pois nenhum ramo científico se pode desvincular do destino da humanidade e, em última análise, do destino deste mundo onde nos é dado viver e do que nele circula.

Efectivamente, porque a Humanidade é constituída por seres sociáveis e interdependentes, em que é permanente o contacto dos indivíduos entre si, está criada uma situação favorável à transmissão dos conhecimentos e dos valores de umas gerações para as outras. Apesar dos muitos egoísmos e de eventuais episódios de ''salve-se quem puder'', há memórias e conhecimentos que se transmitem de geração em geração, de forma que cada nova geração já vai partir de um nível mais elevado do que era o dos seus pais.

*

Quando, aos setenta anos, me jubilei e, consequentemente, deixei de constar dos contactos com a Universidade, senti que se me tinha fechado um ciclo na minha vida.

Então, acabado este ciclo universitário, voltou o primeiro, mas doutra maneira, ou seja, agora já não como clérigo. No entanto, o meu interesse pelas questões de fé e de religião, esse persiste. E é agora num Movimento Cristão de Leigos que eu vivo a minha fé. Esta diz-me que nada do que nos acontece nesta vida ocorre por acaso, mas que tudo faz parte integrante do nosso trajecto por este mundo, percurso este que teve um princípio, em que eu não fui responsável, e tem um objectivo, que eu sou chamado a concretizar como membro desta nossa comunidade humana: o exercício da entreajuda e da solidariedade para com todos os meus concidadãos. Na Universidade e fora dela.

*

Tenho saudades dos meus tempos de estudante em Coimbra. Conservo ainda na minha memória as figuras de professores notáveis daquele mundo das ciências exactas com quem contactei como aluno. Recordo personalidades eminentes como Manuel Marques Esparteiro, Diogo Pacheco de Amorim, nas Matemáticas, João Manuel Cotêlo Neiva, na Mineralogia, Almeida Santos e Vaz de Sampaio, na Física, Couceiro da Costa, Andrade de Gouveia, Pinto Coelho e Simões Redinha, na Química. O ambiente estudantil era bom e senti que me influenciou positivamente.

Durante o tempo de Assistente na Universidade de Coimbra, fui o delegado para Coimbra da Sociedade Portuguesa de Física e Química. Depois, na Universidade de Lourenço Marques, fui o editor da ''Revista de Física, Química e Engenharia'', da Universidade daquela cidade. Regressado ao continente (como então se dizia), procurei estabelecer um contacto mais próximo com os grupos que já trabalhavam nesta área da Electroquímica, nas universidades de Lisboa, Porto e Coimbra e nas universidades novas. Rapidamente os electroquímicos portugueses, afirmando-se já como grupos científicos específicos, promoviam com regularidade a realização de encontros para apresentação e discussão dos respectivos trabalhos. E foi em 1982, durante a III Reunião Nacional de Electroquímica, convocada para a Academia das Ciências de Lisboa, que se decidiu submeter à aprovação pela assembleia uma proposta de criação da Sociedade Portuguesa de Electroquímica e da Revista Portugaliae Electrochimica Acta. A proposta foi apresentada pelo Prof. Armando Pombeiro e colheu o apoio de todos os presentes.

O primeiro número da PEA saiu a lume em 1983 como publicação da Academia das Ciências de Lisboa, tendo como editor provisório o Prof. A. Pombeiro.

Mas foi em 1983, no decurso da IV Reunião Nacional de Electroquímica, realizada em Braga, que a fundação da Sociedade Portuguesa de Electroquímica foi ratificada pelos participantes. Fiquei encarregado de fazer as necessárias diligências para a oficialização da PEA e para a editar. Quando, para esse efeito, me dirigi à repartição oficial competente para o registo, o primeiro documento que me pediram foi uma cópia do meu Registo Criminal. Depois foi preciso assegurar tipografia e dinheiro. Felizmente tinha havido em Braga um Encontro de Electroquímica que permitiu obter dinheiro para a editar e expedir. Mas não foi fácil levar a bom porto uma iniciativa desta natureza. Felizmente ela teve bom acolhimento, mesmo além fronteiras. No entanto, manda a justiça dizer que não é só, nem sequer principalmente, a mim que se deve o bom trajecto da PEA, mas também aos que nela pegaram a seguir, aos colaboradores, aos amigos, aos sócios da SPE. Fico sempre muito feliz quando me falam do apreço que a PEA vai registando. Estão assim de parabéns os electroquímicos portugueses.

*

Nesta minha idade de fim de ciclo pessoal, é inevitável abordar a questão do sentido da vida. Esta nossa vida eu entendo-a como um projecto, um empreendimento que teve um princípio e vai ter um fim cá neste mundo. é como uma estrela cadente que, por instantes, sulca o horizonte e desaparece. Viemos ao mundo sem o termos pedido e dele sairemos do mesmo modo, e também sozinhos. Mas é importante termos a consciência de que, ao chegarmos cá, apanhámos um comboio já em andamento. Fomos ajudados a crescer e a viver em comunidade, estudámos, aprendemos, investigámos e ensinámos. Novos conhecimentos e novas capacidades foram adquiridos e partilhados, a comunidade ficou mais rica, houve progresso. Não foi em vão o nosso contributo.

*

Entretanto os anos foram correndo e esta minha ''máquina'' começou a acusar o desgaste do tempo e do esforço. Lembro-me bem de que, naquele último ano em que dei aulas e me aposentei, percebi que a minha memória já não respondia tão lesto quanto costumava fazer. Sinal de que, de facto, era a altura de deixar…

Por outro lado, problemas de doença de minha esposa exigiam a minha presença junto dela. Daí também o facto de eu ter deixado de aparecer. Dependendo das condições psicológicas de cada indivíduo, é num cenário assim criado que ele volta a encontrar-se outra vez só. Como quando nasceu. Ao atingirmos a idade em que me encontro, constatamos que, por um lado, escasseiam as forças para lutar e, por outro, esquecemos rapidamente aquilo que nos dizem e o que nos vai acontecendo. Mas, em contrapartida, avivam-se na nossa memória os tempos da nossa infância. E é interessante notar que, do mesmo passo que esquecemos o que nos disseram há pouco, temos agora bem presentes na memória muitos episódios da nossa infância há longo tempo esquecidos, coisas que nos aconteceram e o que a esse propósito então nos disseram. E, porque os temos bem presentes, nós, os velhos, contamo-lo aos mais novos sempre que isso venha a propósito de qualquer dito ou circunstância. é um fenómeno interessante que nos vem chamar a atenção para a unidade que somos desde o princípio até ao fim. O nosso trajecto de vida conclui-se com o retorno à criança que fomos. Para que nada fique para trás.

Aliás, esta última fase da vida de cada um tem também um objectivo socialmente muito importante para a comunidade, que é o de dar a conhecer aos que nos sucedem as tradições e os valores que nós próprios recebemos daqueles que nos precederam. Valores e tradições esses que também são transmitidos por via oral. Ora vão ser os avós quem vai garantir essa transmissão aos netos. Como eles agora têm bem presente o que os avós deles lhes contavam sempre que isso vinha a propósito de qualquer circunstância, também eles o fazem agora com os netos. E contam-no inúmeras vezes porque, uma vez contado, logo se esquecem de que o fizeram. é que, à medida que a memória recente vai enfraquecendo, mais se aviva a memória remota. Trata-se, ao fim e ao cabo, de preservar uma riqueza cultural inestimável que, também por esta via, vai sendo transmitida de geração em geração. Ora é também assim que se vai consolidando a identidade de um povo.

*

Como é que um electroquímico chega a esta filosofia? Do mesmo modo que qualquer cientista faz as suas experiências, comunica o que observou e se alegra quando foi capaz de apresentar algo de novo, ainda que fique sem saber qual o impacto que isso possa vir a ter. Mas terá, pelo menos, a esperança de que essa sua nova experiência possa chamar a atenção de outros para algum novo aspecto eventualmente útil para quem investiga - até, quando mais não seja, para dizer: ''por aí, não''.

Finalmente, gostaria de exprimir que é com muita naturalidade que aceito a decrepitude como uma situação associada à última etapa da minha vida. Também na natureza há uma Primavera que desponta em flores e rebentos novos, seguida de um Verão de crescimento de frutos, vindo depois um Outono de colheita desses frutos, e, finalmente, um Inverno de descanso e de preparação dum novo ciclo. Ciclo esse que, sendo formalmente semelhante ao anterior, será todavia sempre diferente. Como tudo na vida.

*

Uma vez chegados aqui, gostaria de salientar que estou muito grato à SPE por se ter lembrado de mim nesta fase derradeira da minha vida, fazendo-me sentir, com este seu gesto, que terá valido a pena ter sido electroquímico. Para todos vós, um caloroso Bem Hajam! E, já que é um padre que vos fala: ''Que Deus vos abençõe'' !

João Simão

 

*Corresponding author. E-mail address: jsimao@netvisao.pt

Received 28 October 2014

www.peacta.org