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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.27  Porto Jan. 2014

 

ARTIGOS

Trabalho e processos de marginalização social no século XXI: aproximações teóricas e dados estatísticos

Labor and social marginalization processes in XXI century: theoretical approaches and statistic data

Travail et processus de marginalisation social dans le siècle XXI : approches théoriques et données statistiques

Trabajo y procesos de marginación social en el siglo XXI: acercamientos teóricos y resumen estadístico

Agostinho Rodrigues Silvestre1 Luís Fernandes2

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e Universidade Portucalense
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto


 

RESUMO

O tema nuclear do presente artigo é o das relações entre trabalho, pobreza e marginalização social nas sociedades ocidentais contemporâneas. Organiza-se em duas partes: na primeira discutem-se as mutações que o trabalho tem conhecido, sobretudo nas últimas quatro décadas, tanto ao nível da sua centralidade social e cultural, como do seu valor simbólico e poder estruturante dos percursos biográficos; na segunda, a sua relação com a pobreza e a marginalização social. Ainda que se insista na manutenção do papel tradicional do trabalho, os dados de variadas investigações mostram que as transformações em curso constituem, em si mesmas, mecanismos de aprofundamento das desigualdades e de clivagens sociais.

Palavras-chave: mutações do trabalho; pobreza; marginalidade social avançada.


ABSTRACT

This article’s main theme is the relation between labor, poverty and social marginalization in western contemporary societies. It is organized in two parts: the first discusses the mutations that labor has suffered, especially on the last four decades, both in terms of its social and cultural centrality, as its symbolic value and structuring power of biographic paths; the second part, its relation to poverty and social marginalization. Even if one insists on maintaining the traditional role of work, the data from various investigations show that these changes consist on deepening inequalities and social cleavages.

Keywords: mutations in labor; poverty; advanced social marginality.


RESUMÉ

Le sujet nucléaire du présent article est des relations entre travail, pauvreté et marginalisation social dans les sociétés occidentales contemporains. Il s’organise en deux parties: dans première se discutent les mutations que le travail ont connu, surtout dans les dernières quatre décennies, tant au niveau de sa centralité sociale et culturelle, que de sa valeur symbolique et pouvoir estruturante des parcours biographiques; dans seconde, sa relation avec la pauvreté et marginalisation social. Malgré il s’insiste dans la manutention du rôle traditionnel du travail, les données de variées recherches montrent que les transformations en cours constituent, dans lui même, mécanismes d’approfondissement des inégalités et de clivages sociaux.

Mots-clés: mutations du travail; pauvreté; marginalité sociale avancée.


RESUMEN

El tema nuclear de este artículo son las relaciones entre el trabajo, la pobreza y la marginación social en las sociedades occidentales contemporáneas. Está organizado en dos partes: en la primera se analizan los cambios que el trabajo se conoce, sobre todo en las últimas cuatro décadas, tanto a nivel de su centralidad social y cultural, como su valor simbólico y el poder estructurante de las biografías; en el segundo, su relación con la pobreza y la marginación social. Incluso si uno insiste en mantener el papel tradicional del trabajo, los datos de varias investigaciones muestran que las transformaciones en curso constituyen, en sí mismos, mecanismos de profundización de las desigualdades y de divisiones sociales.

Palabras-clave: mutaciones del trabajo; pobreza; marginalidad social avanzada.


 

Introdução

As relações entre trabalho, pobreza e marginalidade social são uma questão antiga. Uma breve revisão à literatura da especialidade (Castel, 1998; Bauman, 2005) permite verificar, por exemplo, que a pobreza constituiu um dos principais argumentos para vencer as muitas resistências à implementação e à consolidação do trabalho assalariado e da sua ética nas sociedades modernas ocidentais. Entre outras promessas, dele se disse que seria capaz de criar a riqueza das nações e livrar os indivíduos e os grupos da pobreza. Pelo menos desde essa altura foi tido como o melhor meio de evitar todos os males sociais, não apenas a privação económica, mas também a criminalidade, a toxicodependência e outros, até porque tem sido concebido como uma estratégia de normalização e como uma ética da disciplina. Contudo, decorridos mais de dois séculos em que adquiriu o estatuto político-normativo de principal integrador, de fator estruturante e princípio organizador da vida individual e coletiva, o trabalho parece estar hoje sob o signo da incerteza e da desordem e constituir, talvez mais do que nunca, um poderoso mecanismo gerador de desigualdades e de marginalização social.
Neste texto analisaremos muito sumariamente os argumentos de natureza teórica, ilustrados com alguns dados estatísticos, que anunciam a crise e até a perda de centralidade sociocultural do trabalho e denunciam a sua importância nos processos de marginalização social para um número crescente de pessoas, o que leva a associá-lo frequentemente à emergência de uma “nova pobreza”. Para isso, iniciaremos com uma breve passagem pela sua história recente nas sociedades de capitalismo avançado e as metamorfoses que registou, sobretudo nos últimos quarenta anos, e as suas manifestações objetivas e também os seus possíveis impactos subjetivos, ou seja a importância e o significado que assume no trajeto existencial dos sujeitos. Procuraremos depois discutir as implicações que as mudanças registadas no mercado de trabalho podem ter para a compreensão da questão da pobreza e da marginalidade social nas sociedades ocidentais contemporâneas.

1. O trabalho e as suas mutações nas sociedades de capitalismo avançado. Um mercado de trabalho crescentemente desigual e seletivo?

Com a revolução industrial, o trabalho foi progressiva e reiteradamente proclamado como a essência do homem e como o modelo do laço social. Para além de muitas outras virtudes e benefícios para a humanidade que lhe foram atribuídos, foi considerado, pelos discursos económico, político e também científico, como o grande integrador. Foi, de resto, representado como um esforço coletivo que exigia, por isso, a colaboração de todos (Bauman, 2007), passando assim a ser concebido como obra de cada um e de todos nós, que há de conduzir o Homem à abundância e à expressão plena das suas capacidades. Mesmo que seja possível admitir que esta forma de conceber o trabalho não tenha sido sempre consensual, é sobretudo com o fim do período (1945-1975), frequentemente designado por “trinta gloriosos”, ou seja, com o fim do (quase) pleno emprego e o crescimento do desemprego, que é consistentemente desconstruída e colocada em questão. Vários autores (Gorz, 1991; Offe, 1992; Meda, 1999; Beck, 2000; Bauman, 2005) falam em desencantamento e anunciam o fim das sociedades de pleno emprego, ou mesmo “o fim, historicamente previsível, da sociedade de trabalho” (Habermas, 2000: 84).
Na base dessas conceções sobre o trabalho e do seu lugar nas sociedades contemporâneas ocidentais é possível identificar uma linha de força com, pelo menos, três implicações maiores. A constatação é que o desenvolvimento tecnológico e, particularmente, a designada terceira revolução industrial ou microeletrónica reduziu, em muito, a necessidade de trabalho humano na produção de riqueza. Sendo possível admitir que as transformações que estão a ocorrer nos mercados laborais são o resultado da influência direta ou indireta de vários fatores “são precisamente aqueles associados ao fenómeno da tecnologização dos processos produtivos, da informação e da comunicação e da globalização das economias que assumem um papel dominante” (Hespanha e Valadas, 2002: 124). A consequência mais evidente é que não há trabalho para todos (Gorz, 1991; Offe, 1992; Beck, 2000), pelo menos na forma atual como os seus tempos se encontram socialmente repartidos. Muito menos para as pessoas que se encontram em situações de vulnerabilização social cumulativa e extrema, como parece ser o caso, por exemplo, da quase totalidade dos beneficiários do R.S.I. (Rodrigues, 2010). Uma outra implicação associada à anterior, e que é fortemente reforçada pelas opções político-económicas relacionadas com o processo de globalização neoliberal, é a dualização do mercado laboral ou a sua diferenciação interna. A terceira consequência é a desagregação da ética tradicional do trabalho e a emergência de novos e diversos significados que lhe serão atribuídos pelos sujeitos no desenrolar das suas vidas. Analisemos um pouco mais detalhadamente cada uma destas dimensões que configuram o mercado atual de trabalho nas sociedades capitalistas ocidentais e, particularmente, nos países da União Europeia.

1.1. Rarefação do trabalho

Depois de um longo período de mobilização geral para o trabalho, em que foram especialmente visados “os pobres e os voluntariamente ociosos” (Bauman, 2005: 24), com redobrada incidência no final do século XIX e depois continuada com especial impacto sociocultural nos anos que se seguiram à II Grande Guerra, ao que hoje assistimos é à sua rarefação. Estaremos em vias de ver concretizada a profecia de “uma sociedade de trabalhadores sem trabalho”? (Arendt, 1995: 13). Seja por razões tecnológicas, micro ou macroeconómicas, políticas ou socioculturais ou talvez em resultado da sua conjugação, as sociedades ocidentais contemporâneas parecem dispensar cada vez mais o trabalho humano para a produção de bens e serviços, ou como diz Gorz, “dado que o trabalho é cada vez mais produtivo, o resultado é uma imensa infra utilização da oferta de mão-de-obra” (Gorz, 1991: 13). Desde os anos noventa do último século, estaremos até a assistir ao “crescimento sem emprego” (Alonso, 2004: 36). Nestas condições, o trajeto laboral de um número crescente de pessoas é marcado pela inserção provisória no mercado laboral, alternado pela inscrição mais ou menos prolongada nos serviços públicos de emprego.
Mesmo que os critérios estatísticos utilizados para medir o fenómeno do desemprego sejam objeto de algumas controvérsias, designadamente por não levarem em conta os que já desistiram de procurar emprego, os “desencorajados” (Gautié, 1998), é isso que sugerem vários estudos e indicadores estatísticos sobre o desemprego e a precariedade do emprego. Sirva-nos de elemento de análise o relatório de sistematização dos dados estatísticos sobre o mercado de trabalho na União Europeia e em Portugal na última década, elaborada pelo Observatório do Emprego e Formação Profissional (2012). Da sua leitura é possível constatar que no período de 2001-2011, o desemprego em Portugal triplicou, tendo passado de uma taxa de 4.1%, em 2001, para 12,9%, em dezembro de 2011. A mesma tendência verificou-se relativamente ao desemprego jovem (15-24 anos), que registou no período em análise um aumento de 20,7 pp., tendo passado de uma taxa de 9.4%, em 2001, para 30,1%, em 2011. No que respeita à taxa média de desemprego na União Europeia-27 (U.E.27) não deixa de ser significativo (pelo que poderá revelar em termos de tendências estruturais do mercado de trabalho nesta zona do globo) que se tenha mantido, na última década, em valores que rondam os 9% e que tenha atingido, no final de 2011, 9,7%. Significativo parece ser também que parte importante desse desemprego seja de longa duração: mesmo que no contexto da média dos países da U.E.27 este indicador apresente, no período em análise, uma tendência para alguma estabilização na ordem dos 4%, em Portugal tem registado uma subida progressiva desde 2001, altura em que apresentava uma taxa de 1.5%. Em 2011, essa taxa era de 6.2%, ou seja 356,4 mil pessoas (representando 52,9% do total de desempregados) encontravam-se desempregadas há mais de um ano, 59,4% das quais estavam nessa situação há mais de dois anos. A percentagem de mulheres em situação de desemprego de longa duração era superior à dos homens e 69,5% desses desempregados tinham como habilitações escolares até ao terceiro ciclo do ensino básico. Estes dados sugerem que o desemprego tem vindo a adquirir contornos de diferenciação e seletividade, particularmente em função do género, do nível de escolaridade e do grupo socioprofissional. São, com efeito, várias as análises de natureza institucional e outras de carater científico que evidenciam que as taxas de desemprego das mulheres apresentam, de forma consistente, nos últimos anos valores superiores às dos homens. Em Portugal, na década 2000-2010, a taxa de desemprego cresceu 6.7% para os homens e 7.2% para as mulheres. Em 2011, segundo o relatório que estamos a citar, essa taxa era de 12,4% para os homens e de 13,1% para as mulheres. Nesse mesmo ano, 65,2% do total dos desempregados (437,2 mil indivíduos) tinham como habilitações escolares até ao ensino básico, o que parece confirmar a tendência que se verifica desde o início do milénio: no período de 2000-2010, a taxa de desemprego dos indivíduos com habilitações escolares até ao ensino básico foi quase sempre superior à registada relativamente aos outros níveis de escolaridade, tendo-se verificado, de resto, o acentuar dessa diferença a partir de 2008. Não surpreende, portanto, que seja nos grupos socioprofissionais dos operários, artífices e trabalhadores similares e nos dos trabalhadores não qualificados que se verificou, na última década, o maior aumento do número de desempregados.
O desemprego está estruturalmente associado à precarização do emprego, relativamente à qual são também muitas as controvérsias teóricas (Oliveira et al., 2011). Ainda assim, a grande maioria das fontes e investigações estatísticas assinalam o aumento dos contratos de trabalho de duração determinada. Revelam também que o emprego precário tem adquirido nos últimos anos particular expressão ao nível dos trabalhadores menos qualificados e das mulheres, “A maior fragilização dos vínculos contratuais, a insegurança de emprego e o trabalho a tempo parcial involuntário atingem sobretudo a população feminina” (Casaca, 2010: 283). Outras referem os designados falsos trabalhadores independentes e também o emprego clandestino. Fala-se, enfim, de trajetórias de “Flexibilidade precária estável” (Kovács, 2005). Vários estudos falam-nos das consequências da precariedade do emprego na precarização dos modos de vida dos indivíduos (Le Blanc, 2007; Almeida et al., 2011). Outros fazem a distinção entre precariedade objetiva e precariedade subjetiva (Gonçalves, 2009), sendo talvez esta última expressão da precariedade a que melhor dá conta das transformações de grande intensidade que estão a ocorrer nos mercados de trabalho. Mesmo os que têm trajetórias laborais estáveis revelam sentimentos de incerteza quanto ao emprego e ao seu futuro profissional.
Referindo-se apenas ao trabalho temporário ou contratos a termo, o relatório que estamos a citar revela que, no conjunto dos países da U.E.27, a percentagem média desse tipo de contratos tem crescido, embora de forma pouco expressiva, desde 2001. Mesmo assim representava, em 2011, 14,1% do emprego total. Essa percentagem é particularmente pronunciada em Portugal, já que, no mesmo ano, representava 22,2% do emprego. Um estudo (Oliveira e Carvalho, 2008), que analisou, com base nos dados fornecidos pelo Eurostat, a evolução da precarização do emprego (contrato a tempo determinado) num conjunto de países europeus nos últimos vinte anos refere que, pesem embora algumas diferenças, o trabalho temporário está generalizado a todos os países da União Europeia e instalado em todas as gerações, ainda que sejam os mais jovens os mais atingidos por estas formas “atípicas” de trabalho. Esse estudo conclui, de forma mais geral, que “os mercados de trabalho na Europa mostram uma mudança estrutural no sentido de uma redefinição das relações de emprego”, indiciadoras de uma nova relação salarial que as autoras designam por neoconcorrencial, “na medida em que todos os países avançam para uma maior liberalização das relações de emprego, seja pela liberalização das demissões individuais e/ou coletivas, seja pela expansão do trabalho temporário ou pela combinação de ambas” (Oliveira e Carvalho, 2008: 561).
O que estes dados indiciam é que, mesmo que se apresentem com contornos e dimensões temporais e locais diferenciadas, o desemprego e a precarização do emprego são questões persistentes em todas as sociedades europeias. Parecem configurar-se, aliás, como elementos estruturais do mercado de trabalho, não apenas da Europa, mas da maioria das sociedades de capitalismo avançado. Estaremos, assim, perante uma situação relativamente nova na história recente do trabalho: após ter sido o principal atractor e configurador da vida individual e coletiva, ao que hoje assistimos é à sua rarefação e descontinuidade no trajeto laboral do sujeito.

1.2. Segmentação do trabalho e fragmentação do estatuto do trabalhador

Essa descontinuidade das carreiras laborais participa e é reforçada pela fragmentação do mercado laboral, que ganhou particular expressão a partir do final dos anos setenta do último século, tendo registado nos anos noventa a sua confirmação. As exigências da produção e as necessidades do sistema económico, impulsionadas pelo império da competitividade, não param de diferenciar as formas e situações de trabalho. Ao que hoje assistimos é, pois, à multiplicidade de mercados laborais, ou, como refere Pais, “o mercado de trabalho é um arco-íris de segmentações” (Pais, 2001: 17). Mais do que isso, e como tem sido sublinhado por vários autores (Berger e Piore, 1980; Offe, 1992; Gorz, 1991), a diferenciação interna do trabalho tende a arrumar-se em dois grandes segmentos: a par de um segmento dito primário, que assegura melhores salários, exige e proporciona melhores qualificações e (ainda) parece prometer carreiras ou trajetos profissionais mais estáveis, existe outro segmento, o secundário, caracterizado pelo desemprego intermitente, precariedade extrema (pluriatividade, trabalho clandestino, trabalho temporário, trabalho ao domicílio, teletrabalho, trabalho a tempo parcial involuntário, autoemprego, etc.), por baixos salários e baixas qualificações. Enfim, exercido nas piores condições. Este segmento parece, aliás, cada vez mais expressivo e com tendência a crescer (Beck, 2000) e a especializar-se. Algumas investigações (cf. Purser, 2006) revelam que, nos últimos anos, têm surgido, designadamente nos Estados Unidos da América, outro segmento especialmente dirigido aos excluídos do mercado de trabalho “convencional”, à “Arma industrial de reserva contemporânea”. Trata-se de empresas de trabalho temporário que estão particularmente vocacionadas para recrutamento à “jorna” de prisioneiros em situação de liberdade condicional, ex-detidos, velhos beneficiários de ajudas sociais excluídos do sistema, sem abrigo e emigrantes clandestinos.
Essa segmentação não resulta apenas dos mecanismos da flexibilidade externa, mas também do interior da própria empresa, o que talvez possa ser considerada uma forma maior de fragmentação do estatuto do trabalhador, tal como sugere Dubet, “O indivíduo passa de um lado para o outro e talvez no seio da mesma empresa encontram-se trabalhadores tendo exatamente o mesmo tipo de atividade e estatutos totalmente diferentes” (Dubet, 1999: 13). É por isso, aliás, que o discurso da empresa integradora ou empresa cidadã que apela à sua responsabilidade social tem cada vez menos consistência, já que “a empresa funciona também, e aparentemente cada vez mais, como uma máquina de vulnerabilização, e até mesmo como máquina de exclusão” (Castel, 1998: 519). A par da segmentação, a fragmentação do estatuto do trabalhador parece ser, portanto, uma outra linha orientadora da organização do mercado laboral nas sociedades ocidentais contemporâneas. Traduzida, além do mais, no facto de, quer a nível coletivo, quer a nível individual, haver cada vez menos correspondência entre as qualificações, as competências e funções exercidas e os rendimentos e os estatutos, a fragmentação do estatuto do trabalhador coloca várias questões de natureza teórica e empírica à forma como concebemos e interpretamos o trabalho na atualidade. Para alguns autores (Offe, 1992; Gorz, 1991), constitui mesmo um sinal claro da perda da sua centralidade social e cultural. Seria, também um fator de alargamento do campo das desigualdades, já que, além das que resultam da hierarquia tradicional de rendimentos entre categorias sócio laborais, a fragmentação do estatuto do trabalhador originaria desigualdades intracategoriais, ou “novas” desigualdades que “Procedem da requalificação de diferenças no interior de categorias consideradas anteriormente homogéneas” (Fitoussi e Rosanvallon, 1997: 41).

1.3. Trabalho e organização da experiência biográfica. O sistema contra o ator?

A rarefação e segmentação do trabalho e a fragmentação do estatuto do trabalhador têm suscitado, nos últimos anos, dúvidas e interrogações acerca do seu valor subjetivo, ou seja, da importância e do significado que assume no trajeto existencial do sujeito. Esse tipo de dúvidas aumenta e ganha maior consistência quando se toma em consideração a sua crescente desumanização, no sentido em que os processos de racionalização técnica e organizacional, cada vez menos, permitem a manifestação das características e qualidades da pessoa que o executa. Surgem também quando se constata que as sociedades de capitalismo avançado sustentam na individualização da gestão do risco e no princípio da incerteza do emprego a sua lógica de funcionamento, o que pode “corroer o nosso sentido de carácter” (Sennett, 2001: 130). Trata-se de saber, em síntese, se as condições da sua realização nas sociedades ocidentais contemporâneas não corrói e desagrega a sua ética tradicional, em que “As pessoas procuravam provar o seu valor através do trabalho” (Sennett, 2001: 154). O que, em termos mais imediatos e concretos, coloca, desde logo, questões como a de saber se é possível continuar a considerá-lo como o grande integrador da experiência pessoal e social; ou se o papel da atividade profissional nos processos de socialização e de construção das identidades deve ser relativizado. Mais geralmente, trata-se de saber se o trabalho é hoje um instrumento para a vida ou forma de realização de si.
É ainda maioritária a conceção segundo a qual o trabalho constitui o referencial maior na vida dos indivíduos (Dubar, 1997; Schnnapper, 1998). São, no entanto, muitos os sinais evidenciados por pesquisas de recorte qualitativo (Grell e Wery, 1993; Schehr, 1999), que permitem colocar a possibilidade de que já não é o valor central e que a sua ética se encontra, pelo menos, fortemente relativizada, ou nas palavras de Bauman (2007: 149) “O ‘trabalho’ já não pode oferecer um uso seguro no qual enrolar e fixar definições do eu, identidades e projetos de vida.” Também Schehr, a propósito das perspetivas que tendem a conferir uma importância decisiva à identidade profissional para a identidade social, afirma: “este ponto de vista esquece muito simplesmente de invocar outras experiências sociais que não o trabalho, que também podem ser fundamentais da construção identitária” (Schehr, 1999: 250). O trabalho tenderia, assim, a perder significado enquanto símbolo maior daquilo que somos (Estanque, 2005: 114).
É possível, em qualquer caso, admitir que o valor do trabalho, o seu lugar na construção das identidades individuais e sociais, a satisfação que as pessoas experimentam quando o exercem, ou seja, a sua apropriação subjetiva, enfim, a importância que lhe é conferida pelos sujeitos, não constituem realidades homogéneas. Estarão dependentes de fatores diversos, uns intrínsecos, outros extrínsecos ao próprio trabalho. Na interpretação dos dados do inquérito realizado em França, em 2003, a cerca de 8400 indivíduos, Hèlène Garner et al. referem que “Do ponto de vista do lugar do trabalho na identidade, uma fronteira muito nítida separa dois grupos, os quadros e os independentes, para os quais o trabalho é um forte componente da identidade, e os empregados e operários, para os quais é menos” (Garner et al., 2006: 28). Quanto à importância que lhe é concedida seriam as pessoas com mais baixos salários, piores condições de trabalho, com filhos menores e, sobretudo, com pouca segurança no emprego, as que lhe atribuíam menor importância. Com base nesse estudo concluem, enfim, que, quer como elemento de identidade, quer como atividade mais ou menos valorizada, o trabalho tem um lugar relativo face a outras atividades, nomeadamente familiares, e a outros valores. Parece, portanto, que o seu lugar na construção das identidades e a importância que o indivíduo contemporâneo lhe atribui estão associados à situação pessoal e familiar e, sobretudo, à trajetória e posição socioprofissional.
Do que até agora dissemos, decorre também a questão de saber se o trabalho é sobretudo um instrumento para a vida (versão instrumental) ou forma de realização de si (versão expressiva). A perspetiva dominante tem sido a de considerar que é, sobretudo, a sua realização o que o homem procura no trabalho, até porque ele é, por essência, realizador. No entanto, e tendo presente o que atrás dissemos sobre as condições da sua realização nas sociedades ocidentais contemporâneas, é possível admitir que, pelo menos para um grande número de indivíduos, ele não permite a manifestação das suas faculdades, a sua forma e ritmo de funcionamento, ou os seus interesses e valores, enfim, a expressão de si. E será assim, desde logo porque “o nosso envolvimento no trabalho torna-se superficial, uma vez que nos falta entendimento do que estamos a fazer.” (Sennett, 2001: 114). Aliás, pelo tipo de racionalidade que impõe, pode mesmo provocar uma cisão na vida dos indivíduos. Estamos de acordo com Gorz quando nos diz que “as qualidades profissionais são isentas de virtudes pessoais e a vida privada resguardada contra os imperativos da vida profissional” (Gorz, 1991: 54). A relação dominante com o trabalho seria, nesta perspetiva, uma relação moralmente neutra, de tipo instrumental, o que leva mesmo alguns autores a considerar que deixou de ser uma questão de ética para passar a constituir, sobretudo, uma experimentação estética (Bauman, 2007).
É verdade que o contrato salarial continua a ser o modelo e o fundamento dos contratos sociais, desde logo, porque o rendimento continua, no essencial, a estar indexado à posição do indivíduo no sistema económico. Contudo, o que reflexões como as que acabamos de fazer sugerem é que o trabalho, tal como se configura atualmente para um número crescente de pessoas, poderá ser percebido e vivido, sobretudo, como um constrangimento à sua autonomia e autorrealização (Dubet, 2006). Podemos estar, assim, em presença de um conflito entre o sistema e o ator, ou seja, o trabalho como norma já não tem o mesmo sentido e significado para o ator e para o sistema (Touraine, 2005), o qual tudo faz para lhe conservar o lugar.

2. Ética do trabalho, pobreza e processos de marginalização social

É neste contexto que é possível interpretar os sucessivos e sempre renovados esforços para manter viva e até reforçada a sua ética. A partir dos anos noventa do último século, isso tem-se traduzido na implementação de dois grandes tipos de medidas de alcance e significado particularmente importantes. Um deles, alargando o conceito de trabalho, tornando-o pouco preciso e até de contornos indefinidos, de tal forma que se torna difícil perceber o que é trabalho e não-trabalho. É assim que se tem assistido à tentativa de invenção e descoberta de novas “jazidas de emprego”, o que poderá significar alimentar uma política de retorno à plena atividade, mas não à situação de pleno emprego (Castel, 2009). Os serviços prestados às pessoas são os mais salientados por alguns teóricos do emprego, entre os quais Schnnapper, que, a este propósito, afirma: “É o conjunto a que se chama o social no sentido lato do termo: cuidar materialmente, moralmente, intelectualmente das crianças, dos adolescentes e dos idosos, dos doentes e enfermos, e até mesmo dos adultos activos, isto é, instruí-los, tratá-los e distraí-los” (Castel, 2009: 83). Este tipo de propostas parece ter tido bom acolhimento nos países da União Europeia e também em Portugal. Demonstra-o, com efeito, o aumento registado, nos últimos anos, em Portugal como noutros países, da oferta formativa nesta área e o crescimento do número de trabalhadores inseridos neste setor de atividade, na maior parte das situações considerados trabalhadores não-qualificados e com baixas remunerações (Meda e Vennat, 2004). Notemos, contudo, que essa opção não é isenta de riscos, desde logo porque coloca a possibilidade de nos tornarmos uma sociedade de servidores e de neo-domesticidade (Gorz, 1991). O que poderá significar o aprofundamento das desigualdades, antes de tudo o mais pela diferente valorização do tempo de cada um dos trabalhadores. Um outro, implementando uma panóplia de medidas e de dispositivos que visam a prevenção precoce do desemprego e a reinserção laboral, através das políticas ativas de emprego e de “ativação” dos desempregados. Essas políticas, como de resto as políticas sociais em geral, são crescentemente orientadas pelo princípio do “individualismo normativo” (Delory-Momberger, 2010), nos termos do qual cabe ao indivíduo cuidar e demonstrar a sua “empregabilidade”. Ou seja, deve estar permanentemente preparado para poder convencer um potencial empregador da sua adequação às condições de emprego que lhe poderão ser oferecidas, ainda que não saiba exatamente quais e se isso vai ocorrer. Foi também com base nesse princípio que foi reforçada uma prática já antiga, mas que, a partir da década de noventa do último século, assumiu, em grande parte dos países da Europa e também em Portugal (Fonseca, 2008), novos contornos e importância crescente. Faz parte, aliás, de uma das prioridades da Estratégia Europeia para o Emprego de 1997 (Conter, 2007), o controlo dos desempregados, sobretudo daqueles que estão a receber indeminização pela situação de desemprego. Para além de poder servir para fazer ajustamentos nas taxas de desemprego, o que este reforço do controlo traduz de mais significativo é a responsabilização do desempregado pela sua situação de desemprego (Dubois, 2008). Desta forma, e a par da tendência para a diminuição progressiva das prestações socias de desemprego, quer em termos do valor, quer no que se refere aos períodos de concessão, o que se pretende é que os desempregados procurem e consigam, por si sós, encontrar emprego. Ora, pelo menos para alguns, tal poderá significar procurar o que não existe. Estamos de acordo com Alonso quando refere que “As novas exigências do mundo laboral transformam muitos produtores em dificilmente empregáveis” (Alonso, 2004: 34). Este tipo de observações adquire maior alcance e significado se tivermos em conta que o desemprego, e particularmente o de longa duração, é, na maior parte das economias de capitalismo avançado e também em Portugal, seletivo, designadamente em função do nível de habilitações escolares e profissionais, do grupo socioprofissional e do género (Maruani, 2004; Observatório do emprego e Formação Profissional, 2012). Para muitos outros, poderá traduzir-se na aceitação de empregos mal remunerados, sem interesse e exercidos nas piores condições, o que ajudará a compreender os dados apresentados pela Fundação Europeia Para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho (Fundação Europeia Para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho – EUROFOUND, 2010), segundo os quais, em 2007, 8% da população empregada na União Europeia pertencia à categoria de trabalhador pobre. Essa percentagem seria ainda mais pronunciada em Portugal, sendo vários os estudos (eg. Carmo et al., 2010) que apontam para que 12% dos trabalhadores viviam, no mesmo ano, abaixo do limiar de pobreza. É de admitir, de resto, que esta situação tenha sofrido algum agravamento nos últimos anos, tanto no contexto europeu, como nacional.
Tendo sido apresentadas como fazendo parte de uma estratégia para alcançar o “pleno emprego”, são, até agora, poucos os resultados conseguidos a esse respeito pelas políticas da ativação dos desempregados e da promoção da “empregabilidade”. Isto justifica compará-las ao “mito de Sísifo” (Castel, 1998), a considerá-las falsas ou, no mínimo, ingénuas (Bauman, 2005), tendo em conta, designadamente e como atrás dissemos, que a taxa média do desemprego nos países da União Europeia, há pelo menos uma década, ronda os 9%. Muito longe, portanto, da taxa de 3%, frequentemente considerada compatível com a situação de pleno emprego (Conter, 2007). Também Pedro Hespanha e Carla Valadas nas conclusões da análise a que procedem do impacto das principais medidas previstas no primeiro Plano Nacional de Emprego (PNE, 1998) implementado em Portugal, referem: “Alguns resultados medidos das políticas de activação dos desempregados no âmbito da abordagem precoce do desemprego, parecem evidenciar particulares problemas de (re) inserção estável no mercado de trabalho” (Hespanha e Valadas, 2002: 169). É possível, portanto, admitir que essas políticas, mais do que acabar com o desemprego, visam, sobretudo, mantê-lo a níveis controláveis e como instrumento de gestão das relações laborais. Em particular, levarão ao aumento da concorrência entre os indivíduos pelos postos de trabalho disponíveis, no que sairão quase sempre a perder os de menores recursos educacionais, culturais, económicos e sociais. É nesse sentido que apontam as reflexões, a nosso ver pertinentes e de grande potencial heurístico, de alguns autores (Maruani, 2001; Conter, 2007): analisando as políticas de emprego desenvolvidas no quadro da União Europeia, evidenciam o papel que o desemprego tem assumido como forma de pressão sobre as condições de trabalho e de emprego. Sublinham, em particular, que o desemprego e as medidas ativas apresentadas como forma de o combater têm funcionado, sobretudo, como instrumentos de diminuição dos custos salariais, de precarização do emprego e de afastamento de muitos trabalhadores do mercado de trabalho.
Estaremos, pois, num contexto económico-social em que o mercado de trabalho é, cada vez mais, o centro de produção, reprodução, ampliação e reforço de velhas e novas desigualdades (Cingolani, 2011). A ética do trabalho, que tendo sido construída com base na promessa de acabar com a pobreza, parece constituir hoje um poderoso mecanismo no processo de empobrecimento e de marginalização de consideráveis setores da população (cf. Hespanha, 2007) que, antes de tudo o mais, estão afastados do mercado de trabalho. É isso, aliás, o que autoriza alguns autores a falar de uma nova marginalidade, seja ela designada por Underclass, nova pobreza ou exclusão social. Independentemente das críticas que lhes têm sido dirigidas (Karsz, 2004; Bauman, 2005; Fernandes, 1998), o que estas categorias de análise acabam por dar conta é das profundas transformações registadas, nas últimas décadas, pelo trabalho e as suas novas configurações na organização e no funcionamento das sociedades do pós-fordismo e do capitalismo avançado. Pode servir-nos de exemplo Wacquant, quando refere que, com a “modernização económica acelerada, provocada pela reestruturação global do capitalismo” (Wacquant, 2001: 168), surge um novo regime de desigualdade e marginalidade urbana que designa por “marginalidade avançada”. Nesta noção, o autor engloba um conjunto de desinserções e figuras da marginalidade que proliferam como consequência desta nova fase do capitalismo. A marginalidade é considerada avançada também porque traduz uma nova forma de existência da pobreza: na medida em que está dissociada dos ciclos económicos, tende a ser de longa duração. Está, além disso, confinada a bairros relegados, num processo social bem ilustrado por Dubet: “O declínio da sociedade salarial acarretou um deslocamento da questão social que se assemelha em vários pontos ao da época da entrada na sociedade industrial, na medida em que o núcleo dos problemas se desloca das fábricas para a cidade, para as periferias ou centros de cidade degradados, onde se concentram os grupos mais frágeis, mais pobres, mais estigmatizados” (Dubet, 2001: 9). O que estas afirmações sugerem é que, se é verdade que pobres sempre existiram (Bauman, 2005), não menos certo é que conheceram contextos diferentes de existência. Em contraste com o período da expansão industrial, em que, além do mais, a pobreza estava dispersa por vários espaços operários e era sobretudo cíclica, nas sociedades ocidentais contemporâneas, ser pobre não significa apenas viver em situação de privação económica. Traduz-se, frequentemente, também em viver em espaços relegados, caracterizados pela concentração e estigmatização da pobreza. Habitar nesse tipo de territórios, para além de confirmar a situação de pobreza de quem lá vive ou de quem para lá vai viver, pode, assim, significar a sua perpetuação. Investigações recentes revelam, com considerável consistência teórica/metodológica, que os jovens residentes em espaços estigmatizados experimentam dificuldades acrescidas de competitividade nos mercados de trabalho: não apenas porque têm maiores dificuldades no acesso ao emprego, quando se compara com o que acontece com jovens residentes noutros territórios, o que permite verificar “um efeito específico e importante do lugar de residência sobre o acesso ao emprego” (L’Horty et al., 2011: 87); mas também porque os jovens residentes nesses territórios, quando conseguem emprego, têm maiores dificuldades em aceder aos mais qualificados e auferem remunerações mais baixas, quando comparadas com o que acontece com jovens residentes noutros locais. Neste caso, o lugar de residência constitui-se como um efeito específico de descriminação salarial (Couppié et al., 2010). Idênticas conclusões podem ser encontradas num trabalho de investigação de natureza qualitativa realizado num dos bairros dos arredores de Lisboa (cf. Silva e Machado, 2010). Para além de se confirmar que a taxa de desemprego jovem nesse bairro era “cerca de três vezes maior do que a nível nacional” e de que “há no bairro mais precariedade laboral do que no país”, comparando a situação laboral dos jovens aí residentes com a de outros jovens, conclui-se que “São proporcionalmente muitos mais nas categorias profissionais mais desqualificadas e muito poucos nas mais qualificadas” (Silva e Machado, 2010: 201). Por outro lado, estudos realizados em prisões portuguesas (cf. Cunha, 2002; Fernandes e Silva, 2009) revelam que, desde os anos 80 do último século e até ao ano 2000, a taxa de encarceramento tem vindo a aumentar, seguindo uma tendência verificável noutros países ocidentais de capitalismo avançado. Este tipo de dados poderá traduzir uma reinvenção da prisão como “solução penal frente ao novo problema da exclusão social e económica” (Garland, 2005: 323). Evidenciam, além disso, que a sociografia dos detidos tem vindo a mudar. Os dados apresentados na investigação que Maria Ivone Cunha realizou no estabelecimento prisional de Tires, dizem-nos que subiu o número das detidas que se incluem no segmento secundário do mercado de trabalho, com baixa remuneração e participação em economias informais e, por outro lado, que essas reclusas provêm “esmagadoramente das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e, nestas, das zonas de barracas, bairros de realojamento, bairros sociais suburbanos. Afinal, conclui-se, as mesmas zonas por onde se distribui a pobreza” (Fernandes e Neves, 2010: 326).

Em síntese, numa situação de “penúria” de emprego e de recuo do estado social, o facto de se viver num “bairro social degradado” pode condicionar, ainda mais negativamente, o percurso profissional dos que lá habitam. Viver nesses territórios significa estar, frequentemente, em situação de múltipla relegação. A relegação dessas populações não é, com efeito, apenas por parte dos empregadores, mas também da polícia, dos tribunais, dos serviços de apoio social (Wacquant, 2001) e dos próprios vizinhos (Dubet, 2001). Torna-se, assim, difícil a tarefa de conseguir (e, muito mais complicado ainda, manter) emprego no mercado formal. A saída para muitos dos seus habitantes poderá ser aceitar trabalhos mal remunerados, exercidos nas piores condições de higiene e de segurança. São, além disso, frequentemente pagos à jorna, o que poderá surgir como uma solução ajustada à extrema precariedade financeira e à pobreza económica de muitas famílias: é necessário ganhar hoje dinheiro para suportar as despesas do dia seguinte. Para outros, poderá ser o trabalho clandestino, de que releva a venda de drogas e de outras atividades ilegais.

Considerações finais

Uma análise como aquela que aqui fizemos às transformações registadas pelo trabalho assalariado, nas últimas décadas, nas sociedades de capitalismo avançado, autoriza a pensar que este, depois de ter sido considerado como o grande integrador, gerador de compromissos sociais e de ter subsumido todas as dimensões da vida social, poderá constituir hoje um importante fator de desestruturação da vida individual e coletiva. Parece configurar-se, aliás, como paradoxal. Desde logo, porque, pelo menos nas últimas cinco décadas, tem vindo a aumentar o número de pessoas, particularmente mulheres, que participam no mercado de trabalho na condição de assalariadas. Contudo, ao que hoje assistimos é à persistência de elevadas taxas de desemprego e ao emprego incapaz de gerar confiança para a construção de projetos de futuro, quer no plano individual, quer coletivo. O mercado contemporâneo de trabalho é marcado pelo princípio da insegurança do emprego e da normalidade do desemprego (Silvestre e Fernandes, 2012), ele próprio seletivo e desigual. O desemprego, como a precariedade do emprego, é experimentado de forma mais dura e radical por mulheres, por emigrantes, por indivíduos mais velhos, por pessoas com menos habilitações escolares e profissionais, com menos capital social. De acordo com as tendências atuais, muitas dessas pessoas dificilmente regressarão ao mercado de trabalho, enquanto outras continuarão a lutar por um lugar que lhes assegure a subsistência (Honneth, 2008). Muitas outras executam atividades sem conteúdo expressivo e em condições precariamente protegidas e altamente desregulamentadas. Paradoxal também porque, em nome da sua antiga ética e do reforço da sua centralidade normativa, isto é, a tendência para o considerar como condição quase única de cidadania (Noguera, 2002), o trabalho assalariado é representado como a principal fonte de subsistência material e signo do estatuto social, constituindo a única forma das pessoas escaparem à pobreza. São, no entanto, muitos (e, ao que parece, com tendência a crescer e a instalar-se na paisagem social) os que trabalham e são pobres. O mesmo é dizer que o trabalho já não protege as pessoas contra a pobreza, na medida em que não assegura a muitos dos trabalhadores condições mínimas para uma independência económica e uma vida minimamente decente (Castel, 2009). É em nome do valor normativo do trabalho que se retiram prestações sociais e se diminuem intensamente as de desemprego a pessoas que não dispõem de outras formas de subsistência e não conseguem trabalhar. Em Portugal, para além de ter vindo a baixar o número de desempregados protegidos, também “se assiste a uma diminuição dos valores e duração das prestações, o que não deixarão de gerar «armadilhas de pobreza» entre os desempregados” (Adão e Silva e Pereira, 2012:313). Conjugam-se, assim, dois fatores maiores no processo de empobrecimento e até de marginalização social de amplos setores da população: o estado social recua, ao mesmo tempo que o trabalho assalariado escasseia e perde relevância social e cultural. A sua crescente rarefação, desregulação e individualização (a nível empresarial e societal) parece colocá-lo no centro de crescentes e renovadas desigualdades e no jogo de múltiplas exclusões. E, desde logo, porque a crescente seletividade do trabalho reforça e reinscreve antigas desigualdades estruturais.

 

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Artigo recebido a 24 de fevereiro de 2013. Publicação aprovada a 26 de maio de 2013.

 

Notas

1 Doutorando e Mestre em Psicologia do Comportamento Desviante pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP) (Porto, Portugal); Docente (assistente convi- dado) no Departamento de Ciências da Educação e do Património da Universidade Portucalense, NIDEPES (Porto, Portugal). Endereço de correspondência: Universidade Portucalense Infante D. Henrique, Rua Dr. António Bernardino de Almeida, 541, 4200-072 Porto, Portugal. E-mail: agostinhosilvestre@sapo.pt

2 Doutorado em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP); Professor Associado no Departamento de Psicologia da FPCEUP (Porto, Portu- gal). E-mail: jllf@fpce.up.pt

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