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Sociologia

versión impresa ISSN 0872-3419

Sociologia  no.tematico4 Porto  2014

 

ARTIGOS

O Rendimento Social de Inserção e os beneficiários ciganos: o caso do concelho de Faro

The Social insertion Income and the Gypsies/Roma people: The case of Municipality of Faro

Le Revenu Minimum d’Insertion et les Tsiganes: Le cas de la Municipalité de Faro

Los Gitanos y la Renta Mínima de Inserción: El caso de la Municipalidad de Faro

Sofia Rebelo Santos* João Filipe Marques**

Educadora Social
Universidade do Algarve


 

RESUMO

Este artigo explora as vivências do Rendimento Social de Inserção (RSI) por parte dos ciganos portugueses. O seu objetivo principal foi o de compreender como é que esta categoria de beneficiários perceciona e vive as situações de subsidiariedade. O estudo que lhe deu origem envolveu um grupo de famílias ciganas do concelho de Faro e um conjunto de técnicos sociais responsáveis pela atribuição e gestão do subsídio. Pretendeu-se também conhecer, em certa medida, as reais possibilidades de inserção social e saída do universo da pobreza através destas medidas de política social.

Palavras-chave: ciganos; Rendimento Social de Inserção; pobreza.


ABSTRACT

This article explores the perceptions of Portuguese Gypsies/Roma in what concerns the Social Insertion Income (Rendimento Social de Inserção). Its main objectives are to understand how these social actors live the subsidiary situations. The study involved not only the families who benefit from this social policy measure, but also the social workers who are in charge of its attribution and management. We also intended to reflect about the real efficacy of these social policies in helping the Portuguese Gypsies/Roma to exit the poverty situations they often live in.

Keywords: Roma; Social Insertion Income; poverty.


RÉSUMÉ

Cet article explore les perceptions du Revenu Minimum d’Insertion (Rendimento Social de Inserção) par ses bénéficiaires Tsiganes au Portugal. L’objectif central est de comprendre leurs façons de vivre en situation de subsidiarité. L’étude a été menée auprès de familles bénéficiaires de cette mesure de combat contre la pauvreté, et auprès de travailleurs sociaux chargés de leur gestion. Une réflexion est également menée sur l'efficacité réelle de ce type de mesure de politique sociale visant la sortie de la pauvreté des Tsiganes Portugais et leur insertion sociale.

Mots-clés: tsiganes; Revenu Minimum d'Insertion; pauvreté.


RESUMEN

Este artículo explora cómo los gitanos Portugueses usan la Renta Mínima de Inserción (Rendimento Social de Inserção) y las estrategias que estos llevan a cabo. Su objetivo central es comprender cómo estos actores sociales perciben y viven las situaciones de subsidiariedad. El estudio se ha llevado a cabo con familias beneficiarias de estos programas y con trabajadores sociales responsables de su asignación y gestión. Se ha reflexionado también sobre la eficacia de estas políticas sociales en relación a la lucha con la precariedad y la promoción de la inserción social de los gitanos Portugueses.

Palabras-clave: gitanos; Renta Mínima de Inserción; pobreza.


 

Introdução1

As sociedades modernas fundam-se nos valores da igualdade, nomeadamente nos princípios da igualdade de oportunidades, sendo esta um dos pilares da cidadania. Mas mesmo nas sociedades desenvolvidas, a verdadeira igualdade de oportunidades parece não ter sido ainda totalmente alcançada, pois não apenas continuam a existir grupos extremamente vulneráveis à pobreza e à exclusão social, como essas situações tendem, com persistência, a reproduzir-se no tempo.
Apesar de a pobreza constituir a privação de recursos e a exclusão social a rutura entre o indivíduo e a sociedade, nem sempre as duas situações coexistem. Por um lado, há situações de pobreza integrada, como, por exemplo, em meio rural, onde os indivíduos vivem situações escassez de recursos materiais e simbólicos, embora continuem relativamente integrados socialmente. Por outro lado, existem também situações de exclusão que não dependem da condição de pobreza. Um dos exemplos clássicos é o da exclusão racista ou homofóbica; os indivíduos são excluídos da participação na sociedade por reunirem outras características que não a pobreza. Todavia, nos meios urbanos e periurbanos típicos das sociedades modernas, a pobreza arrasta sempre consigo um determinado grau de exclusão social a qual, por seu turno, contribui para manter e amplificar as situações de carência. Ou seja, a escassez de recursos materiais típica da pobreza implica normalmente a escassez de recursos simbólicos que permitam aos indivíduos a plena participação na sociedade. Por outras palavras, na maior parte dos casos, a pobreza está associada a situações de défice de participação na vida coletiva.
Em Portugal, as políticas públicas parecem não ter sido inteiramente capazes, até ao momento, de combater com eficácia a pobreza e a exclusão, nem de prever o seu aparecimento (Rodrigues, 2010a). Contudo, um dos mecanismos de minimização das consequências da pobreza extrema tem sido as políticas sociais de “rendimento mínimo”, cuja filosofia visa precisamente garantir um padrão de vida condigno àqueles que mais necessitam. No nosso país, o Rendimento Social de Inserção (RSI) veio, em 2003, substituir o seu percursor, o Rendimento Mínimo Garantido (RMG). Esta última medida, legalmente criada em 1996, foi, numa fase experimental, posta em prática através de um conjunto de projetos-piloto que duraram cerca de um ano. No ano de 1997, a implementação plena do RMG foi acompanhada por um forte dispositivo de avaliação dos seus efeitos.
O Rendimento Social de Inserção constitui uma prestação pecuniária mensal que é concedida às famílias e aos indivíduos que vivam em situação de grave carência económica e que façam prova de que possuem determinadas condições de atribuição. Cabe aos beneficiários o cumprimento de um “Programa de Inserção Social” pré- estabelecido, que tem como objetivo proclamado romper o “ciclo vicioso da pobreza” (Instituto da Segurança Social, 2013). Trata-se de uma medida que visa criar as condições mínimas para o acesso às necessidades básicas e, ao mesmo tempo, gerar oportunidades de inserção social.
É claro que estas medidas também têm limitações e alguns efeitos perversos. Entre os problemas que têm vindo a ser apontados às políticas de rendimentos mínimos destacam-se: a dependência que podem provocar nos seus beneficiários, o fraco envolvimento destes nos projetos de inserção, a precaridade dos contratos de trabalho que lhes são oferecidos, a falta de motivação para frequentarem as ações de formação profissional devido à ausência de expectativas de futuro, a excessiva burocracia destes processos, a que se vem aliar o “efeito identitário negativo” e a estigmatização social de certos grupos de beneficiários (Diogo, 2007; Pacheco, 2009; Rodrigues, 2010b).
Apesar das diversas tentativas de assimilação de que, ao longo dos séculos, têm sido objeto, os ciganos portugueses têm conseguido manter certos traços culturais que lhes têm permitido manter as fronteiras da identidade étnica. São exemplos desses traços, a forte coesão familiar e de grupo, a grande valorização da endogamia, a capacidade de resolução de conflitos internos através de um sistema de normas interior ao grupo, os vincados papéis de género, a importância dada à socialização primária no seio familiar, a intensidade na vivência do luto, etc. (Mendes, 2005; Bastos, Correia e Rodrigues, 2007; Marques, 2006 e 2007; Casa-Nova, 2009).
Um estudo realizado sobre os processos de integração e de exclusão de uma comunidade cigana no Porto concluiu que estes dois processos alternam criando situações ambíguas. Por um lado, existe uma manifestação de integração através da sedentarização (e das melhores condições de habitação); por outro lado, as famílias ciganas resistem à mudança e à assimilação na sociedade dominante, ao preservarem alguns dos seus traços culturais (Magano e Silva, 2002).Esta resiliência identitária até hoje demonstrada pelos ciganos portugueses acaba também por ilustrar até que ponto a “integração” desejada pela “maioria” e posta em prática através das políticas públicas nem sempre é exatamente aquela que é desejada pelos próprios ciganos.
Atualmente uma grande parte da sociedade parece manifestar uma certa hostilidade relativamente aos ciganos. Estes são com demasiada frequência acusados de “abusarem” dos subsídios sociais do Estado-Providência, o que constitui, é certo, uma consequência dos ancestrais preconceitos de que têm sido vítimas (Marques, 2006 e 2013; Mendes, 2005 e 2012), mas também, claramente, de uma insatisfatória aplicação das políticas sociais.
Com efeito, diversos estudos têm vindo a demonstrar que, quer em virtude dos processos de discriminação étnica de que tem sido vítimas ao longo do tempo, quer como resultado de um certo afastamento voluntário que cumpre propósitos identitários, quer ainda devido a fatores estruturais de reprodução social da pobreza, os ciganos constituem uma categoria social particularmente exposta às situações de carência de recursos e de défice de participação cidadã (Almeida et al., 1992; Marques, 2006, 2013; Mendes e Magano, 2013). A pertinência do estudo que aqui se apresenta prende-se com essa situação de vulnerabilidade dos ciganos portugueses à pobreza, mas também com os efeitos de estigmatização social que esta medida tem implicado.

1. Os ciganos e o RSI. Uma relação tensa

Hoje em dia, na sociedade portuguesa, em diversos contextos do quotidiano, os ciganos são difusamente acusados de viverem do RSI e de não se esforçarem para trabalhar nem para se inserirem na sociedade. Segundo esta visão do senso comum, seriam os membros deste grupo que tirariam os maiores proveitos da aplicação do RSI (Branco, 2003: 119), havendo mesmo quem suspeite de uma certa “etnicização invertida” (Branco, 2003: 119), isto é, uma certa discriminação positiva por parte do Estado associada ao aproveitamento ilegítimo por parte dos indivíduos. A investigação efetuada pela ERRC/Númena, por seu turno, indicou que existe “uma discriminação institucional e uma desconfiança geral em relação aos beneficiários ciganos da parte dos trabalhadores dos serviços sociais”, ao serem preconceituosos e ao adotarem uma posição de controlo excessivo à fraude (ERRC/Númena, 2007: 54).
Um estudo realizado pelo Instituto da Segurança Social relativo a dezembro de 2008 estimou que existiam 5 275 famílias ciganas beneficiários do RSI, o que correspondia a 21 100 beneficiários, perfazendo um peso de apenas 3,9% relativamente ao total das famílias beneficiárias do subsídio (CPESC, 2008). Em todo o caso, as políticas sociais, principalmente o RSI, ao assegurarem um rendimento mensal às famílias mais pobres, têm sido de extrema importância para as famílias ciganas. Os motivos para que muitas recorram ao RSI devem-se às dramáticas situações de pobreza ou de doença grave em que vivem.
Os Contratos de Inserção preveem um conjunto de ações que obrigam os beneficiários que tenham capacidades para tal a procurar trabalho, a completar a escolaridade ou a frequentar ações de formação, num processo que tenta criar oportunidades de inserção no mercado laboral. No entanto, no atual contexto de crise económica, o aumento do desemprego e as baixas qualificações escolares e profissionais, agravam as possibilidades para se obter trabalho e os ciganos acabam por ser o grupo mais fustigado na área do emprego. Ou seja, algumas análises têm vindo a mostrar que o RSI “não é muito eficiente na promoção da inclusão social dos beneficiários ciganos” (ERRC/Númena, 2007: 52) e que muitos se tornaram dependentes da medida, devido à falta de reais possibilidades de integração.
É, pois, necessário discutir e analisar a relação entre o RSI e os ciganos, de modo não só a desmistificar alguns preconceitos que têm vindo a ser construídos e reproduzidos em torno deste assunto, como a observar como os próprios vivem esse “efeito identitário negativo”.

2. Metodologia e contexto territorial da investigação

As principais questões que se colocaram na investigação que aqui se apresenta foram as seguintes: i) Como vivem as famílias ciganas o facto de serem beneficiárias do RSI?; ii) Quais são as suas perceções relativamente a este tipo de prestação?; iii) Como lidam com o estereótipo da maioria por serem beneficiários do RSI?; iv) Quais são as suas representações relativamente aos direitos e deveres de solidariedade?; v) Como é que os técnicos de trabalho social percecionam o combate à pobreza, através do RSI?
A metodologia utilizada consistiu numa aproximação às duas categorias de intervenientes principais: os beneficiários ciganos do RSI e os técnicos da Segurança Social e das Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) que trabalham direta ou indiretamente com as famílias ciganas. As conversas informais e as entrevistas semiestruturadas foram as principais técnicas de recolha de informação, mas o trabalho de terreno intensivo com recurso à observação participante permitiu vivenciar de modo mais intenso as dinâmicas e os problemas das famílias ciganas e, ao mesmo tempo, interagir com elas por forma, não apenas a compreender a sua realidade, mas também, de certo modo, desenvolver a sua capacidade crítica relativamente ao tema em análise.
O contacto direto com os atores sociais, entre outubro de 2010 e outubro de 2011, contribuiu para percebermos como estes percecionam o apoio que lhes é atribuído pelo Estado, ao mesmo tempo que permitiu “dar” voz àqueles que, com demasiada frequência, são criticados e mesmo excluídos pela maioria.
Tendo como principal objetivos complementar a observação etnográfica e aprofundar as respostas às perguntas de investigação mencionadas, foram realizadas quinze entrevistas, nove a beneficiários ciganos e seis a técnicos sociais, cuja duração se situou entre os 40 e os 90 minutos. A escolha dos entrevistados ciganos teve em conta dois critérios: ser beneficiário do RSI e ter estabelecido uma relação de confiança com os investigadores. Os critérios de seleção dos técnicos sociais prenderam-se com as funções exercidas quer na Segurança Social, quer nas Instituições Particulares de Solidariedade Social. Alguns trabalham diretamente com os beneficiários, através, por exemplo, da fiscalização do cumprimento dos protocolos de RSI, enquanto outros intervêm de forma mais indireta, através, por exemplo, da atribuição do subsídio ou do acompanhamento social pontual. Por forma a garantir o anonimato dos intervenientes, todos os nomes apresentados neste artigo são fictícios.
No concelho de Faro, as famílias ciganas ocupam três tipos de habitat relativamente distintos: acampamentos instalados em baldios nas zonas rurais da periferia; habitações degradadas ou com precárias condições de habitabilidade situados em zonas desvalorizadas da cidade; bairros de habitação social resultantes de projetos de realojamento. O estudo que aqui se apresenta incidiu principalmente nestes dois últimos contextos: no bairro de habitação social da Avenida Cidade Hayward e no bairro de habitações degradadas da Horta da Areia. Ambos se caracterizam por uma forte desqualificação territorial e social.
De acordo com o Relatório Semestral da Instituição que detém o protocolo de RSI, o Grupo de Apoio a Toxicodependentes (GATO), de junho a novembro de 2012, foram acompanhadas 710 famílias, sendo que 550 são referentes ao protocolo de RSI, o que equivale a 1 515 beneficiários. Os dados referentes aos agregados familiares ciganos são de 145, que corresponde a 599 beneficiários (39,5% do universo de beneficiários) (GATO, 2012). A equipa técnica do protocolo do RSI é constituída por oito técnicas de áreas complementares, nomeadamente: Serviço Social, Educação Comunitária e Psicologia Clínica e seis ajudantes de Ação Direta que efetuam atendimento sistemático, diagnóstico social, visitas domiciliárias, acompanhamento psicossocial, elaboração e acompanhamento dos Planos de Inserção, bem como a articulação com outras entidades envolvidas direta ou indiretamente nos processos de inserção (GATO, 2012).

3. A perspetiva dos beneficiários ciganos relativamente ao RSI

A maioria dos beneficiários entrevistados diz-se pobre, nunca tendo conhecido outro modo de vida. Tendo a pobreza sido uma constante no percurso destas pessoas, também a prevêem para o seu futuro, pois não têm expetativas positivas, nem para si, nem para os seus filhos.

“Olha sou pobre porque tenho a noite e o dia e não tenho nada, quero jogar a mão a qualquer coisinha. Pois ´atão´?”

(Coelho, 54 anos)

“‘Pôs’ ‘ê’ já, ‘ê’ já nasci assim, os ‘mês’ pais e os ‘mês’ irmãos ‘n㒠‘dexaram’ nada, ‘n㒠é?”

(Reis, 44 anos)

“Acho que sou pobre porque às vezes quero comprar uma coisa e não tenho. Às vezes preciso comprar algumas coisas prós moços, os moços querem aquela, aquele brinquedo e não tenho dinheiro para comprar aquele brinquedo, querem comprar um, uma roupa, um sapato como deve ser, oh pá, em tudo coisas para a casa faz-me falta em tudo.”

(Ivone, 22 anos)

“Sou uma mulher pobre, porque não tenho dinheiro como os outros têm… porque vivemos só do rendimento.”

(Esperança, 34 anos)

Quando interrogados sobre a “utilidade” do RSI, todos referiram que este é apenas “uma ajuda”, principalmente para as necessidades básicas como os medicamentos ou a comida para os filhos. A maioria é beneficiária da prestação de RSI há muito tempo e requereram-na, manifestamente, por falta de outros recursos.

“(O RSI serve) para dar aos pobres, que têm falta, para dar de comer aos moços, pra queles que não trabalham.”

(Ivone, 22 anos)

Mas os próprios beneficiários mostram-se algo céticos relativamente às reais capacidades do RSI no combate à pobreza. Este subsídio, dizem, “não tira ninguém da pobreza”, mas ajuda a melhorar algumas coisas, principalmente “a combater a fome”. Ser beneficiário, segundo os próprios, não muda a vida de uma pessoa, apenas ajuda nalguns aspetos e cria algumas oportunidades, como a de frequentar o sistema de ensino. Alguns acham mesmo que vão receber o RSI durante muitos anos, porque não encontram trabalho, porque não têm uma casa com as condições mínimas ou ainda porque não vislumbram modo algum de saírem da pobreza. Outros, no entanto, têm a clara noção de que viver da prestação não constitui um bom futuro para os filhos, nem para a sua autoestima.

“Eu acho que (o RSI) foi criado para combater a pobreza. Porque eu penso que isto não é para vida toda, eu penso que foi uma ajuda que o Estado deu às pessoas para sair da pobreza.”

(Maria, 29 anos)

“É uma ajuda económica. Mas ao receber o rendimento mínimo sinto-me inútil. (…) Eu quero que os meus filhos vivam a vida de cigano, mas não quero que eles sejam pobres e vivam do rendimento, porque isto não é vida para ninguém.”

(Fátima, 28 anos)

Tal como muitos outros aspetos relacionados com os seus modos de vida, as atitudes dos ciganos perante o trabalho parecem estar a mudar rapidamente. A enorme valorização do trabalho por contra própria e da autonomia, as atividades económicas fora das regras e ritmos da produção capitalista que têm sido constatadas noutras investigações (Magano e Silva, 2002) parecem estar a esbater-se, pelo menos no que diz respeito aos ciganos do Algarve. Talvez por isso, os ciganos com quem falámos tendem a atribuir mais importância ao emprego propriamente dito, seja ele de que tipo for, do que aos cursos de formação profissional ou à frequência do ensino regular que lhes são impostos nos Contratos de Inserção.

“Mandaram-me fazer essas competências básicas, eu tenho o sétimo não acabado, e eu disse lá à senhora: ‘ouça, eu não vou andar de cavalo para burro, arranjem-me pra eu fazer o nono ano e eu venho’, mas a senhora entendeu que assim não devia de ser. (…) Eu disse ‘doutora para quê eu ir pra uma formação dessa se depois eu nem sequer vou desfrutar disso? Vocês deviam de fazer formações, cursos, qualquer coisa mas depois, olha, nem que seja estagiar um tempo’...”

(Fátima, 28 anos)

Com efeito, a maioria dos beneficiários ciganos, depois de terminadas as ações de formação a que foi obrigada contratualmente, não conseguiu trabalho e permaneceu na situação em que estava, o que naturalmente os leva a desvalorizar estas atividades. O sentido de compromisso e progresso que deveria estar presente nos Contratos de Inserção, na prática não se verifica porque o processo de inserção social é bloqueado pelo próprio mercado de emprego. Alguns beneficiários relataram, que aquando da assinatura do Contrato de Inserção, não lhes foi pedida qualquer opinião e que as obrigações lhes tinham sido impostas pelos técnicos. Estas situações levaram, nalguns casos, ao cancelamento da prestação por quebra de contrato, pois as pessoas sentiram-se controladas e obrigadas a fazer coisas que não queriam. Naturalmente a importância dada ao cumprimento das obrigações diminui quando a prestação cessa ou é suspensa ou quando o seu valor baixa.

“Cortaram (o RSI). Eu nunca fui saber, mas penso que elas propuseram-me uma formação, mas eu não quis porque achei que não tinha o direito de ir porque já que só recebia só cinquenta euros. Tudo bem, era para aprender, mas era a minha maneira se calhar de manifestar contra o (pouco) dinheiro que me estavam a dar, então eu não quis ir e penso que fosse por isso que me tivessem cortado.”

(Fátima, 28 anos)

“Era a escola para fazer a quarta classe, que eu já tenho, e era ir à escola de noite e ir à escola (formação profissional) durante o dia. E eu disse ‘ou venho à noite ou venho durante o dia’. E elas ‘não, você tem que fazer estas coisas’ e eu: ‘então não vou’. Foi assim que eu disse e acabou (o RSI foi cancelado). Tinha o meu direito e elas obrigaram-me a fazer essas coisas e eu disse: ‘não vou. Ou vou à noite ou vou durante o dia’. Porque se fosse um trabalho durante o dia tudo bem. Eu posso exigir qual é que eu quero.”

(Carlos, 42 anos)

Como que a confirmar toda a literatura atual sobre os comportamentos de racismo que quotidianamente atingem os ciganos portugueses (Bastos, Correia e Rodrigues, 2007; Marques, 2007; Mendes, 2012), a maioria dos entrevistados afirmou explicitamente que já se sentiram discriminados na procura de trabalho, no acesso à habitação e nos serviços públicos, não apenas por serem ciganos, mas também por serem ciganos beneficiários do RSI. Na área do emprego, segundo a experiência dos beneficiários, a maior parte dos patrões não tem qualquer interesse em ter empregados ciganos. Muitas vezes dizem-lhes que a vaga já foi preenchida ou inventam requisitos que, à partida, sabem que o candidato não possui.

“Malta cigana para trabalhar? Eles chegam lá veem que é ciganos mandam embora. Tem acontecido isso com a gente.”

(Esperança, 34 anos)

“O meu marido recebeu uma carta do fundo de desemprego para ir a um trabalho, ali nas bombas ao pé do aeroporto. Quando chegou lá, o patrão viu que ele era cigano e disse que já não precisava.”

(Antónia, 37 anos)

“(Fiquei) mesmo triste foi no ‘chinocas’ (loja de chineses). Eu à procura de trabalho e ele disse-me: ‘Não!’. E eu perguntei-lhe: ‘Então não, porquê?’. E ele diz-me: ‘Tu cigana’.”

(Maria, 29 anos)

“A vida que nós temos, uma vida de pobres e as pessoas sem ser a etnia cigana, encaram (os ciganos como) pessoas diferentes, porque não temos acesso a trabalhos nenhuns. Mesmo que o cigano que tenha toda a razão, eles conseguem tirar sempre a razão às pessoas, porque não nos consideram ser Portugueses como eles pensam. Ou somos uns bichos? Isto é uma vida, é uma coisa que nós temos, quando nascemos já vemos logo com esse selo, com essa sina, somos pobres uma vida inteira.”

(Sr. Carlos, 42 anos)

Os serviços de saúde, como o hospital e os centros de saúde são referenciados como os locais onde os ciganos beneficiários do RSI se sentem mais discriminados, principalmente pelos funcionários.

“Olha, há dias eu fui ao hospital e o meu tio, estava lá uma senhora a atender e ela disse-me assim, apontou-me o dedo: ‘Um dia tu vais-te a ver, tu vais ter que trabalhar para pagar isto tudo que tá aqui’. E não sei quê não sei que mais e eu disse ‘Oh minha senhora acalme-se, não me grite assim porque eu não estou a gritar consigo’. É assim, elas vêem a gente como uma ameaça à sociedade: eu (funcionária) estou a trabalhar estou a descontar para ti. Não é? E cada vez que uma pessoa pensa isso, contagia as outras todas e às vezes não nos dão mais entrada por causa disso.”

(Maria, 29 anos)

Estas pessoas sentem-se vítimas de preconceitos em quase todos os serviços, como nos correios, quando vão levantar a prestação pecuniária do RSI, ou na Segurança Social, quando o vão requerer. Até mesmo nos espaços públicos, como nos cafés, experimentam o sentimento de serem atendidos de forma diferente dos outros clientes.

“Quando vou buscar o cheque, fica logo toda a gente a olhar e a dizer ‘Lá vai ela buscar o dinheiro. Eu ando a trabalhar para ela não fazer nada’.”

(Antónia, 37 anos)

Outro dos temas mais problemáticos na relação do RSI com os ciganos prende- se com a conciliação dos deveres a que ficam obrigados através dos Programas de Inserção e as suas tradições culturais ou aquilo que dizem ser a “lei cigana”. Trata-se de uma situação tensional e ambígua, na qual, por um lado está a submissão ao Estado para receber algum dinheiro e, por outro lado, o desejo de preservação da cultura e da identidade. As situações mais problemáticas estão relacionadas, como é sabido, com a obrigatoriedade da permanência das raparigas ciganas na escola depois da puberdade. Tal permanência fora da vigilância familiar poderia fazer perigar a sua “honra” e, assim, pôr em risco a possibilidade de um valorizado casamento intraétnico. Foi o caso de Maria, a quem o pai proibiu a frequência na escola, o que provocou revolta na beneficiária. O facto de a sua escolaridade ser baixa não lhe permitiu o acesso ao mercado de trabalho, obrigando-a a ser dependente da família e do subsídio. Por outro lado, Maria revê neste apoio dado pelo RSI a possibilidade de voltar a estudar, para vir a adquirir mais competências e, por conseguinte, encontrar trabalho e contrariar as tradições do grupo.

“Eu culpo sempre o meu pai porque ele não me deixou ir para a escola não é? Não tou a dizer que o Estado é o que tem que me sustentar… Porque quem sabe se fosse feito (o RSI) há mais tempo já ele me tinha deixado estudar portanto, ser pobre foi opção do meu pai, não é? Porque não nos deixou ter futuro, ter melhores condições de vida. (…) Acho que com o que eles (Segurança Social) tão a fazer agora, a (possibilitar) tirar o nono ano, (…). Por exemplo, na FAGAR (empresa municipal) se eu tiver o nono ano já consigo setecentos euros não é? É muito melhor do que duzentos euros.”

(Maria, 29 anos)

A “virtude” da mulher cigana é um dos valores mais protegidos (Casa-Nova, 2009), pois é dela que depende a possibilidade da endogamia e, por seu turno, é desta que depende, em grande parte, a manutenção da identidade étnica. Trata-se de defender a “honra familiar” e a manutenção da boa imagem das raparigas para quando estas forem pedidas em casamento. Mas também há quem não desvalorize as vantagens da escolaridade ou de outro tipo de aprendizagens com mulheres não ciganas, embora realçando a importância de preservar certos traços culturais, principalmente no que respeita às raparigas.

“Sobre isso tenho dois pontos de vista, uma pela etnia e outro pela Lei (do RSI). Nós somos cidadãos normais temos que respeitar as nossas leis portuguesas, não é? Se eu sou cigano e respeito, eu acho que tinha que haver uma coisa em que o Estado também tinha que respeitar as nossas tradições. Porque é muito bonito, sim senhora, uma cigana andar a estudar, saber ler, escrever, ter um curso se for o caso, mas também é bonito um dia mais tarde, a minha filha casar e nunca ser discriminada pelo marido e pela sogra principalmente.”

(Fátima, 28 anos)

Por outras palavras, as famílias ciganas afirmam querer continuar a preservar aquilo a que chamam as suas “leis”, embora haja quem defenda claramente que se estas acompanhassem os tempos atuais isso poderia ser um fator de facilitador de uma maior aproximação e compreensão entre ciganos e não ciganos.

“Vou-lhe dizer uma coisa: eu não concordo com nenhumas decisões dessas nossas leis (tradições ciganas), porque muitas coisas são horríveis, não têm sentimento nenhum, porque já estamos num tempo muito avançado. (Se acabassem) era conveniente, porque havia mais ligação entre a etnia cigana e as pessoas sem ser ciganas.”

(Carlos, 42 anos)

4. A perspetiva dos técnicos sociais

As opiniões dos técnicos relativamente ao modo como os ciganos vivem a situação de subsidiariedade são variadas, dependendo da relação que têm com a medida, do grau de envolvimento de cada um deles e da proximidade com os beneficiários. A aplicação do RSI é vista como positiva, principalmente na educação e no emprego. As ações possibilitam novas experiências de vida e, muitas vezes, mudanças com consequências satisfatórias, apesar de serem observáveis apenas a longo prazo. Contudo, na perspetiva de alguns técnicos, os beneficiários ciganos demonstram alguma resistência no que diz respeito ao seu processo de “inserção”, o que, de algum modo, atualiza a ideia de que a integração preconizada pelas políticas públicas não é exatamente a mesma que os atores sociais desejam.

“Eles, a meu ver, não a vêm como provisória e também não têm assim muitas razões para isso. É uma medida que acaba por ser mais ou menos definitiva, não é definitiva porque basta eles não cumprirem uma parte do acordo que é suspenso. Não é? É quase como uma obrigação do Estado, que o Estado tem para com eles. (…) Penso que na maior parte das vezes o que eles pretendem é o lado pecuniário, nem tanto o lado que tenha a ver com o processo de integração. Portanto, a partir do momento em que se diga que sim, que foi aceite, o resto fica de lado. O que interessa é que o dinheiro venha ao fim do mês.”

(Orlando, Técnico de IPSS)

Das experiências relatadas, sobressaem dois exemplos: o facto de este subsídio ser, com frequência, visto pelos beneficiários menos como uma via de saída da pobreza e mais como uma recompensa pelo “bom comportamento social” das pessoas ciganas; a história da atribuição de RSI a um jovem casal ter sido percebida como uma espécie de prenda de casamento.

“Isto já é um ordenado para eles. (…) Por exemplo, achei engraçado (quando um beneficiário cigano) veio dizer-me ‘olha eu quero tirar o meu filho do agregado!’. – ‘Então mas porquê?’, – ‘Porque ele vai casar e depois quer requerer o RSI’. É quase como se fosse uma prenda de casamento do Estado, ele ia casar, não ia trabalhar, mas ia receber o Rendimento Social de Inserção. (…) Muitos deles até têm usado o dinheiro em termos de comércio, comércio dos cavalos.”

(Teresa, Técnica da Segurança Social)

Segundo os técnicos entrevistados, a crise económica que se vive no país veio prejudicar ainda mais este grupo étnico, agravando as situações de pobreza e de discriminação, principalmente na procura de emprego e/ou de uma casa.

“Eu acho que são um bode expiatório (…) quando se fala de Rendimento Social de Inserção fala-se obviamente dos ciganos. E se bem que eles sejam uma minoria dos beneficiários a nível nacional. A principal virtude (do RSI) é a questão económica. É óbvio que quando falamos em ciganos, existem dois problemas, um é a pobreza, em que a maior parte está afetada pela pobreza e depois a questão da discriminação étnica não é? Portanto eles vivem um duplo drama a nível social. O que eu acho é que essa questão, a nível económico o RSI veio dar algum contributo, a nível da integração propriamente dita não se vêem assim grandes resultados.”

(Orlando, 36 anos)

“Há ciganos com grandes sonhos, que gostavam de ser, ter a sua profissão, muitos veem-nos bater à porta a dizer que, realmente, para as ofertas de emprego que lhes chegam, nunca são selecionados (…) e nós temos dois fatores, o fator crise e o fator discriminação.”

(Alice, 39 anos)

Durante as entrevistas, os técnicos tiveram ocasião de explicitar os principais motivos para as penalizações nas prestações nos beneficiários ciganos. Estas prendem- se, normalmente, com o abandono escolar por parte das crianças do sexo feminino. O facto de a legislação não prever a diferença cultural coloca os beneficiários ciganos em igualdade de tratamento e de cumprimento do Programa de Inserção relativamente aos outros cidadãos.

“Os motivos de suspensão são os mesmos para todo e qualquer tipo de beneficiário, no entanto, nas famílias ciganas os motivos de suspensão concentram-se na frequência escolar das jovens adolescentes, uma vez que estes estão em idade de casar para esta cultura. (…) A etnia cigana chega aos 12, 13 anos e casam (…) automaticamente quando essas jovens se casam deixam de estar num agregado familiar e têm que passar para outro. Na teoria, na prática não pode ser: é menor e pela lei portuguesa (…) continuam a ficar nesse agregado. Mandamo-las para a escola, e começam então com as tais regrazinhas: – ‘O meu marido não me deixa ir para a escola’. – ‘Então se não te deixa ir para a escola sabes quais são as regras, não vais para a escola és (…) admoestada’. Não é penalizada logo, existem admoestações até chegar à penalização.”

(Alice, 39 anos)

Embora reconhecendo que o RSI pode contribuir, de alguma forma, para a mudança das atitudes e dos modos de vida, os técnicos acabam por assumir o défice no acompanhamento das famílias, devido, principalmente, ao elevado número de processos com que têm de lidar. A falta de recursos humanos e materiais provoca deficiências no trabalho executado, o que dificulta o efetivo combate à pobreza.

“O que acontece é que não existem respostas, aí é um grande obstáculo para conseguires trabalhar a inserção, por muito que tu tentes. (…) O que acontece muitas vezes é que o acompanhamento que existe não é o acompanhamento que é realmente necessário, é insuficiente.”

(Mariana, Técnica de IPSS)

“Eu acho que falhou logo no início, à partida com a questão da fiscalização e depois também a falta de alguma criatividade para criar alternativas a esse rendimento.”

(Orlando, Técnico de IPSS)

Há famílias que são acompanhadas por instituições sociais durante muitos anos, mas os processos de mudança são muito lentos. Segundo os técnicos, o RSI permite efetivamente mudar comportamentos, autonomizar famílias e contribuir para a sua integração social.

“Muitos ciganos têm vindo a alterar os seus modos de vida (…) as famílias ciganas que acompanho no que respeita ao RSI, já não são nómadas, nem residem em barracas. Têm as suas casas de alvenaria, carros e respetiva carta de condução, os filhos menores frequentam o ensino e eles próprios frequentam o ensino noturno, têm a sua inscrição ativa no IEFP e marcam presença com regularidade.”

(Alice, Técnica de IPSS)

Considerações finais

O RSI é visto, frequentemente, como um subsídio cuja atribuição tem maior incidência entre os ciganos, o que não passa de mais um preconceito relativamente ao grupo étnico com o maior défice de cidadania em Portugal e um dos mais vulneráveis à pobreza. Nos testemunhos que recolhemos, os problemas mais focados pelos beneficiários ciganos de RSI foram, por um lado, a falta de emprego e, por outro, a discriminação sentida em vários domínios da vida e por vários motivos, inclusive, pelo facto de receberem esta prestação social.
Atualmente o mercado de trabalho tornou-se mais competitivo e exigente e está mais fechado aos grupos estigmatizados. Ao contrário da perceção popular e de alguma literatura sociológica sobre este tema, muitos ciganos manifestam um forte interesse em trabalhar por conta de outrem, mas poucos são os empregadores que os contratam e essa recusa é vivida como uma manifestação da discriminação étnica. Para muitas famílias, o ingresso na economia paralela constitui a única forma de superar uma forte escassez de recursos, uma vez que, na maior parte das vezes, o dinheiro proveniente do RSI não é suficiente para suprir as necessidades quotidianas. Mas os biscates e os trabalhos sazonais a que se dedicam como forma de complementar o RSI – no caso Algarvio, a recolha de sucata, a apanha da amêijoa e do caracol, a respiga, a venda ambulante destes produtos – apenas reforçam um pouco a economia familiar e, ao contrário do que se possa pensar, também não lhes permitem organizar uma vida decente.
Na perspetiva dos técnicos sociais, o RSI nem sempre cumpre os objetivos para que foi concebido. Estes referem que os beneficiários fazem, com frequência, uma má gestão do dinheiro e nem sempre satisfazem em primeiro lugar as suas necessidades básicas. É um facto que alguns beneficiários se acomodam e se tornam dependentes do subsídio, ao acreditarem que este vai durar muitos anos e ao não construírem quaisquer expectativas de futuro sem ele. Esta atitude de acomodação e dependência dificulta claramente a saída da pobreza, mas não é, de modo algum, generalizada entre os ciganos.
É bom relembrar que, quando um beneficiário (cigano ou não) recebe ajuda através do RSI, fica sujeito a determinados deveres definidos nos Programas de Inserção que são assinados, no início do processo, por todos os intervenientes. Mas, na verdade, a maioria dos entrevistados durante a investigação que aqui apresentámos, não tinha sido informada e não sabia ao certo o que constava no seu próprio Programa de Inserção.
Esta medida tem permitido, sem dúvida, alcançar resultados positivos na área da educação e da formação profissional, nomeadamente através da obrigatoriedade da frequência das crianças e dos adultos em ações de ensino ou de formação. Efetivamente, para alguns beneficiários, a frequência da escola ou das formações constituiu um benefício que lhes permitiu adquirir escolaridade e conhecimentos que podem ser uma vantagem para a inserção profissional. Todavia, o problema principal reside no facto de a maioria dos cursos de formação profissional oferecidos pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional não corresponderem às necessidades, às expectativas ou às motivações dos beneficiários ciganos (MSST, 2002).
A imposição, nos Programas de Inserção, da frequência escolar para as raparigas ciganas é muitas vezes motivo de discussão entre os técnicos e as famílias, que acham esta obrigação desajustada às expectativas e aos valores culturais que defendem para as suas filhas. A necessidade de receber o apoio social para garantir a sobrevivência da família entra em conflito com as questões da “honra” e da imagem da rapariga cigana, situação que divide as opiniões dos beneficiários acerca do cumprimento da obrigação das raparigas frequentarem a escola depois da puberdade. Apesar de se registarem algumas mudanças de atitude no sentido da igualdade de género – embora lentas e pouco percetíveis pela sociedade em geral –, algumas famílias persistem em tentar preservar as tradições neste campo.
No que respeita ao cumprimento do Programa de Inserção, os técnicos têm a perceção de que há beneficiários que cumprem as ações que foram programadas apenas para não perderem o apoio social, mas que há também aqueles que querem ter sucesso no desenvolvimento das ações, principalmente na área da educação e formação, porque adquirem competências que lhes facilitarão a inserção social.
Apesar de se identificarem claramente como cidadãos portugueses, os ciganos reconhecem que não têm as mesmas oportunidades e o mesmo tratamento que os restantes cidadãos, principalmente se forem beneficiários do RSI. A discriminação é vivida pelos ciganos nos vários domínios da vida social, mas é principalmente relatada na procura de emprego e nos serviços públicos (Marques, 2007; Mendes, 2012). Os técnicos têm clara a perceção de que os beneficiários ciganos são vítimas de preconceitos por receberem a prestação social e discriminados na procura de emprego, o que prejudica a sua inserção social. Nestas situações, alguns técnicos assumem a frustração relativamente ao seu trabalho e as dificuldades que sentem em trabalhar com grupos vulneráveis.
Pelas constatações anteriores pode-se afirmar que o combate à pobreza das famílias ciganas portuguesas se tem revelado particularmente difícil. São manifestamente poucas as respostas para a sua inserção social e profissional, como poucos são os casos de sucesso na inserção social, se os avaliarmos em todas as dimensões. Porém, este subsídio contribuiu indubitavelmente para atenuar as consequências das situações de pobreza absoluta de muitas famílias e minimizar um pouco o muito sofrimento quotidiano.

 

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Artigo recebido a 23 de abril de 2014. Publicação aprovada a 3 de setembro de 2014.

 

Notas

* Sofia Rebelo Santos. Licenciada e Mestre em Educação Social pela Universidade do Algarve (Faro, Portugal). E-mail: sofiaurora@hotmail.com

** João Filipe Marques (autor de correspondência). Doutor em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, França). Investigador no Centro de Estudos sobre o Espaço e as Organizações (CIEO) e Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve (Faro, Portugal). Endereço de correspondência: Faculdade de Economia da Universidade do Algarve, Edifício 9, Campus de Gambelas, 8005-139 Faro, Portugal. E-mail: jfmarq@ualg.pt

1 Este artigo retoma algumas ideias da comunicação, com o mesmo título, apresentada no V Congresso Português de Antropologia que teve lugar na Universidade de Trás os Montes e Alto Douro, em Vila Real, de 8 a 11 de setembro de 2013.

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