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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.33  Porto jun. 2017

https://doi.org/10.21747/08723419/soc33a2 

ARTIGOS

 

Os primórdios da economia social em Portugal. Contributos de Ramón de la Sagra (I Parte)

 

Jordi Estivill

Universidade de Barcelona (Barcelona, Espanha), Aulestia i pijoan 24. Barcelona 08012, Espanha. Email: jordi_estivill@hotmail.com

Endereço de correspondência

 

 

“La multitudine delle publicazioni giornalere in fatto de economia sociale che fannosi in tutto il globo incivilito prova che restano tuttavia a chiarire ed a conoscere molti reconditi rapporti e principi efficiente” Matteo de Augustinis, 1837

 


RESUMO

Muitos aspetos da história da economia social estão ainda por descobrir. Este artigo examina a sua emergência em Portugal a partir da análise de uma revista portuense e de peças publicadas do tratado de Ramon de la Sagra em 1840. Esta constatação revela que o conceito foi utilizado por autores portugueses da época e pode indiciar uma crítica à economia política dominante, alicerçada em propostas de reforma das instituições de caridade, por via de organizações de trabalhadores, como as cooperativas, as associações e sociedades de ajuda mútua. Em qualquer caso, as três escolas de pensamento, liberal, socialista, cristã, que caracterizam a história da economia social no século XIX, também ocorrem em Portugal. Palavras-chave: economia social; história, movimento operário.

Palavras-chave: economia social; história, movimento operário.

 


ABSTRACT

No all the aspects of the history uf social economy are well known. This paper analyses the beguinings of portuguese social economy history. In 1840 a Porto review have published parts of the Ramon de la Sagra book on sociial economy. This concept was used by diferents portuguese authors. For them it covered a critical aproach on mainstream polítical economy, proposals on the reform of measures and institucions of social welfare and it was the expression of the workers organisations like the cooperatives, friendly societies, and other associations. The main schools of thinking in XIX century, liberals, socialists and cristians, were also presents on portuguese literature.

Keywords: social economy; history; labour movement.

 


RESUMÉ

En partie, l'historie de l'économie sociale reste à découvrir. Cet article analyse ses débuts au Portugal. En 1840, une revue de Porto publiait déjá des chapitres de l'ouvrage de Ramon de la Sagra sur l'économie sociale, où l'on montre que ce concept a été utilisé par plusieurs auteurs portugais. Pour eux, il pouvait avoir un sens critique de l'économie politique dominante, une proposition de réforme des mesures et institutions de bienfaisance et aussi il pouvait être l'expression des organizations ouvrières notament des coopératives, le monde associatif et les sociétés mutuelles de secours. Les trois écoles de pensée, libérales, socialistes et chrétiennes, caractéristiques de l'histoire de l'économie sociale du XIX siècle se retrouvent aussi au Portugal.

Mots-clés: économie sociale; histoire; mouvement des travailleurs.

 


RESUMÉN

Muchos aspectos de la historia de la economia social estan por descobrir. Este articulo analiza sus inicios en Portugal. A partir del descubrimiento que una revista portuense ya publicò partes del tratado de Ramon de la Sagra de 1840 sobre la economia social, se pone en evidencia que el concepto va a ser uilizado por diferentes autores portugueses. Para ellos podia tenir el sentido de una critica a la economia política dominante, una propuesta de reforma de las medidas e instituciones de beneficència y podia ser la expresión de las organizaciones obreras como las cooperatives, el mundo asociativo y las sociedades de socorros mutuos. En cualquier caso las tres escuelas de pensamiento, liberal, socialista, cristiana, que caracterizan la historia de la economia social en el siglo diecinueve tambien se dan en Portugal.

Palabras claves: economia social; historia; movimento operário.

 


A economia social e solidária como sujeito histórico visível. Quatro hipóteses.

Tinha razão o advogado e economista napolitano Matteo de Augustinis, em 1837, quando afirmava no seu livro “Istituzioni di economía sociale” publicado pela “Tipografia di Porcelli” que existiam muitos espaços recônditos da economia social por clarificar e conhecer. Se isto era verdade nos inícios de século XIX, continua a sê- lo na atualidade, embora a produção de conhecimento sobre a economia social tenha progredido bastante. Mas a sua própria história não é muito conhecida. O propósito do nosso artigo1 é precisamente o de dar a conhecer alguns aspetos sobre os primórdios da economia social em Portugal. A primeira hipótese é que para que a categoria de economia social e solidária se torne significativa para o estudo das Ciências Sociais, é necessário que avance nos debates e nos factos da realidade atual. A segunda hipótese é que se deve mostrar e se deve verificar que estas categorias fornecem um valor interpretativo adicional. Caso contrário, serão apenas analisadas em função das suas famílias internas, ou seja, a partir do cooperativismo, associativismo e mutualismo. A terceira hipótese é consequência das duas primeiras. Em resultado da recente (re) conceptualização da economia social, e ainda mais da economia solidária, é difícil estas hipóteses serem usadas como categorias para estudar o passado. É conhecido que a história se constrói a partir dos parâmetros do presente. Mas, deste ponto de vista, pode-se ser razoavelmente otimista e formular a quarta hipótese: à medida que avancem as experiências e a presença teórica da economia social e, consequentemente, da economia solidária, mais fácil será fazer com que a sua história global seja menos opaca. Chegou então o momento de questionar essa opacidade em Portugal?

Algumas notas prévias sobre o ressurgimento da economia social e solidária em Portugal

Para responder à pergunta anterior é preciso identificar quando e como se produziu o resurgimento da economia social em Portugal e que trajeto fez. Não é fácil. Por um lado, porque, se bem que haja um primeiro florescimento na utilização do conceito de economia social que se estende desde o século XIX até ao Salazarismo2, este neutraliza a noção. Num contexto de controlo e repressão, o uso da noção de economia social perde-se ou fica reduzido a círculos muito pequenos.
Quase todos os trabalhos que incluem a análise histórica da economia social no país remetem a sua longa e rica tradição para o século XII dando como exemplos as mercearias, as confrarias leigas e eclesiásticas, as bolsas de comércio, as companhias das naus, as mútuas de gado, os celeiros comuns, as casas de misericórdia, os grémios, os montepios (casas de penhoras), a casa dos vinte e quatro, para não referir o conjunto de iniciativas mútuas, associativas e cooperativas do século XIX. A riqueza e diversidade deste itinerário experimental justificam a dificuldade de submetê-lo a uma única concepção. A maioria são respostas coletivas de tipo socioeconómico, umas mais institucionalizadas, outras menos, dirigidas a necessidades urgentes e estruturais da população.
A presença da Igreja Católica, o peso do sector público e sua raiz predominantemente rural, ainda que em alguns casos ligada ao comércio externo, seriam algumas das caraterísticas específicas da evolução histórica da economia social portuguesa (Quintão, 2011). Muito provavelmente, há outros fatores específicos, tais como o desenvolvimento peculiar de capitalismo, que traz consigo uma forte dependência externa, o mercado interno fraco e a existência de uma rede de pequenas iniciativas, mais ou menos informais, de cariz artesanal, familiar e local, os longos períodos de poder despótico e a persistência de uma sociedade providência onde a família e as mulheres desempenham um papel fundamental, o atraso, as faltas e a seletividade da protecção social pública, bem como a oscilação entre uma personalidade fortemente individualista, ao lado de uma considerável capacidade de organização coletiva.
Por outro lado, nos últimos trinta anos, têm surgido muitas denominações (Quintão, 2004) (terceiro setor, terceiro sistema, setor sem fins lucrativos, empresas sociais, organizações voluntárias, organizações não governamentais, economia social, economia comunitária, economia solidária). O termo de economia social não conseguiu neutralizar nem eliminar os outros e, por isso, é forçado a definir os seus contornos e identidade face a eles. Também existem organizações que se enquadram claramente nas definições mais convencionais e juridicamente formalizadas (cooperativas, mutualidades, fundações), mas outras, cuja importância não se pode negar, escapam- lhes e têm um estatuto jurídico específico (Instituições Particulares de Solidariedade Social, IPSS, e Misericórdias) que não se encontra em outros países. Têm igualmente grande importância as redes mais ou menos informais de solidariedade, a economia doméstica, as iniciativas sem formalização legal e até mesmo uma parte da economia subterrânea ou do desenvolvimento local, que estão para além das definições mais rígidas. Finalmente, lembre-se que o ressurgimento do conceito de economia social coincide com um processo de «normalização» democrático e uma recessão económica e consequente crise, bem como com o debate sobre um inacabado Estado de bem-estar e o papel da sociedade civil.
De qualquer forma, é inegável que a partir dos anos oitenta do século passado, o conceito de economia social tem sido cada vez mais utilizado na sociedade portuguesa. Emerge e consolida-se na vida académica. O número de teses, pesquisas, publicações e artigos aumenta (Paiva, 2001). Penetra nos meios de comunicação. Para a defesa dos seus interesses e sua representação, criam-se plataformas e redes como, por exemplo, a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES) e o Conselho Nacional de Economia Social (CNES). Manifesta-se nos mais recentes regulamentos e leis, e é uma denominação aceite por uma parte das organizações do terceiro setor (Hespanha, 2000), ainda que este último seja o conceito mais usado.
Namorado (2006) alude a que o ressurgimento da noção de economia social em Portugal faz-se na mesma altura que em França e em alguns países europeus, nomeadamente Bélgica e Espanha, onde nos anos oitenta do século passado se vinha consolidando. Há que ter em conta a influência das instâncias europeias e dos estudos que se realizavam na época. Os diferentes congressos sobre a economia social que se celebraram, organizados pelas presidências rotativas da União Europeia, também contribuíram para a irradiação deste conceito. Em Portugal, organizaram-se dois importantes congressos deste tipo: um em 1992 (Costa, 1993) e outro em 20003. Em trabalho anterior, Namorado (1988) insinuava que, ao contrário do que se passou em França, não houve no país um processo de confluência entre os diferentes ramos da economia social, e que eram um ato voluntarista de determinadas pessoas que são autores de livros4 onde utilizam esta terminologia, já em meados da década de 1980.

Na estimulante e optimista obra, intitulada “As cooperativas e a economia social”, publicada em 1985, Ferreira da Costa faz uma revisão histórica da economia social, em que enumera um conjunto de experiências que marcaram o seu longo e rico itinerário. Para ele, o cooperativismo, ou melhor, o espírito cooperativo e associativo seria a espinha dorsal de uma economia social baseada nas pessoas, na sua participacão alternativa, na procura de um estado federado ou de uma nação cooperativa, como António Sérgio tinha defendido.
Esta é uma leitura da economia social que resulta da adoção da perspectiva do cooperativismo. Mas também pode-se fazer uma leitura semelhante a partir do mutualismo, que se inicia um pouco mais cedo. De facto, no seu IV Congresso Nacional, celebrado em 1984, Victor Melícias, o então Presidente do Montepio Geral, apresenta uma comunicacão intitulada “Mutualismo e Economia Social: Doutrina e Promoção”. Na sexta conclusão deste congresso, propõe-se “apoiar a constituição e o funcionamento de um grupo de ligação com a Economia Social” (Rosendo, 1996).

Também aqui se evidenciou a incorporação europeia e internacional do mutualismo português. No mesmo ano, uma conferência confirma as relações entre o mutualismo europeu e francês com o português e, em 1987, o V Congresso Nacional acontece em conjunto com o Primeiro Seminário Europeu de Reciprocidade e Economia Social. No congresso é lançada a ideia de uma Carta Portuguesa da Economia Social, homóloga à europeia, que reúna mutualismo, cooperativismo e associativismo. O seminário reuniu as principais autoridades dos organismos mutualistas belgas, franceses e espanhóis.
Apesar destes avanços, 15 anos mais tarde, quando Franco (2004) desenvolve em Portugal a investigação internacional lançada pela Universidade John Hopkins teve de enfrentar as diferenças de sensibilidades entre a economia social e o terceiro setor (Nunes et al., 2001). Afirma que a primeira vez que o termo terceiro setor é usado é em 2001. De acordo com entrevistas a 20 “personalidades”, o termo terceiro setor é preferido e a noção de economia social é qualificada de polissémica e confusa (Nunes et al., 2001). Tal posição contrasta com as declarações do autor do prólogo, Paulo Pedroso, então Ministro do Trabalho, que defende que o declínio da economia social é um fantasma do passado e apela à sua afirmação e promoção.
No mesmo ano, em 1997, a Rede Europeia Anti-Pobreza Portugal (EAPN), inicia um grupo de trabalho no âmbito de um protocolo que iria promover a economia social na perspectiva do mercado social de emprego. Convoca, em 2003, uma mesa redonda com cinco especialistas com o objetivo de definir a relação entre a economia social e o terceiro setor. Os seus resultados são publicados (EAPN, 2004), fornecendo um panorama interessante em que se nota uma certa inclinação para o conceito de economia social e a afirmação do conceito de economia solidária.
Esta nova perspetiva terminológica e conceptual também havia nascido em finais da década de 80 “nas vizinhanças” (Amaro, 2009) da economia social, no seio de um projeto de um programa europeu de luta contra a pobreza nos Açores. Ressalte- se que, como sucedeu em muitas outras iniciativas em Portugal, tratava-se de romper com as pesadas e importantes tradições de beneficiência e caridade individual, de encontrar novos caminhos económicos para a inserção laboral, de criação de emprego e de desenvolvimento local, valorizando o património natural e cultural. Também é digno de nota que se começam a auto-classificar estas pequenas experiências como economia solidária, não por efeito de cópia, ou por influência especial do que estava acontecendo em paralelo em outras partes do mundo, como em França ou no Brasil. Hespanha e Santos (2016) destacam como as noções de economia social e economia solidária seguiram caminhos diferentes em Portugal. Enquanto a primeira tem vindo a tomar um importante reconhecimento institucional, a segunda manteve-se invisível e só nos últimos tempos assume algum relevo.
O renascimento de abordagens teóricas e práticas da economia social e solidária ocorreram pelo menos há trinta anos. Embora seja um processo em consolidação, permite que a partir deste presente se possa começar a questionar o passado, cujas respostas perspetivem um sentido que permita enfrentar melhor o futuro.

A Revista Litteraria do Porto na ascenção do clima liberal

Em 1840, e esta é a novidade, a Revista Litteraria do Porto, um “ periodico de litteratura, philosophia, viagens, sciencias e bellas artes”, como era chamada, publicada no Porto”, decidiu traduzir e publicar no seu XXV número, do volume 5, o primeiro capítulo das lições de economia social que Ramón de la Sagra tinha publicado em Madrid naquele ano (Sagra, 1840). O facto de ser uma revista do Porto que, tão prematuramente, utiliza este conceito levanta um conjunto de questões. Quais eram as suas caraterísticas? Em que contexto era publicada? Que significado tinha publicar parte das lições da economia social? Foi um ato isolado ou corresponde a uma tendência emergente? Em que medida iniciou uma escola de pensamento que teria continuidade nos tratados de economia política e em outras publicações? Que relação existia entre o autor espanhol e o grupo português que publicava a revista? Que proximidade teriam? Quem era Ramón de la Sagra? Como se situava cultural e ideologicamente? Pode-se supor que se em determinado momento se decide traduzir e divulgar um capítulo de um livro publicado noutro país é porque há interesse no assunto e porque o que é relatado tem sentido, quer para o editor, quer para o público-alvo. Não parece que esta decisão tenha sido uma coincidência ou uma mera curiosidade ou um modismo para traduzir obras do resto da Península. Pode-se deduzir que havia um interesse específico dado que, três anos depois de se ter publicado este capítulo, repetem a decisão e divulgam no seu 10º volume, o 7º capítulo do Tratado de Sagra (1840).
A revista ainda que de forma intermitente, publicava, numa das suas secções, notícias sobre a vida política francesa e inglesa e também informações sobre a evolução política no país vizinho, veiculando uma posição justificadamente crítica e desconfiada. Por outro lado, não se pode dizer que ela tivesse uma vocação hispânica ou uma dedicação particular em publicar o que era discutido no Estado espanhol. Em várias ocasiões, denunciavam as medidas e as tentativas dos governantes vizinhos que subestimam Portugal e que, inclusive, mostra desejos expansionistas ancestrais e exerce invasões territoriais específicas. Na Revista Litteraria do Porto há um artigo longo, fundamentado e relevante sobre o uso do Douro, em que destaca o perigo do uso deste rio por interesses espanhóis para transportar mercadorias e especialmente os vinhos que poderiam fazer concorrência à produção das vinícolas portuenses. A revista publicou o discurso integral que o deputado Agostinho Silveira Pinto fez na Câmara dos Deputados a 13 de março de 1841 sobre a questão dos vinhos do Alto Douro5 , o qual é significativo, não só porque ele era o animador e diretor da revista Litteraria e a vai influenciar, mas porque resume a história produtiva e exportadora da viticultura da bacia do Douro, situando-a na história económica do país, denuncia as operações britânicas que dominam a exportação e armazenagem de vinhos, explica o papel da Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro, incentiva a sua renovação enquanto organismo intermediário entre os produtores e os comerciantes, afirma o papel da agricultura na economia portuguesa, sem menosprezar a produção industrial e defende a diversificação de mercados estrangeiros e de maior qualidade, como defesa de vinhos do Porto contra a concorrência dos vinhos espanhóis (Jerez) e franceses.
Nesta linha, é ainda interessante notar que, no debate sobre o livre comércio e protecionismo, em geral, a Revista Litteraria do Porto se inclina em favor do último ponto de vista, o que corresponde à posição da maioria no Portugal daquela década. Maria de Fátima Bonifácio afirma o seguinte: “Nos anos trinta e quarenta do século passado, independentemente da coloração política dos governos, o protecionismo converteu-se numa espécie de dogma da política económica externa, partilhada não só por dirigentes e pela elite económica, como pela opinião geral do país” (Bonifácio, 1991)6 .
Em Portugal, desde o início do século XIX, que se viviam anos muito agitados e o Porto tinha um protagonismo especial nesta efervescência, dado que a cidade estava em expansão demográfica e urbanística e se tinha tornado um dos focos anti-absolutista. De facto, como sustenta António Sérgio, um dos expoentes máximos da economia cooperativa e social em Portugal: “as ideias inovadoras, propagadas pela Revolução Francesa, eram introduzidas sobretudo pelos comerciantes estrangeiros, e alarmavam os governantes” (Sérgio, 1972: 127). Os amantes da igualdade, liberdade e fraternidade, que tinham conhecido estas ideias nos vários exílios causados pela agitada vida política, pugnavam contra aqueles que António Sérgio identificava como defensores das posições que denominava de comunitaristas. De “1834-1850”, precisamente os anos em que se publicou a revista, “veem-se motins e contra-motins, revoluções e contra- revoluções, que denunciam a dificuldade de converter em estrutura particularista, de pujante iniciativa na metrópole, uma estrutura heterônima e comunitária, consolidada em quatro séculos de história ultramarina” (Sérgio, 1972:137).

É uma interpretação daquela época. Seguramente há outras. Mas é inegável que a Revista Litteraria é publicada em 1838, num contexto difícil: 1) alguns anos após as invasões espanholas, francesas e inglesas e da permanente ameaça, que se repete em 1847; 2) a ida do rei e sua corte para o Brasil, um país independente desde 1822; 3) as guerras civis e uma grande dificuldade em construir um Estado e as suas infra-estruturas dado o défice crónico nas finanças e a ampliação da dívida pública; 4) em que as três formulações diferentes da Constituição entre 1834 e 1851; 5) os contínuos golpes e contra golpes que enfrentaram cartistas e setembristas, monárquicos, constitucionalistas e liberais e republicanos de variadas tendências.
A revista é publicada numas circunstâncias complexas e de crescente influência do clima liberal e de instabilidade política e social que iria continuar com a revolta popular apelidada de Maria da Fonte e a Insurreição da Patuleia (Ferreira, 2002). Os conflitos vão manter-se até aos anos 50 do século XIX, marcados pela estabilização do designado período da Regeneração. Se o liberalismo cresceu nos primeiros cinquenta anos do século XIX, os liberais assumiram diversas “vestes” em Portugal. Distinguiam-se entre moderados e radicais. Apesar das suas diferenças, estas poderiam ser intensificadas ou desvanecidas de acordo com os períodos e temas, sejam as relações com a Inglaterra, o défice e a dívida pública, ou a defesa de uma possível industrialização.
Para entender melhor este clima liberal oscilante pode recorrer-se a um autor, Pinheiro Ferreira, que é um dos que mais se aproxima da economia social. Filósofo e jurista, membro da Congregação dos Oratórios, foi perseguido pela Inquisição e foi exilado. Acompanhou o rei na sua estadia no Brasil e regressou a Portugal, onde foi ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros (1821-1823). Autor de muitos livros e artigos sobre diversos aspetos (Paim, 2010), viveu muito tempo em França, tendo sido sugerido que influenciou Proudhon (Costa, 1985). Pinheiro Ferreira, quatro anos antes da Revista Litteraria publicar o artigo de Sagra, revela, em português, um “Projeto de um Banco de Seguros e Socorros Mútuos”, publicado em Paris (Ferreira, 1836). Tratam-se de 82 artigos detalhados de um regulamento para criar bancos a nível local e regional, integrados por proprietários agrícolas e por um sistema de seguros contra acidentes. Adverte, contudo, para a dificuldade em generalizar um espírito associativo na agricultura.
Em 1840, este autor publicou “ O Projeto de Associação para o Melhoramento da Sorte das Classes lndustriosas”. Nesta interessante proposta associativa, para alguns até certo ponto avant la lettre proudhoniana, tenta integrar os diferentes atores locais produtivos. Através de 214 itens, pretende criar as condições para “todas as pessoas que quiserem poderem assegurar mutuamente um auxílio fraterno para casos de acidentes naturais, maldade dos homens ou abuso de poder, que causem efeitos nocivos inevitáveis”. Organiza todos os sectores de atividade económica, de uma forma que se assemelham aos grémios (agricultura, artes mecânicas, químicas, artes plásticas, ciência geral, os serviços estatais...). Ele propõe que estas associações regidas pelo voto em assembleias, forneceriam trabalho, fariam empréstimos, ajudariam idosos e doentes, definiriam preços e salários, criariam escolas, casas de saúde, lares de idosos e de aposentadoria, maternidade, atividades de lazer e recriação,… a partir das contribuições de um terço dos meios de subsistência dos seus membros. O autor argumenta que este sistema de reforma social poderia operar de forma independente dos governos e guiado pelos princípios de justiça distributiva e de moral universal.
Pinheiro Ferreira colaborou com a versátil revista Pantología (Guedes e Santos, 2002) publicada em Lisboa nos anos 1844-1845. Escreveu vários artigos. No número 14, sob o título “Os sistemas absolutos de economia política”, mostra-se favorável a associar a agricultura e a indústria e critica os apoiantes do desenvolvimento de um único setor. Num artigo sobre “O prémio do dinheiro”, publicado no número 19 desta revista, afirma-se: “não será sem propósito que consideramos os seus efeitos sobre a economia social e a sua perniciosa influência contra a prosperidade da nação”. O alto preço do dinheiro prejudicaria uma economia social preocupada com o trabalho, com a situação miserável das populações e com a evolução do emprego.
Como mencionado, naquela época, Pinheiro Ferreira parecia ser um dos economistas mais próximos da economia social7 . Não só porque publicava vários trabalhos defendendo a criação de bancos rurais (1844) e seguros mútuos (1836) e de assistência, mas porque no seu tratado de economia política publicado em francês (1840) e inglês (1839) adverte para o perigo de transformar os homens em “máquinas instintivas”. Este era um tema recorrente da literatura sociológica e económica mais ou menos utópica da época. Neste tratado, escrito de uma forma pedagógica, o autor faz uma revisão dos conceitos chave da economia. Propõe que a justiça seja considerada acima da propriedade e que a economia respeite os interesses de diferentes atores, confiando no mercado e evidenciando os efeitos negativos da tributação excessiva. A sua obra mostra uma erudição considerável, materializada no domínio do castelhano, francês, inglês e alemão e no conhecimento do pensamento económico. De facto, as suas notas bibliográficas fornecem um panorama geral, organizado por autores e países, onde se desenvolvia a economia política do seu tempo: Smith, Ricardo, Malthus, Godwin, Rau, Say, Blanqui, Dunoyer, Droz, Villeneuve-Bergemont, Florez Estrada e Ward. Pinheiro Ferreira usa o conceito de mutualidade e associações, mas não o de economia social. Cita Saint-Simon, Fourier, Owen, ainda que para expressar o seu desacordo com eles por “falta de bom senso” 8 .
Cabe questionar se a falta de estatuto de economia social, ou a sua subalternidade para a maioria dos autores de economia política da epoca, se repete em Portugal?

Economia política e economia social

Desde o início do século XIX, e mesmo antes, que se estavam a editar manuais e tratados (Almodovar e Cardoso, 1998) sobre a economia política em Portugal. Alguns eram notas das aulas lecionadas nas poucas cadeiras de economia que tinham sido criadas nas Faculdades de Direito das universidades (Coimbra e Lisboa) ou politécnicos. Outros não estavam ligados a estruturas de ensino. A tarefa a realizar seria a de ver até que ponto nestes manuais estavam presentes os conceitos e perspetivas da economia social e porque não de economia solidária. A maior parte desta produção foi claramente influenciada pelo pensamento da economia clássica e do liberalismo. Havia que analisar os trabalhos pioneiros de Solano Constâncio, Silva Lisboa, Rodrigues de Brito, Ferreira Borges, Acúrsio das Neves, Adrião Pereira Forjaz de Sampaio, Oliveira Marreca e o referido Pinheiro Ferreira. Talvez se encontrassem temas e pontos de vista que se relacionam com a economia social. É o caso de um Solano Constâncio que, próximo das propostas socialistas, critica os economistas clássicos e defende o cooperativismo (Mesquita, 2009). Já no século XX, e numa outra geração, no tratado sobre economia política de Tamagnini Barbosa (1916), católico e seguidor de Le Play, torna-se a encontrar uma defesa do cooperativismo, que mais tarde continuaria noutros livros (Barbosa, 1930). Outro seguidor de Le Play, Marnoco e Sousa publica, primeiro sobre a economia social (Barbosa, 1900) e, posteriormente, um dedicado à economia política (Barbosa, 1916).
Deixamos assim assinalada uma linha de pesquisa que seria interessante estudar, mas que não cabe nos objectivos deste artigo. Basta-nos aqui enunciar um outro aspeto: a existência de uma continuidade das publicações, nas quais formalmente se cita a economia social em Portugal.

A emergência dos anos cinquenta do século XIX e a continuidade no uso do conceito da economia social

As duas palavras juntas -“economia social”- não eram desconhecidas no Portugal de meados do século XIX. Um exemplo disso é fornecido pelo «Jornal do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas», publicado em Lisboa. De facto, nos números 6,7 e 9 do ano 1853, há uma secção intitulada Economia Social em que se tratam questões relacionadas com economia doméstica e se dão informações sobre experiências associativas em França.
Anteriormente, em 1841, António Alves Martins (1841), futuro bispo de Viseu, tinha publicado um livro no Porto, em cujo título aparece a designação de Economia Social. Nele apresentava as teorias do jurista e economista italiano Chitti, que tornou público, alguns anos antes, um tratado de economia social em Bruxelas, e do polémico teólogo católico francês Lamennais que as tinha vulgarizado. Ferreira da Costa (1989) aprecia esta contribuição: «Defendia uma espécie do socialismo societário ou, por outras palavras, uma sociedade mais justa baseada apenas em associações, sociedades mútuas e cooperativas, onde a ajuda mútua reforçasse conjuntos esforços de povos desprotegidos» (28-48). Podem-se colocar algumas dúvidas sobre o socialismo de Alves Martins, um franciscano, que antes de ser bispo era um agitado e radical político liberal que se veio a tornar deputado e ministro (Branco, 1889). Nem Chitti nem Lamennais eram estritamente socialistas, embora defendessem uma nova organização da sociedade fundada na conjugação de esforços coletivos. Curiosamente, o livro de Martins (1844) é mais um tratado de economia monetária em que defende a introdução do papel moeda e dos novos sistemas de crédito. Nele, encontra-se uma proposta de decreto-lei com 15 artigos para a criação de um Banco da Lavoura para os viticultores do Douro. O autor argumenta que o aumento da circulação monetária e do capital facilita o comércio, baixa os juros e dá possibilidades de acesso ao crédito de pessoas que não o tinham, dando-lhes a oportunidade de criar o seu próprio trabalho, ter os seus próprios produtos e «... diminuir progressivamente o aflitivo e perigoso contraste entre a excessiva opulência e a miséria extrema» (Martins, 1844: 46).
Outro exemplo é o livro recomendável de Moses Bensabat Amzalak, publicado em 1928, em que são apresentados uma série de biografias de pensadores económicos portugueses. O autor utiliza o conceito de economia social a que a vários deles se referem e, em particular, Sousa Brandão. Na verdade, este engenheiro militar que conheceu, no seu exílio em Paris, a revolução de 1848, foi um socialista ativo, fundador com Lopes de Mendonça da revista « O eco dos operários9 e da associação para a melhoria das classes trabalhadoras, escreveu em 1857 um livro sobre a economia social (Brandão, 1857) que gira em torno do trabalho e enfatiza a associação cooperativa de trabalhadores.

O Tratado de Economia Social de Sousa Brandão

Vale a pena reter este interessante tratado de 144 páginas que representa uma clara ruptura com as análises anteriores. Na sua introdução, já tinha anunciado que, a partir de sua simpatia com a classe operária, o seu objectivo fundamental era esclarecer um conjunto de equívocos que circulavam a propósito do crédito, capital, moeda, impostos, distribuição e acumulação de riqueza. Sousa Brandão situa-se numa perspectiva dialética, considerando que as desigualdades estão na origem da resistência dos homens contra os seus opressores na busca da liberdade. Neste percurso, que vai da escravidão à Idade Média até aos nossos dias, a livre associação e o trabalho são as condições de emancipação: “Pelo poderoso incentivo que a associacão dá ao trabalho como princípio de produção e de consumo, que são os objetos principais da economia, daremos a este conjunto de ideias o título de economia social” (Sousa Brandão:VIII). Esta definição completa-se com a identificação de um processo em que primeiro se constituem as associações, algumas procedentes dos antigos grémios, mais tarde, as sociedades de socorros mútuos e, posteriormente, as sociedades produtivas, bem como com o desenvolvimento de um corpo científico que se fundamenta em Saint- Simon, Fourier, Pierre le Roux, Cabet, Proudhon, Pinheiro Ferreira, único português que cita, e Louis Blanc e Bastiat.
Sousa Brandão reconhece que a economia social vem da economia política e da afirmação de Adam Smith de que o valor é baseado no trabalho. Ao mesmo tempo, critica a economia política, porque aceita os costumes como leis naturais e descreve os factos sem os querer modificar, concentrando-se no comércio e não na produção, justificando o aluguer proprietário e os juros, consagrando o princípio da utilidade sem ter em conta as necessidades e conduz a uma competência fonte de monopólios, fraude, risco de fracasso de muitos estabelecimentos e, especialmente, precariedade e diminuição salarial. Face a esta concepção, ergue-se a economia social que os socialistas defendem. Termina a sua longa introdução com as seguintes palavras: «a missão da economia política acabou. O furor por ela extinguiu-se. O valor dos seus princípios perdeu-se. A aplicação das suas regras não tem resultados [...]. Essa é a razão porque os socialistas tomaram a missão de reformistas e se propuseram destruir os abusos económicos, refazendo a ciência, e assentando-a sobre o trabalho, princípio original da produção, e origem de todas as riquezas” (Brandão, 1857).
Logicamente, ele dedica o primeiro capítulo ao trabalho definido como esforço humano transformador que dá valor aos produtos e que é distinto do preço fixado pelo mercado. O trabalho é a fonte igualitária de todos os direitos e não a propriedade. A cada um, segundo o seu trabalho, afirma, o que o afasta dos economistas e da economia política dominantes. Face a estes, a economia social tem de se estabelecer como uma ciência da produção e do consumo associativos livres, que estuda as condições sociais para reformá-las, estabelecendo o princípio da justiça. E apesar do «horror causado por este nome», o autor define-se como socialista para distinguir-se da velha economia que defende a sujeição do trabalhador ao capital, a divisão da sociedade em duas classes e quer que «a reconstrução da sociedade parta de cima, dos governos, da centralização, quando os socialistas querem que parta de baixo, da simples associação para o trabalho» (Brandão, 1857: 12). Nas suas preocupações pedagógicas, desenha um círculo que liga trabalho-produção-consumo, em que no centro está a vida social, esta concebida como um movimento social e continua estabelecendo diálogos imaginários em que o homem é o início e o fim da transformação da natureza. Natureza que com o esforço humano alimenta a humanidade e sem ele seria improdutiva e impotente. Dedica várias páginas para explicar essas relações e para refutar a tese de Bastiat, para quem a terra e os agentes naturais têm por si mesmos funções úteis. Não deixa de ser interessante esta preocupação «ecológica» do autor que, apesar de ultrapassada em muitas das suas afirmações, o liga hoje à economia solidária atual. Admira a capacidade de auto-organização natural dos animais: «Quando os animais silvestres estão livres da ação dos homens parece que são mais inteligentes, mais vivos, e mesmo mais laboriosos do que quando domesticados. Nao é difícil ver repúblicas de animais, proverem a sua sustentação com uma ordem e uma economia, que os podíamos dizer sabedores desta ciência” (Brandão, 1857: 43).
Citando Fourier, Considerant e Proudhon, o autor no segundo capítulo da obra fala da caça, pesca, agricultura e indústria extrativa. A gratuidade dos recursos naturais e sua incapacidade de transformar-se sem intervenção humana conduz, como consequência lógica, à afirmação da igualdade de direitos face à terra para todos os homens: o direito de consumir, guardar ou trocar os produtos fruto do seu trabalho.
No capítulo seguinte distingue duas dimensões. Uma refere-se ao trabalho intelectual ou especulativo, outra ao trabalho físico. É uma distinção clássica e convencional, sendo contudo interessante o relevo que dá ideia de complementaridade entre estas duas dimensões e à necessidade de serem cultivadas juntas ao longo da vida. Imagina uma unidade de trabalho, resultado das duas dimensões que deveria servir para medir o valor das suas manifestações e enfatiza a formação aberta a todos sem monopólios ou exclusividades. Outra preocupação é explicar o trabalho industrial e mecanização. Formula explicações interessantes porque, em primeiro lugar, situa Portugal face à introdução do vapor e das máquinas-ferramentas alimentadas por esta fonte de energia. Em segundo lugar, porque sendo engenheiro, fornece informações pormenorizadas sobre a utilização de materiais e fontes de energia, o papel dos motores e a produção têxtil. Em terceiro lugar, porque introduz a classificação adotada para a produção industrial na Exposição Universal de Paris de 1855. E em quarto lugar, porque critica a noção de capital e os direitos que dela derivam para defender que o capital é uma acumulação de trabalho de várias gerações. E, portanto, o problema vem da apropriação por poucos de um capital que a lei protege e do facto dos operários não poderem acumular, uma vez que os seus parcos salários são gastos para consumo. Se assim não fosse, os trabalhadores poderiam associar-se, ter o que ele chama de capital social, e criar e gerir a indústria.

Sousa Brandão não parece um cristão convencional e muito menos um católico estrito senso. Em comparação com outros autores do seu tempo, as suas referências a um poder divino são mínimas e nunca fala dos ensinamentos da Igreja Católica. Porém, também não se define contra eles. Os seus ideólogos inimigos são outros: especuladores e exploradores que não reconhecem o valor do trabalho, os que impedem a criação de associações livres de consumidores e produtores; os académicos que critica, destacando a inutilidade dos ensinamentos e das teorias erradas introduzidas pelos economistas. O autor é um socialista - assim se define a si próprio-, que defende uma economia social libertadora ao serviço do trabalho. Este está no centro das suas reflexões. Conhece e cita os autores do socialismo francês do seu tempo, de quem escolhe os pensamentos que lhe permitem construir as suas posições. Usa várias vezes o termo comunista para o rejeitar embora os argumentos que usa, sejam, neste caso, bastante confusos.
Seria Brandão um socialista utópico? Até certo ponto era. Porque, por um lado, as suas propostas são contrárias às ideias dominantes da época, marcam um horizonte distante e raramente explica como mudar as condições sociais, económicas e políticas em prol da transição para o modelo de sociedade que apregoa. Alguns comentários negativos sobre a política e o mercado especulativo deixam antever a sua posição societária. Dois dos seus raciocínios estratégicos seriam talvez a aliança num mesmo sentido, entre aqueles que têm a força e aqueles que trabalham com inteligência e a capacidade associativa livre popular. Por outro lado, não aspira a convencer moralmente os poderosos. Dirige-se às bases, tentando ser tão pedagógico quanto possível, com quadros e sinopses, com argumentos bem construídos, às vezes repetitivos. A sua formação em engenharia, que criticou de forma intensa, e a sua curiosidade intelectual, permite que use muito dos conhecimentos técnicos e científicos que circulavam na época. O resultado foi um tratado de economia social bem construído e focado no trabalho. É uma pena que o autor em apreço não tivesse publicado os outros volumes que prometeu e que, por agora, não são conhecidos. Segundo ele próprio afirma, o segundo volume era dirigido às associações e à avaliação da produção e do consumo e o terceiro volume seria destinado à aplicação dos princípios expostos no primeiro volume.
Não deixa de ser interessante transcrever a sua própria descrição de como elabora o livro:

“Se se reputar que um esforço phisico equivale a um sufrimiento ou um trabalho a um esforço intellectual; podemos ter já a esperança de que os trabalhos da intelligencia antes de manifestadas hão de ser todos incluídos no preço porque se paga a manifestação, e ninguém poderá negar a justiça d'essa paga. Nós mesmos que escrevemos isto a que chamamos livro, tratado, ensaio, folheto, tudo o que quiserem, podemos exigir que juntamente com este tranbalho nos paguem o tempo consumido a estudar a ciência militar ou a engenharia civil, ramos a que nos dedicamos nos tempos mais esperançosos? Não por certo que não. Qualquer que seja o tipo de escripto, o desprezo mesmo, o que temos direito a esperar é a remuneração de uma parte do tempo consumido a estudar os economistas e os socialistas. Nove anos que dedicamos às engenharias, se não foram de todo, foram na maior parte perdidos e inúteis a este escripto.” (Brandão, 1857: 43)

Algumas mudanças nas práticas e no discurso

Os quatro exemplos anteriores e muito especialmente o de Sousa Brandão, mostram que na década de cinquenta do século XIX10 não só o conceito de economia social estava a começar a ser usado, mas de que algo estava a mudar nas mentalidades e práticas populares das grandes cidades portuguesas. Do ponto de vista do discurso deve referir-se o precursor Solano (1995) que, em Inglaterra e em França, publica vários estudos que criticam os axiomas e autores da economia clássica e do modelo Inglês do desenvolvimento capitalista e onde defende a ciência social, a economia cooperativa e a justiça distributiva, por oposição à economia política. Se algumas das caraterísticas da economia solidária são a democracia económica e a vontade de transformação social, então deve notar-se que alguns dos seus textos se aproximam destes conteúdos.
Mesquita (2009), na sua interessante revisão do pensamento socialista, cita o médico Manuel dos Santos Cruz como a voz no deserto, que começa a encher-se com as consequências da revolta de 1848 em França. Castilho, que publicou nos Açores em 1849, seria uma dessas vozes que juntam propostas socialistas com um cristianismo social. Depois, afirmou-se uma geração de pensadores (Joaquim Marcelino de Matos, Custódio José Vieira, José Maria Casal Ribeiro e António Pedro Lopes de Mendonça), onde sobressaem Henriques Nogueira e Sousa Brandão, que, de certa forma, se articulam com os inícios das organizações sociais operárias e os seus meios de comunicação.
Do ponto de vista da prática e de acordo com o excelente artigo de Pereira (1981), os anos cinquenta do século XIX foram cruciais para o surgimento do movimento operário em Portugal e especialmente no Porto, num momento de uma certa estabilidade institucional, expansão económica e crescente industrialização. Segundo ele, as principais caraterísticas desta emergência foram: 1) a continuidade dos mecanismos das antigas corporações e grémios, apesar de proíbidos em 1834, e a defesa dos ofícios, 2) a rápida ascensão das mútuas, apesar das dificuldades internas (participação, finanças, gestão, ...) e externas (pressão dos empregadores, do governo, da igreja), 3) o seu caráter interclassista e a participação dos trabalhadores mais qualificados situados entre os artesãos, a empresa familiar e o assalariamento (tipógrafos, alfaiates, sapateiros, carpinteiros), 4) a cobertura de situações de doença, invalidez, reforma, viuvez, orfandade, funeral ... com base nas próprias quotizações, 5) os esforços de editores refletidos no Jornal dos Operários, a Voz do Operário, ouJornal dos Artistas, a Emancipação, o Defensor dos Artistas, em que se defende o associativismo. E, por fim, estas associações tinham funções de proteção, sindicais, de emprego, formulação de petições e reinvindicações. É muito provável que em tais publicações e em outras dos libertários e socialistas portugueses da época se encontrem referências à economia social.

Já foi referido que os autores franceses, que podemos incluir nos parâmetros do socialismo utópico, eram conhecidos por alguns líderes portugueses. Não se exagere nem no seu conhecimento nem na sua irradiação. Vários autores apontam que, dada a fraca industrialização até aos anos cinquenta, o movimento operário tinha pouca força e localizava-se apenas nas grandes cidades. Portanto, é muito provável que as suas expressões organizativas e políticas fossem muito dependentes dos escassos momentos de aberturas democráticas (por exemplo a vitória liberal de 1834), como sucedia em Espanha (Estivill, 2015), e dos setores radicais e liberais republicanos (Oliveira,1973).
De acordo com o censo de 1878, em Portugal, a taxa de analfabetismo era 84,4% e baixava para 64% nas cidades. Assim, apenas as minorias urbanas ricas e qualificadas sabiam ler. Destes, poucos compreendiam outras línguas. A outra língua de cultura era o francês. Na sua análise da burguesia portuense, Cruz afirma que as obras dos enciclopedistas circulavam clandestinamente e que, por volta de 1870, se traduziu Victor Hugo, Balzac, Zola e Eugène Sue (Cruz, 1999). O que não deixou de gerar algumas contradições entre jovens intelectuais, socialistas raivosos que queriam escrever para o povo e cujo público eram as classes médias cultas e abastadas (Ramos, 1992: 489). Reis observa, de forma otimista, que as tiragens dos jornais não iam além de 1000 exemplares e acrescenta: «dimensões modestas das tiragens, por níveis de acesso à educação e à cultura « (Reis, 1993: 69). Além disso, só em meados do século XIX se começaram a traduzir textos estrangeiros das ciências sociais11 . Quer dizer que, presumivelmente, nesses momentos iniciais, a penetração das ideias socialistas ocorreu em alguns círculos intelectuais e profissionais e entre os que foram exilados.

Iniciativas associativas populares

Quem melhor descreve as diferentes fórmulas de associações no século XIX é, sem dúvida, Costa Goodolfim. Propõe um conjunto de informações chave que depois são repetidas por muitos autores. As suas obras merecem ser destacadas. Este autor, que trabalhou toda a sua vida na Companhia de Gás em Lisboa, participou activamente nos Congressos de Paris sobre a Previdência Social de 1878, 1883 e 1889, onde foi eleito vice-presidente. Foi um defensor convicto e ativo do associativismo. Tal reflete-se no seu livro principal publicado em 1876, o qual se divide em duas partes. Na primeira, argumenta em favor de associações que podem lidar com a doença, a deficiência, a educação, a usura, a criação de bancos populares, cooperativas de crédito, farmácias cooperativas, sociedades de construção e cooperativas de produção e de consumo. Cita e mostra-se conhecedor das experiências de Rochdale, familistério de Guise de Godin, das cooperativas de Barcelona. Dedica a segunda parte da obra, a uma análise quantitativa e qualitativa da evolução da associativismo português de 1838 a 1876, distinguindo entre territórios e setores. Qualifica a Associação Protetora do Trabalho Nacional (1872 como primeira sociedade da resistência e como primeira cooperativa de produção de metal, a Indústria Social de 1873.
Costa Goodolfim, prolífico sociólogo participante que cita a economia social e lhe dedica um livro12 , apresenta os casos iniciais de Montepio do Senhor Jesus do Bonfim (1807), Jesus, Maria e José (1822), da Sociedade dos Artistas Lisbonenses13 (1838), cujas funções eram apoiar os sócios idosos e com deficiência. Este tipo de sociedades de socorros mútuos foram-se autonomizando gradualmente das perspetivas religiosas das antigas irmandades, embora mantendo os nomes dos seus santos e o seu simbolismo. Costa Goodolfim afirma que já na década de 40 do século XIX, existiam 260 associações que reuniam cerca de 40.000 membros. Pode ser um pouco otimista, mas é inegável que após uns hesitantes momentos iniciais, o crescimento associativo e mutualista foi considerável. Em 1856-1857, como resultado de epidemias de cólera e febre amarela, o governo fez um inventário que fixou em 85 o seu número e em cerca de 30.000 os seus membros (Rodrigues, 1980). Para 1876, Costa Goodolfim aponta para 300 associações de socorros mútuos com cerca de 70.000 membros. Este crescimento ocorria também no sul do país. No Alentejo, entre 1856 e 1870, foram fundadas cerca de 20 associações (Fonseca, 2013).
Este processo de expansão do movimento associativo, e particularmente das mutualidades, também acontece noutros países, na mesma época. Por exemplo, no estado espanhol, os números oficiais contavam com 664 mútuas para 1887 e um volume de 1.200 (Castillo, 1994) para as estimadas. Em 1890, existiam só em Barcelona 1.138 e mais de 558 na província (Solà, 1994). Em Itália, em 1867, as sociedades mútuas totalizavam 573, em 1870 eram cerca de 900 e em 1885, 4.772 com 781.000 membros (Querubin, 1977). Em França (Gueslin, 1987), as sociedades de socorros mútuos passaram de 2.348 no ano de 1852 para 6.139 em 1869, e na Suíça (Bonvin el al, 2011), em 1880, já havia 1.085 caixas mútuas de operários. É muito provável que essa expansão fosse determinada por uma capacidade de auto- organização para afrontar as múltiplas necessidades, dada a inexistência de proteção social pública e a escassez de uma oferta privada de seguros que as pessoas com baixos salários pudessem pagar.
A criação da Associação dos Operários de Lisboa, em 1850, viria a marcar o início de uma nova etapa. Dois anos mais tarde, funda-se a Associação Tipográfica Lisbonense e Artes Correlativas e o Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas. Entre os seus fundadores estão Vieira da Silva, Sousa Brandão, Lopes de Mendonça e outros líderes que abraçavam ideais socialistas. Segundo parece, a primeira cooperativa foi a Fraternal dos Fabricantes de Tecidos e Artes Correlativas em 1858, embora a Associação do Trabalho dos Fabricantes de Seda, criada em 1852, tivesse intenções de copartilhar o trabalho existente. Mas, pelo que se sabe, a maior expansão do movimento cooperativo ocorreu nos anos setenta.
Uma hipótese possível para interpretar estes eventos, que ocorrem desde o início do século XIX até 1870, é estabelecer duas fases. A primeira é marcada pelo surgimento de associações de caráter mutualístico e assistencial e uma segunda em que se afirmam as posições mais cooperativas e reivindicativas, ainda que tenham sido também nesta fase criadas algumas organizações mútuas com cooperativas de consumo (Gallego, 2010). Mas para confirmar esta hipótese, faltam mais estudos específicos do período que vai dos anos 30 aos anos 70 do século XIX. Por agora, e pelo que se sabe, foram duas as caraterísticas do incipiente movimento operário português, que criou formas de organização da economia social. Uma, foi que, sob um pano de fundo da reivindicação associativa repleta de dificuldades, haveria uma miscelânea de posições, umas mais defensivas, outras mais ofensivas, nas quais se expressa o interesse em fazer face a necessidades materiais prementes com uma progressiva consciência de autonomia organizativa e propositiva. Esta mistura inicial de posições, essa versatilidade de funções, umas inscritas na esfera económica, outras na esfera sociopolítica, também se verifica nos mesmos anos, em outros países, como França (Laville, 2010) e Inglaterra com as “friendly societies”.
Por sua vez, a segunda caraterística, de amplitude ibérica, é conotada com um certo interclassismo e uma capacidade de articulação das respostas económicas com as dimensões sociais e culturais. Na verdade, ela está presente na fundação e desenvolvimento das organizações sociais e dos seus meios de expressão. Nestas organizações, constata-se uma presença de médicos, professores, funcionários, escritores, engenheiros, capelães e oficiais militares ao lado de trabalhadores mais ou menos qualificados.
É muito possível e até provável que, em alguns subúrbios e em alguns bairros centrais populares das grandes cidades, se pudessem encontrar nos círculos mais ou menos conspiratórios contra a velha ordem, em barbearias, cafés, bares e tertúlias sociais, pessoas de origem social diversa que partilhavam os ideais republicanos, laicos e, até certo ponto, emancipatórios, do ponto de vista social, político e cultural. Assim, podia-se tecer uma teia de encontros e relações entre aqueles que não concordavam com a ordem estabelecida. Um ponto da ligação ideológico deste mundo é sugerido por Lima dos Santos, quando ela diz, um pouco aventureiramente, que «o ataque à repressão e ao capitalismo competitivo que os socialistas utópicos desencadeiam liga- se ao protesto dos artistas românticos» (Santos, 1977).
Convém não exagerar nas articulações possíveis. Cruz (1999: 355), em seu estudo acima mencionado sobre a burguesia do Porto, mostra como se produz uma segmentação territorial na ocupação das ruas centrais da cidade e como os trabalhadores manuais de uma indústria de algodão, muito dispersa em pequenas oficinas e trabalho ao domícilio, se espalham pela periferia urbana. Sem ignorar as «ilhas», áreas pobres do centro da cidade e os arredores de transição rural. A autora também enfatiza a falta de mobilidade social vertical e as diferenciações sociais que se produziam nas festas e em atividades teatrais e líricas de que os portuenses eram aficionados (Cruz, 1999: 433-436).

De qualquer forma, Edgar Rodrigues, no seu livro O despertar operário em Portugal”, de 1980, dá algumas pistas que permitem destacar essas colaborações e articulações. Cita José Estevão, Andrade Corvo, Latino Coelho, Júlio Pimentel, Pereira de Carvalho, Ponte Horta Arantes e Lopes de Mendonça que se ofereceram para lecionar cursos gratuitos aos trabalhadores. Frequentemente, as Associações criavam bibliotecas, como a da Associação Tipográfica Lisbonense e Artes Correlativas que possuía 336 livros e 139 associados. Rodrigues defende que «Embora o seu forte, o móbil que unia operários, intelectuais, um general, donos de pequenas oficinas gráficas, fabricantes de papel, revisores e escritores públicos, fosse o mutualismo, alcançou méritos bem maiores. Deste alfobre saíram figuras que se vieram a destacar na questão social e na imprensa operária, tais como Ernesto da Silva, Brito Aranha, Silva Albuquerque e outros” (Rodrigues, 1980: 73).
Esta vocação pedagógica, mutualista e cultural também ocorre igualmente no Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, criado em 1852 e que dura até 1872 (Lázaro, 2014). Um ano mais tarde, já tinha 1.500 associados que em 1854 aumentavam para 2.114, os quais se agrupavam em 17 associações das três cidades mais importantes do país. No Jornal do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, que publicava 500 exemplares, como João Lázaro (2014: 81) mostra, e tal como proposto pelo Eco dos Operários, a ênfase é colocada na matriz associativa, independente do Estado, como um motor de emancipação social. Mas não se pode exagerar no acento auto-emancipatório do Centro, cujo caráter interclasista, reformista e, até certo ponto, paternalista, não oferece dúvidas, assim como o facto de muitos dos seus líderes acabarem por intervir na vida política, aderindo ao Partido Progressista, para mais tarde integrar-se nas fileiras do Partido Regenerador (Lázaro, 2014: 142).
O Centro organiza em 1865 o Congresso Social ou o “Congresso dasAssociações”, no qual se reúnem 71 associações, a maioria mutualistas e de Lisboa (Rosendo, 1996). Um ano mais tarde estabeleceu o seguinte programa: criar sociedades de socorros mútuos, difundir o ensino geral e técnico, organizar lares para crianças pobres e asilos para os mais velhos sem retaguarda, promover o aperfeiçoamento intelectual e moral dos trabalhadores, “estabelecer depósitos para recolher as matérias primas e de consumo das diferentes indústrias e bazares para dar extração aos produtos do seu fabrico, projectar por escrito discursos e os conhecimentos de economia industrial e doméstica, aperfeiçoar os métodos de trabalho, promovendo a introdução de maquinismos novos e os meios de remunerar os seus introdutores ou inventores”. Até que ponto este surpreendente e abrangente programa de governação, onde se juntam atividades sociais de ajuda mútua, de socorros, com as atividades económicas de produção e de consumo, pedagógicas e de inovação, é significativo das outras iniciativas sociais da época? Notavelmente, este texto mostra implicitamente as enormes necessidades que existiam e que se pretendiam que fossem resolvidas, ao mesmo tempo que implicava algum interclassismo e uma vocação cultural que era muito provavelmente impulsionada pelo setor intelectual. Aqui abre-se uma outra importante pista da pesquisa. Mesmo sabendo o tempo limitado que a classe operária tinha para si, era interessante analisar, por um lado, que iniciativas concretas de tipo coletivo existiam em locais de entretenimento, diversão e sociabilidade de bairro (concertos, cafés, teatros, bibliotecas, centros republicanos, casas de povo, grupos desportivos e turísticos, associações culturais populares, coros, bandas, filarmónicas, ranchos,...) e, por outro, qual foi a produção cultural literária popular (canções, romances, operetas, jogos, calendários, almanaques, lendas, brochuras, panfletos literários, panfletos humorísticos, histórias, poemas). No jornal mais radical “Eco dos Operários”, eram publicados poemas e informações sobre romances e alguns de seus colaboradores, por exemplo Gomes de Amorim, apresentavam-se como poetas- operários (Lázaro, 2014: 57-58).

Tudo indica que neste período de revolta literária e artística, iniciada pelo grupo de Coimbra, merecem destaque as Conferências de Lisboa de 1871, proíbidas pelo governo, onde Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Teófilo Braga criticam a decadência de Portugal e de Espanha, dominados pela monarquia, aristocracia e a Igreja Católica, e que não conseguem recuperar a perda do seu passado glorioso. O republicanismo e o socialismo, ainda que sejam mais perspetivados como ideais morais, aparecem para eles como a revolução cultural a prosseguir (Machado, 1986). Se na década de trinta do século XIX, Herculano se identificou como um dos membros mais ilustres da primeira era do romantismo, as Conferências de Lisboa, quarenta anos mais tarde, polarizam uma segunda geração que também se identifica com ele. Se Herculano (1844) acaba a sua vida aposentado e decepcionado com a vida política, mais trágico é o final de Antero de Quental que comete suicídio em frente ao mar nos Açores. Dois fins emblemáticos das dificuldades em realizar materialmente as esperanças românticas de Portugal. As palavras exultantes de Antero de Quental escritas em 1871, na esteira da sua explicação sobre a Internacional Socialista, parecem marcar uma nova etapa: “a grande obra suprema do século XIX: emancipar o trabalho, apagar de uma vez da face da terra a odiosa divisão de classes, fundindo-se todas numa só de trabalhadores livres e iguais, não ricos e pobres, senhores e servos, governantes e governados, capitalistas e operários, mas todos os Homens, debaixo mesmo do céu, com um trabalho justo e digno”.
Em qualquer caso, a economia social, como tal, teria um longo itinerário, com Alves Martins, Sousa Brandão, Herculano, Costa Goodolfim, Oliveira Martins, Marnoco e Sousa, Carneiro Pacheco, Perdigão e João Pinto da Costa Leite Lumbrale que culminaria com António Sérgio. Logicamente nem todos partilham das mesmas ideias. Alguns estão mais interessados nas cooperativas, outros nas associações de socorros mútuos e especialmente nos Montepios e Caixas Económicas. Alguns estão mais próximos ou fazem parte do movimento operário, outros pertencem à pequena burguesia ou camadas intermédias. Outros são cúmplices do poder ou confundem- se com ele, outros propõem alternativas para os modos de intervenção social. Para alguns, a economia social está ligada à economia doméstica. Para outros, é uma outra forma de conceber o sistema económico e o funcionamento da sociedade. Em qualquer caso, pode-se afirmar que se encontram entre os protagonistas da economia social em Portugal as três correntes principais que existem também nos outros países europeus: liberais, socialistas e católicos sociais.
Assim, pode-se argumentar que a Revista Litteraria foi pioneira em divulgar a economia social em Portugal, e que este primeiro gesto teve continuidade, embora o grupo que a apoiou e alguns dos seus conteúdos iniciais não se tivessem mantido. Através dos autores e exemplos assinalados fica uma pista para aqueles que queiram fazer um rastreamento de livros, boletins, revistas e outras publicações da academia, do movimento operário português e do associativismo popular, pesquisando sobre o uso da economia social.

 

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Endereço de correspondência:

Universidade de Barcelona (Barcelona, Espanha), Aulestia i pijoan 24. Barcelona 08012, Espanha. Email: jordi_estivill@hotmail.com

 

Artigo recebido em 23 junho de 2016. Publicação aprovada a 12 de janeiro de 2017.

 

Notas

1 O artigo é dividido em duas partes: a primeira, que corresponde ao presente texto, e a segunda que integrará o próximo número (XXXIV) da Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, de 2017. Nas citações mantêm-se o acordo ortográfico em vigor na altura da respectiva publicação. Agradeço os rigorosos esforços de tradução de Cristina Parente e a edição final de Mafalda Gomes. Destaco igualmento o trabalho dos funcionários das bibliotecas do Porto, Lisboa e Coimbra e o profissionalismo dos alfarrabistas dessas cidades.

2 A história do conjunto da economia social durante o Salazarismo está por realizar. De todo o modo existem análises parciais interessantes: Santos (2009); Coutinho (2003: 143-160); Silva (1995: 234-303); Rosendo (1996: 521-528); Ribeiro (2012); Garrido (2016: 191- 278).

3 A presidência portuguesa do ano 2000 foi especialmente ativa. Fechou os acordos da Cimeira de Lisboa, organizou um importante encontro em Almansil (v.Policies and instruments to fight poverty in the Europe- an Union: the garantee of a mínimum income. Almansil. Febrero 2000) e promoveu o congresso de Santa Maria da Feira com o título de Desenvolvimento local, cidadania e economia social. O numero 8/9 da revista Sociedade e Trabalho (2000) faz uma boa cobertura deste congresso.

4 Veja-se por exemplo Costa (1985); Rodrigues et al. (1989). Em 1998, o presidente da União das Mutuali- dades dizia: ”Irá aparecer em Portugal uma Confederação das Instituições que têm atividades de economia social” (Pestana et al. 1998:276).

5 Publicado na revista e impresso com a sua memória explicativa en Typographia da Revista, Porto, 1841.

6 Esta é também a opinião de Bastien (2009).

7 De ele, Rodrigues (1980: 70) diz que foi um “pensador altamente evoluído”. Também afirma que foi um seguidor de Fourier e Owen (Rodrigues: 1980: 95), o que me parece um pouco arriscado dadas as suas próprias afirmações.

8Não deixa de ser interessante a crítica que Pinheiro Ferreira faz a outros autores em Projecto de Associa- ção para o melhoramento da sorte das classes industriosas , (1840a: 10–12).

9 Esta revista seria, segundo Mesquita, uma das primeiras revistas socialistas em Portugal. Uma primeira série foi publicada semanalmente durante un ano desde abril de 1850. Uma segunda série foi publicada entre setembro e outubro de 1851. Ver Mesquita (2009).

10 Não parece que haja desacordo entre os diferentes historiadores portugueses para assinalar que esta década marca um ponto de inflexão. Por exemplo ver Bastien (2001).

11 As duas exceções conhecidas foram a tradução do Tratado da Riqueza das Nações de Smith em 1811 e o Catecismo Económico de Say em 1822.

12 Como por exemplo em Goodolfim (1889) ou Goodolfim (1900), Économie Sociale, Asssistance Publique au Portugal, Lisboa.

13 Esclareça-se que “artista” se refere a quem exerce uma arte ou ofício.

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