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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.40  Porto dez. 2020  Epub 06-Mar-2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soc40a2 

Artigos originais

Realidades do mundo do trabalho de uma equipa comunitária de suporte em cuidados paliativos e as suas implicações nos cuidados aos doentes em trajetórias de fim de vida

The world of work realities of a community palliative care support team and its implications for patients care at the end of life trajectories

Les réalités du monde du travail d'une équipe de soutien aux soins palliatifs communautaires et ses implications pour les soins aux patients en fin de vie

Las realidades del mundo laboral de un equipo de apoyo de cuidados paliativos comunitarios y sus implicaciones para el cuidado de los pacientes en las trayectorias del final de la vida

Tatiana Filipa Silva1 Mestre

Carlos Alberto da2 Silva

1Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade de Évora - CICS.NOVA.UÉvora

2Departamento de Sociologia da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora


RESUMO

Descortinar as leituras dos profissionais de saúde sobre as práticas de cuidar no domicílio do doente em fim de vida, através de uma lente sociológica constitui uma das formas para melhor compreender a natureza dos cuidados paliativos. Neste artigo, explorámos a voz dos profissionais de saúde de uma Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos (ECSCP), analisando a textualidade implícita nos seus discursos e perspetivas sobre a natureza do trabalho paliativo, curativo e preventivo, os desafios do trabalho sobre o processo de fim de vida, as lógicas da comunicação e da tradução na resolução dos problemas no trabalho em contexto da trajetória de fim de vida do doente. O presente artigo foi elaborado com base no tratamento preliminar dos dados recolhidos em 2019 e 2020, no âmbito do projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), intitulado ETIC (End-of-Life Trajectories In Care) - Managing end- of-life trajectories in palliative care: a study on the work of healthcare professionals.

Palavras-chave: trabalho; cuidados paliativos; fim de vida

ABSTRACT

Discovering the readings of health professionals on home care practices for patients at the end of their life, through a sociological prism, is one way to better understanding the nature of palliative care. In this article, we have explored the voice of healthcare professionals from a Community Palliative Care Support Team (ECSCP), analyzing the implicit textuality of their discourse and perspectives on the nature of palliative, curative and preventive work, challenges of work on end of life process, logic of communication and translation to solve problems at work as part of the patient's end of life trajectory. This article has been prepared on the basis of preliminary data analysis collected between 2019 and 2020, as part of the project funded by the Foundation for Science and Technology (FCT), entitled ETIC (End-of-Life Trajectories In Care) - Managing end-of-life trajectories in palliative care: a study on the work of healthcare professionals.

Keywords: work; palliative care; end of life

RÉSUMÉ

Découvrir les lectures des professionnels de la santé sur les pratiques de soins au domicile du patient en fin de vie, à travers un prisme sociologique, c’est l'un des moyens de mieux comprendre la nature des soins palliatifs. Dans cet article, nous avons exploré la voix des professionnels de santé d'une équipe de soutien communautaire en soins palliatifs (ECSCP), analysant la textualité implicite de leurs discours et perspectives sur la nature du travail palliatif, curatif et préventif, les défis du travail sur le processus fin de vie, la logique de la communication et de la traduction pour résoudre les problèmes au travail dans le cadre de la trajectoire de fin de vie du patient. Cet article a été préparé sur la base du traitement préliminaire des données collectées en 2019 et 2020, dans le cadre du projet financé par la Fondation pour la Science et la Technologie (FCT), intitulé ETIC (End-of-Life Trajectories In Care) - Managing end-of-life trajectories in palliative care: a study on the work of healthcare professionals.

Mots clés: travail; soins palliatifs; fin de vie

RESUMEN

Descubrir las lecturas de los profesionales de la salud sobre las prácticas de cuidado en el hogar del paciente al final de la vida, a través de una lente sociológica, es una de las formas de entender mejor la naturaleza de los cuidados paliativos. En este artículo exploramos la voz de los profesionales de la salud de un Equipo de Apoyo Comunitario en Cuidados Paliativos (ECSCP), analizando la textualidad implícita en sus discursos y perspectivas sobre la naturaleza del trabajo paliativo, curativo y preventivo, los desafíos de trabajar en el proceso final de la vida, la lógica de la comunicación y la traducción en la resolución de problemas en el trabajo en el contexto de la trayectoria del final de la vida del paciente. Este artículo se elaboró a partir del tratamiento preliminar de los datos recogidos en 2019 y 2020, en el marco del proyecto financiado por la Fundación para la Ciencia y la Tecnología (FCT), titulado ETIC (End-of-Life Trajectories In Care) - Managing end-of-life trajectories in palliative care: a study on the work of healthcare professionals.

Palabras clave: trabajo; cuidados paliativos; final de la vida

Introdução

Os cuidados paliativos estão na ordem do dia, pois tem como objetivo geral não só a melhoria da qualidade de vida dos doentes em fim de vida, mas procura igualmente contribuir para minimizar o sofrimento das famílias (Martins, 2015; 2018; Feijão e Vicente, 2014). Porém, as investigações empíricas sobre os cuidados a pessoas ou doentes terminais não são de data recente. Trabalhos pioneiros tiveram essencialmente início nos anos 60 nos Estados Unidos. São exemplos destes trabalhos, os estudos realizados nos hospitais por Glaser e Strauss (1965, 2007, 2009), Strauss (1970) e Exley (2004). Os resultados destes trabalhos pioneiros vieram alterar substancialmente o conhecimento sociológico sobre a forma como os indivíduos (profissionais de saúde) refletiam sobre a forma de morrer e da morte, colocando a nu as próprias experiências das pessoas (doentes) em trajetória de fim de vida em ambiente hospitalar. Outros autores, tais como James e Field (1992), sugeriram que a prestação de cuidados paliativos fora do contexto hospitalar (no domicílio ou em Nursing Homes ou ainda em Long- Term Care Facilities), para pessoas/doentes terminais não eram individualistas nem holísticas, e que, apesar de distintas dos cuidados prestados em hospitais, estavam cada vez mais a ser transformados em cuidados rotinizados, ditos de manutenção da vida. De facto, é de relevar que são os próprios profissionais de saúde, tais como Loureiro et al. (2014) que sugerem que as práticas médicas verificadas no domínio dos cuidados paliativos não são mais do que “uma prática profissional mais orientada para a cura do que para a supressão das necessidades sentidas pelos doentes na fase final da vida” (Resende e Vicente, 2018: 7). Autores como Martins (2015; 2018), Feijão e Vicente (2014) e Resende e Vicente (2018), entre outros, têm vindo a desenvolver estudos sociológicos sobre o tema em Portugal, analisando os desafios específicos dos quotidianos de trabalho com os quais os profissionais de saúde se confrontam quando se relacionam com os doentes em cuidados paliativos e as suas famílias. Segundo os autores, os profissionais do setor hospitalar tendem a acreditar que a multiplicidade das práticas do cuidar afeta o conforto dos doentes em situação terminal acarretando incerteza, inquietação e discórdia em torno da definição e gestão das trajetórias de fim de vida e cuidados que muitas vezes criam conflito com os familiares.

Apesar dos desafios do quotidiano profissional oferecerem itinerários controversos com o intuito de tornar a relação com o fim da vida socialmente significativo, Timmermans (2005) argumenta que, em termos específicos, os profissionais de saúde auxiliam e asseguram a resolução de problemas inerentes ao fim de vida dos doentes em cuidados paliativos, reforçando um acompanhamento personalizado nas trajetórias de fim de vida, que em última instância acentua uma certa ambiguidade da ação de cuidar como “meros” mediadores da morte. Para o autor, a morte provoca uma ambivalência existencial na vida moderna, situação que remete a ação dos profissionais num agir entre o curar ou o fomento de práticas conducentes a uma morte “boa”, evitando assim as mortes ditas “ruins”. Parafraseando Glaser e Strauss (2009), “os profissionais de saúde confrontam-se com diferentes contextos de consciência” (citado por Feijão e Vicente, 2014: 251) no quotidiano das relações com os doentes terminais, na gestão das incertezas e expetativas face à morte. Por não serem fecundos os estudos sociológicos portugueses sobre as experiências e as práticas dos profissionais de saúde da área dos cuidados paliativos em geral, e as condições de ação destes nas relações com os doentes em fim de vida e os seus familiares, no contexto da comunidade, parece-nos relevante a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre as várias perspetivas dos profissionais de saúde portugueses no quotidiano do seu trabalho em cuidados paliativos, indagando entre outras questões, a forma como os profissionais constroem os arranjos quer para promover o conforto aos doentes, quer para reduzir as ambiguidades, incertezas e eventuais focos de tensões nas relações com os doentes terminais e suas famílias. O presente artigo foi realizado pelos autores no âmbito do projeto ETIC (End-of-Life Trajectories In Care) - Managing end-of-life trajectories in palliative care: a study on the work of healthcare professionals. São apresentados neste artigo alguns dados preliminares sobre os desafios do trabalho de uma Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos (ECSCP) e suas implicações nos cuidados aos doentes em trajetórias de fim de vida. As entrevistas de natureza semiestruturada e aprofundada foram a técnica escolhida para a recolha privilegiada dos testemunhos dos profissionais de uma ECSCP do Alentejo. Para complementar a informação, foram igualmente recolhidos dados de observação direta no espaço doméstico do doente terminal que contou com o apoio formal de uma equipa multidisciplinar de profissionais de cuidados paliativos, tendo sido salvaguardados todos os pressupostos de consentimento informado e esclarecido. Para explorar os dados preliminares, procedemos à análise de conteúdo e ao tratamento quantitativo dos conteúdos, seguindo os pressupostos lexicométricos do protocolo de análise quantitativa dos textos (AQT) de Reinert (1993) e adaptada pela equipa do projeto ETIC. Em termos específicos procedemos ao tratamento do corpus dos entrevistados com o Iramuteq (software de acesso livre), sob quatro áreas: a) análises lexicais iniciais; b) verificação das unidades de texto mais significativas; c) identificação dos segmentos de texto (ST); d) reagrupamento de segmentos de texto (RST). Sob o ponto de vista “técnico”, realizámos as seguintes análises sobre o corpus das entrevistas, seguindo de perto as sugestões de Reinert (1993) e Silva (2019): a) Estatísticas Descritivas dos Textos; b) Análise da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) (agrupamentos ou classes de palavras); c) Análise de similitude das palavras; d) Nuvem de palavras parciais e totais; e) Extração do valor de qui-quadrado (chi2) das classes de palavras; f) Estudo das especificidades textuais com análise fatorial por correspondência múltipla e análise fatorial confirmatória de dados textuais. Dada à densidade dos materiais tratados, apresentamos apenas neste artigo, uma síntese das extrações e interpretações referentes à análise de similitude e a descrição dos agrupamentos de classes dos lemas.

1. Equipa comunitária de suporte em cuidados paliativos (ECSCP)

Numa primeira aproximação à noção de ECSCP e para possibilitar uma melhor compreensão da missão dessas equipas de saúde no contexto português, recorremos à Lei da Assembleia da República n.º 52/2012 de 5 de setembro que consagra a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos,

“1- A equipa comunitária de suporte em cuidados paliativos: a) Presta cuidados paliativos específicos a doentes que deles necessitam e apoio às suas famílias ou cuidadores, no domicílio, para os quais seja solicitada a sua atuação; b) Presta apoio e aconselhamento diferenciado, em cuidados paliativos, às unidades de cuidados de saúde primários, nomeadamente às unidades de cuidados na comunidade e às unidades e equipas da rede nacional de cuidados continuados e integrados; c) Assegura formação em cuidados paliativos dirigida às equipas de saúde familiar do centro de saúde e aos profissionais que prestam cuidados continuados domiciliários. 2 - A equipa comunitária de suporte em cuidados paliativos pode estar integrada numa unidade funcional de cuidados de saúde primários ou na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, dispondo de recursos específicos” (BASE XVIII).

Nas palavras de Pacheco (2014: 109) “o principal objetivo dos cuidados paliativos domiciliários é o de manter o doente junto dos seus familiares e amigos e no meio ambiente o mais tempo possível”. Os profissionais de ECSCP têm a função de apoiar o doente em todos os momentos de dependência, assim como no controlo sintomático e na antevisão de momentos urgentes. Neste caso, é fundamental que o doente e a família nutram segurança na equipa, o que ajudará na obtenção de uma postura de compreensão e apoio da ECSCP. Acrescenta ainda o autor que tais situações são facilitadoras para incitar o diálogo e a elucidação sobre as questões que surgem na prática de cuidar. Para além da prestação de cuidados, os profissionais devem promover a formação e apoio à família sobre a prática de cuidar do seu familiar. Efetivamente, a família do doente em fim de vida habitualmente não está habilitada para encarar a doença e a morte do seu familiar e neste momento carece de apoio nas transformações de rotina devido à doença. De facto, tal como Pacheco (2014) argumenta, estas alterações passam por cuidados concretos quanto à alimentação, higiene, mobilizações, posicionamentos e essencialmente pela complexidade na aceitação da deterioração do estado de saúde do doente terminal, às quais se acresce o medo do momento da morte. Estes tipos de cuidados apresentam vantagens, entre as quais a de facultar cuidados exclusivos num ambiente particular onde a pessoa em fim de vida pode ter acesso a todos os seus bens, e possibilita ainda aos familiares não só assistirem e serem parte dos cuidados, como podem promover o prosseguimento das atividades quotidianas do doente terminal (Pacheco, 2014). Porém, a permanecia no domicílio pode acarretar questões negativas, tais como a persistente falta de cuidados do próprio doente e conduzir à génese de situações de transtorno da vida familiar. Pacheco (2014) retrata alguns dos acontecimentos a saber: a ocorrência de familiares que anteriormente trabalhavam fora de casa e neste contexto serem forçados a permanecer em casa; a modificação das horas das refeições, visto o doente não se nutrir só e necessitar de auxílio; alteração dos ciclos do sono, uma vez que o doente requer de cuidados noturnos, ou inclusive o momento da morte; outro aspeto será o doente sentir-se muito solitário quando não tem acompanhamento por parte da família ou quando a mesma se ausentar para o trabalho durante o dia; análogo a este caso num momento de urgência, torna-se penoso o controlo de certas sintomatologias que surgem e a necessidade acesso imediato a cuidados de saúde (médicos e de enfermagem), o que representa um dos grandes medos da família. Tendo em conta as vantagens e as desvantagens da prestação de cuidados paliativos no domicílio do doente, torna-se importante ter em conta o seguinte: o desejo do doente em permanecer em casa; a família pretender e ter possibilidade de cuidar; a realidade socioeconómica apropriada; e uma equipa que dê apoio ao doente e à família. Alguns autores como Kellehear (2008) e Sánchez-García et al. (2017) salientam as dificuldades sobre a tomada de decisão a esse nível, argumentando que os profissionais reconhecem que não incentivam a participação do doente, e declaram ainda que apesar da maioria das pessoas afirmarem que o seu desejo é morrer em casa (na sua casa), a realidade é que a maioria morre num hospital público ou noutra instituição de saúde, mesmo que seja uma unidade de cuidados paliativos. Não obstante esta realidade, as práticas de cuidar relacionadas com a tomada de decisão centrada no doente e na família podem ajudar os profissionais de saúde compartilhar o “controlo da morte” com o doente terminal e a sua família (Ranse, 2013).

2. Cuidados paliativos no domicílio um caminho possível até ao último dia

A prestação de cuidados paliativos é um modelo dinâmico e surge na atualidade como um campo privilegiado de trabalho para os profissionais de saúde, tanto a nível do setor público como nos domínios do privado (Lacerda et al., 2006) e social. De acordo com Rodrigues (2011: 48) a “casa, família e poder local constituem entre si um triângulo de grande representatividade social, de tal forma que configuram e organizam a estrutura da sociedade local”. Em torno destes três núcleos definem-se “hierarquias, poderes, crenças, representações simbólicas e culturais e organizam-se classificações e reclassificações dos distintos atores e grupos sociais” (Rodrigues, 2011: 49). Não será em demasia salientar que a casa ou o espaço doméstico é vista como algo “sagrado”. É indubitável que a casa acolhe física e simbolicamente a família, ampara e protege dos perigos e temporais, como uma construção que opera como alicerce de uma identidade familiar, mantém uma analogia entre a identidade, a memória, o património e os símbolos familiares (Rodrigues, 2011). Neste âmbito, para que seja possível manter o doente terminal no seu “santuário” até ao final dos seus dias, também irá necessitar da prestação de cuidados específicos sejam eles prestados pelos próprios familiares, pelos profissionais ou por ambos. Nas palavras de Dias (2015: 73) o cuidar trata-se de “uma ação, mas também uma disposição. Faz-se em direção a outrem, dependendo dela o bem-estar do recebedor dos cuidados que lhes são prestados”. Em suma, a decisão de viver os últimos dias no domicílio numa nova lógica do cuidar da saúde paliativa, envolve essencialmente três grupos de atores, numa primeira fase da decisão da própria pessoa em final de vida e da família, seguindo-se depois a intervenção do grupo de profissionais envolvidos na prestação de cuidados paliativos. É na complexidade desta teia de relações que “dependendo dos contextos de consciência com que se deparam e do momento na trajetória de final de vida do doente, os profissionais de saúde constroem formas específicas de se envolverem com os doentes e as famílias, através de arranjos que permitem evitar tensões e ir ao encontro das expectativas e interesses de cada ator” (Feijão e Vicente, 2014: 251).

3. Os cuidados paliativos no domicílio na voz da ECSCP: resultados preliminares

Os resultados descritos neste ponto dizem respeito a 5 entrevistas de profundidade a 5 profissionais de uma ECSCP do Alentejo, realizados entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020. Foi obtido um corpus de dados bastante extenso. Para efeitos de tratamento preliminar, retivemos cerca de 200 minutos de áudio, cujo recorte permitiram-nos identificar, interpretar e organizar os seguintes temas e sub-temas: a) Experiência de trabalho (CEET); b) Perceção das diferenças entre trabalho paliativo curativo ou preventivo (PDTPCP); c) Resolução de problemas no trabalho sobre o processo de final de vida (TPFVRPT); d) Tendências das condições de trabalho em cuidados paliativos (TCTCP); e) Sugestões e propostas de melhoria (SUG) identificados numa análise de conteúdo preliminar. Submetido o corpus total das entrevistas da ECSCP ao tratamento com o Iramuteq (software de acesso livre), verificámos que o corpus apresenta as seguintes caraterísticas formais: 74 textos; 521 segmentos de texto; 2300 formas distintas; 17616 ocorrências válidas; 1459 lemas; 957 formas ativas; 491 formas suplementares; frequência de formas ativas ≥ 3 é de 351; a média das formas por segmento é de 33,8; o número de clusters é de 4, sendo 397 textos possíveis de classificação em 521 (76,20%). Numa primeira leitura do tratamento da informação recolhida, podemos salientar que obtivemos resultados que colocam a nu as dificuldades de gestão quotidiano do trabalho dos profissionais da equipa ECSCP, mormente na sua relação com os familiares dos doentes em cuidados paliativos domiciliários. A ideia de tensões nas relações parece-nos evidente nos resultados da análise das coocorrências, tal como apresentamos na Figura 1, onde se destacam as palavras “doente”, “pessoa”, “família”, “dizer”, “equipa” e suas relações de similitude. Nesta figura, são evidentes as seguintes coocorrências: “doente-pessoa”; “doente-família”; “doente-trabalhar-equipa- paliativo-cuidado”; “doente-pessoa-falar-achar”; “doente-dizer-querer”. Neste âmbito e se atendermos à interpretação dos extratos das entrevistas relacionadas com as coocorrências, parece-nos que o corpus revela que predomina um espaço de necessidades de cuidar específico no contexto do doente terminal, onde a família protagoniza a maioria das ações como cuidadora, por manifesta impossibilidade em assegurar uma “permanente” presença de 24h de cuidados prestados por parte da equipa de cuidados paliativos. A verdade é que a duração de cada “visita” pelos profissionais de ECSCP nunca é prolongada, e na maioria das ocasiões serve quer para ministrar cuidados diretos ao doente, quer para elucidar os familiares sobre as necessidades de cuidados específicos num ambiente hospitalar. Trata-se de situações que podem contribuir para a edificação de tensões e controvérsias entre os profissionais e os familiares, sobretudo, quando não compreendem o padrão de “entrada- reentrada” num hospital ou numa unidade de cuidados paliativos que modelam os padrões das trajetórias de fim de vida.

“esta semana numa intervenção de uma enfermeira que estava a explicar a uma doente a mais valia de ir para uma unidade de cuidados paliativos, ser internada e a senhora estava revoltada e não estava a perceber, e eu tive que entrar com exemplos práticos”, E3, (score:106.19)

Árvore de Similitude ou das coocorrências dos dados preliminares das entrevistas da ECSCP

Fonte: ETIC ECSCP - Output Iramuteq 

Através da opção de Classificação Hierárquica Descendente (CHD) do Iramuteq, extraímos 4 classes ou contextos temáticos que subjazem nos dados preliminares das entrevistas da ECSCP (Figura 2). A classe com maior peso de agrupamentos lexicais é a classe 2 (29,7%), sendo também uma classe interpretável como “independente”, uma vez que as outras apresentam uma certa relação entre si.

Classificação Hierárquica Descendente dos dados preliminares das entrevistas da ECSCP

Fonte: ETIC ECSCP - CHD Output Iramuteq 

A classe 2 é constituída por 118 UCE (unidades de contexto elementar) de 397, o que corresponde a 29,72 % do corpus. Esta classe pode ser interpretada como a lógica do trabalho da ECSCP. Destacam-se nesta classe 2, as seguintes palavras: “equipa”, “intervenção”, “utente”, “técnico”. Revelamos nesta classe que, segundo os entrevistados, o foco do trabalho em Cuidados Paliativos está maioritariamente delineado nas capacidades de “intervenção” da “equipa” técnica sobre o “utente” (p<0,05; *e_02; *e_03; *e_04; *PDTPCP_1; *TPFVCTTPCETR_1; *idad_1; *CEET_2; *CE_2; *TPFVCT_3), nomeadamente quando o doente terminal esteja numa situação de trajetória de morte rápida esperada, da trajetória de morte demorada esperada, da trajetória da sentença de morte suspensa (Glaser e Strauss, 1965; Feijão e Vicente, 2014). Os seguintes extratos das entrevistas relevam as principais formas lexicais presentes na classe 2, que clarificam o foco da intervenção da ECSCP na “gestão” das trajetórias de morte do doente.

“geralmente nós fazemos reuniões de equipa e depois nas reuniões são discutidos os casos. Cada utente tem um gestor de caso e depois é repartido o serviço”, E4, (score: 138.19) “participo, nós como equipa discutimos casos. A partir do momento em que temos pedidos de intervenção e trabalhamos sempre as expetativas, no fundo de cada doente e das famílias”, E3, (score: 131.25) “trabalhando nesta área e numa área que ainda está pouco divulgada, que os técnicos envolvidos na saúde muitas vezes não estão sensibilizados, porque se começássemos a aplicar ações paliativas ou intervenções paliativas desde o início do diagnóstico”, E3, (score:130.01) “dentro da equipa nós trabalhamos muito como pares, entre iguais, não há muito aquela diferença de é o médico, é o enfermeiro, trabalhamos em equipa”, E2, (score: 123.31) “foi uma área que sempre me interessou muito e pela qual fiz várias formações desde a fase inicial várias formações básicas”, E1, (score: 114.18) “o que é que se espera, as expetativas e depois consoante a situação vai evoluindo ou não, também falamos. E também discutimos em equipa por exemplo a situação daquele utente está a agravar, está a descender, está a caminhar para o fim”, E2, (score: 106.81)

A classe 4 é constituída por 84 UCE de 397, o que corresponde a 21,16 % do corpus. As palavras principais desta classe são: “filho”, “mãe”, “olhar”, “alimentar”. Da interpretação deste agrupamento lexical, parece-nos que realça um conjunto controvérsias comunicativas entre os familiares e o doente nos últimos momentos de vida (p<0,05; *e_01; *idad_2; *TPFVCT_1; *TPFVCTT_1; *TPFVCTTP_1; *CEET_1). Exemplificamos como principais formas lexicais presentes na classe 4 os constantes nos seguintes extratos de entrevistas.

“e virei me para a filha cuidadora que estava ao meu lado direito e disse lhe dona x já olhou para a sua mãe, assim numa voz calma, já olhou para a sua mãe”, E1, (score: 229.22) “a certa altura já não tinha bem a noção de estar em casa ou de estar fora então a família os filhos queriam que ele fosse para fora para proteger a senhora a esposa do doente”, E5, (score: 120,13)“há muitos que dizem eu não posso ficar em casa porque não tenho ninguém que cuide de mim, aqui outros dizem eu até gostava de ficar aqui, mas os meus filhos não podem vir ... deixar o trabalho para ficar aqui comigo”, E1, (score: 102,08) “o meu pai está a lutar contra a morte, ele não quer morrer, mas ele não come, não quer dormir esteve quarenta horas sem dormir uma hora, um minuto, nada, não fechava os olhos”, E1, (score: 97,77)

A classe 3 é constituída por 94 UCE de 397, o que corresponde a 23,68 % do corpus. A classe é maioritariamente representada pela ideia de trabalho sobre o processo de final de vida e as considerações éticas. Observamos que as palavras mais marcantes foram: “coisa”, “problema”, “família”, “casa”. Revela-se nesta classe que segundo os entrevistados o foco está maioritariamente no problema da “família” e “cuidar” no processo de final de vida (p<0,05; *e_03; *idad_5; *TPFV_1; *TPFVCTTPCE_1). Apresentamos em seguida as principais formas lexicais presentes na classe 3, onde relevam as situações controversas nos contextos de trajetória da sentença de morte suspensa e de trajetória de morte demorada esperada.

“situação a situação, eles conseguem ir percebendo que vão sendo capaz de gerir os problemas que vão surgindo e isso vais lhe dar força e acreditar que vão conseguir cuidar até ao fim”, E1, (score: 144,02) “tomara nós que só tivéssemos problemas sintomáticos porque isso é um medicamento ou dois ou três e isso resolvesse em pouco tempo. Todos os outros problemas que condicionam todas as famílias são muito mais complexos de gerir”, E1, (score: 116,13) “o doente quer ficar, passar os últimos momentos em casa, no seu ambiente, com a família e a família tem medo do momento da morte, tem medo de ficar e depois associar o momento trágico e traumatizante ficar associado ao local”, E5, (score: 114,08) “pedem uma coisa extraordinária para o almoço e as famílias fazem e depois não conseguem comer nada e isto magoa muito quem está a cuidar”, E1, (score: 104,84) “há coisas que... são muito... são vividas ... são muito do momento e que depende muito da relação que se ganha com as pessoas e, portanto, nós semanalmente falamos dos casos, passamos estes pormenores que falamos aqui”, E1, (score: 104,34)“se o cuidador nos disser que não tem depois disto ser tudo muito desmistificado e trabalhado disser que não tem estrutura psicológica para vivenciar esse momento o que depois não conseguira ficar em casa e continuar a viver lá depois da morte do seu familiar”, E2, (score: 97,42)

A classe 1 é constituída por 101 UCE de 397, o que corresponde a 25,44 % do corpus. A classe pode ser interpretada como a teia e os interstícios da comunicação da ECSCP com os doentes e suas famílias. Observamos que as palavras mais marcantes são as seguintes: “dizer”, “perguntar”, “querer”, “ouvir”, “acontecer”, “validação”. Revela-se nesta classe que, segundo os entrevistados, o foco está igualmente situado nos dilemas e problemas da “família” na procura de melhores formas de “cuidar” no processo de final de vida (p<0,05; *e_02; *e_05; *idad_1; *TPFVCT_2; *TPFVCTT_1; *TPFVCT_1). Os extratos seguintes ilustram as principais formas lexicais desta classe.

“a minha forma de comunicar é muito por dar ao outro aquilo que ele quer saber. Tento perguntar o que é que sabe, como é que sabe, o que é que lhe disseram, porque que lhe disseram isso”, E1, (score: 120,41) “a validação com a família, com os doentes, explicar tudo para que ele perceba, tentar lhe explicar que tudo tem consequências, todas as nossas ações. Aquilo que nós vamos fazer pode influenciar positivamente ou negativamente a situação de saúde”, E1, (score:107,98)“perguntar lhe no caso de ser um emagrecimento muito evidente que sabem que estão mais magros. O que é que acham que esse emagrecimento significa, o que é que isso quer dizer”, E2, (score: 102,01)

4. Os resultados e as suas implicações

A análise dos dados preliminares permitiu-nos relevar as expetativas e as incertezas dos atores entrevistados, assim como alcançar uma certa inteligibilidade sobre a natureza do trabalho em contexto paliativo curativo versus preventivo, compreender as estratégias adotadas pelos profissionais para a resolução de problemas no trabalho sobre o processo de final de vida e registar algumas sugestões e propostas de melhoria das práticas do cuidar em cuidados paliativos.

4.1. Perceção das diferenças entre trabalho paliativo curativo ou preventivo

Como sublinhámos na descrição da classe 2 da CHD, a transição do cuidado curativo para o conforto e a promoção da qualidade cuidados no final da vida podem ser facilitadas pela criação do suporte emocional, pelas crenças, valores e por fatores que influenciam a coordenação da prestação de cuidados (Ranse, 2013). Apesar das verbalizações de alguns entrevistados estarem em linha com as perspetivas de Ranse (2013), outros entrevistados afirmam que o propósito dos cuidados paliativos necessita de ser mais valorado na praxis, na sua dimensão de fomento do conforto e de minimização do sofrimento. Ainda que o foco da praxis dos profissionais de uma ECSCP tenha um perfil de natureza não curativa, os mesmos têm a plena consciência de que a morte continua a ser algo inevitável nos doentes terminais.

4.2. Experiência de trabalho sobre o processo de final de vida

Parafraseando Goffman (1991), o quadro social da experiência de trabalho sobre o processo de final de vida estrutura a forma como os profissionais de saúde definem e interpretam as situações do cuidar em cuidados paliativos. Importa salientar que Mancilla, et al. (2018) ao comparar as perceções de médicos e enfermeiros sobre a prática profissional, obstáculos percebidos e dilemas éticos nos cuidados de final de vida nos centros de saúde, hospitais e lares de idosos, mostraram que os profissionais dos lares eram mais velhos e tinham mais experiência profissional do que os de centro de saúde e hospitais. Salientam os autores que os profissionais com maior experiência são aqueles que apresentam certos dispositivos cognitivos e práticos específicos que lhes permitam classificar a instituição, a vida social e a organização da experiência social da sua prática profissional melhor que a dos outros profissionais na estrutura e processos de cuidado, nomeadamente no que se referem aos aspetos físicos, psicológicos, sociais, espirituais, culturais e do cuidado propriamente dito.

De salientar que a experiência formativa e profissional dos profissionais de saúde nas práticas do cuidar no processo de final de vida pode ocorrer “desde sempre”, ou seja, a partir dum primeiro contato com a área dos cuidados paliativos, como podemos verificar no testemunho do E5 e assinalados na classe 2 da CHD “não sei exatamente há quantos anos porque também trabalhei numa outra equipa da ECCI, não na que (...) existe agora, mas numa anterior, em que a grande maioria dos utentes eram todos de cuidados paliativos”.

Outros autores como Costa et al. (2016) realizaram um estudo exploratório, descritivo e qualitativo com o objetivo de conhecer a experiência dos alunos de medicina e enfermagem no atendimento a doentes de cuidados paliativos, ao identificar as dificuldades e aspetos organizadores para esses cuidados. Os autores salientaram 5 temas que mais influenciam a experiência a saber: “mudança na percepção sobre cuidados paliativos; identificação com o paciente e a família; processo de racionalização e sensibilização; formação em cuidados paliativos; e aprendizado com a prática e trabalho em equipe multidisciplinar” (Costa et al. 2016:1041). Esta investigação desoculta a relevância das atividades práticas durante a aprendizagem, a valorização do trabalho multidisciplinar, o sofrimento devido ao processo de autoidentificação com o doente, e o ciclo de empatia e distanciamento decorrente da maturidade emocional. É ainda de acrescentar que os autores que seguimos, salientam a falta de formação como um elemento que influencia as atitudes e os comportamentos sobre a morte e o modo de encarar emocional e atitudinalmente o cuidado no final da vida. Em suma, ao confrontar os nossos resultados preliminares com outros estudos, podemos salientar que o presente estudo de uma ECSCP releva que a experiência de trabalho sobre o processo de final de vida é um facto primordial e influenciador da sedimentação de boas práticas dos profissionais em cuidados paliativos.

4.3. Comunicação e Tradução

A comunicação e a tradução foram igualmente questões presentes nos testemunhos dos profissionais da ECSCP, como foi possível verificar nos extratos de entrevistas e nos agrupamentos de palavras presentes na classe 2, na classe 4 e na classe 1. No testemunho do E1 presente na classe 1 verificamos a importância da “boa comunicação e tradução” ao referir “faço muitas vezes comunicação de ou validação de más

notícias quando as pessoas não percebem ou não ouviram muito bem ou têm dúvidas naquilo que ouviram ou perguntam e ... normalmente acontece com muita frequência, termos que validar”. De relevar queGirbau et al. (2017) concluíram no seu estudo que através dos registos clínicos é possível proceder à avaliação da qualidade dos cuidados de final de vida, identificando áreas que necessitam de melhorias. Os autores identificaram a importância da comunicação com as famílias, salientando que tal item foi expresso por 98% dos participantes, a par do item da capacidade de tomada de decisão dos pacientes terminais (96%). O que é referido pela E2 é igualmente esclarecedor: “as famílias têm mais medo de não ser capaz de cuidar e de vivenciar o sofrimento e a degradação do doente do que propriamente mesmo da morte e depois nós preparamos muito bem as famílias e temos o telemóvel ... sabem que podem contar connosco se houver uma agudização se piorar”.

Também na pesquisa bibliográfica realizada verifica-se que a comunicação e a tradução têm um papel essencial. Por exemplo, vários autores salientaram a importância do seguinte: “assumir papel de cuidador, permitir que o fim da vida na fase terminal aconteça em casa/perto da família e o processo de cuidar, assim como o conhecimento, a comunicação e a relação quanto à conduta do enfermeiro” (Pazes et al. 2014: 95). As autoras não só concluíram que as equipas específicas são indispensáveis, tal como é relevante que os profissionais possuam a necessária formação e as competências básicas em cuidados paliativos.

Gaspar et al. (2014) revelam igualmente que a comunicação entre doente-médico é essencial para o processo de fim de vida, ao avaliar a comunicação e os cuidados, na prática dos pneumologistas portugueses. Dos resultados obtidos, os autores afirmam que os fatores influenciadores da comunicação foram os seguintes: a sensação de que os pacientes não estavam preparados para a discussão do fim da sua vida (70,0%), referindo o medo de tirar a esperança de um doente (58,0%) e a falta de formação (51,0%). De encontro a estes resultados estão também as verbalizações do E5 registadas na classe 1 : “sim normalmente tentamos portanto dizer que sinais e sintomas é que ele poderá vir a ter e para estarem alerta ou para não se preocuparem se acontecer isto ou aquilo ou para nos contactarem se acontecer ou se encontrarem outra situação outro sintoma”.

Miranda et al. (2016) estudaram os principais fatores que influenciam a sobrevida dos doentes terminais em domicílio, encaminhados para a equipa de apoio domiciliar de cuidados paliativos. Para os autores, melhorar a saúde e a qualidade de vida passa por práticas mais personalizadas e integrais no fim da vida, explorando ou fomentando melhor comunicação com os doentes, bem como a sua participação na tomada de decisões. No presente estudo da ECSCP também se verifica através das palavras do E1 assinaladas na classe 3, ao revelar que por vezes as dificuldades na comunicação não surgem somente entre os doentes e família. Ao descultar que “muitas vezes não conseguimos encontrar as pessoas por problemas de comunicação quando queremos passar uma informação ou questionar alguma coisa em relação a um doente e porque temos métodos de intervenção diferentes e isto tudo são obstáculos à comunicação”. Em suma, através dos vários estudos consultados e dos testemunhos dos entrevistados da ECSCP compreendemos que por vezes as dificuldades na comunicação não advêm nem dependem da família e do doente, mas da estratégia ou das formas de comunicação entre a equipa, ou seja, dos próprios profissionais.

4.4. Resolução de problemas no trabalho sobre o processo de final de vida

São vários os problemas no trabalho sobre o processo de final de vida que podemos verificar através dos testemunhos da equipa de ECSCP. Entre eles podemos elencar a perceção das diferenças entre trabalho paliativo curativo ou preventivo, a experiência de trabalho sobre o processo de final de vida, a comunicação e tradução. Contudo subsistem ainda outras dificuldades que surgem na relação entre a equipa.

De acordo com Ferreira (2018), embora a equipa de ECSCP veja a família como um mediador na prestação de cuidados, é de relevar a carência da simultaneidade de vários apoios estruturais, como é expresso nas palavras da classe 3. Olhemos para as verbalizações do E1 ao referir “outra coisa que nos condiciona muito o trabalho e que as famílias também veem como uma preocupação e nós também é os apoios domiciliários das instituições das IPSS que nós estamos a fazer um trabalho importante com aquelas famílias a dizer que consegue cuidar em casa”. Esta situação causa transtorno devido à “falta de apoio é e falta de estruturas da comunidade que apoiem os cuidadores depois com maior problema agora também começa a ser minimizado que é quando recorriam a um serviço de urgência por uma situação aguda ou por uma situação que eles achavam que era de recorrer”. Na verdade, esta situação resulta das “famílias para além do cuidar e da dificuldade que é cuidar é o cuidar vinte e quatro horas porque uma coisa é nós trabalharmos oito horas e virmos para outro espaço para outro sítio”. Também na classe 4, as verbalizações de E1 ilustram que o quanto este cuidado deve ser arquitetado, “mas precisamos sempre de um cuidador vinte e quatro horas ou de um ou de vários e pronto depois as pessoas com esta informação começam a reorganizar se no sentido de ou contratam alguém para ficar lá umas horas ou revezam se entre os filhos”.

Contudo apesar de a família ter um papel fundamental no processo, por vezes a aceitação do fim do doente terminal torna-se uma situação complexa, tal como é retratado na Classe 1, onde registamos este segmento de texto: “há doentes que nem querem ouvir falar na doença e que nos fazem logo sinal que é para não dizer absolutamente nada”, E4. Ainda na classe 4, salientam-se verbalizações que relevam a ideia de que “a conspiração do silêncio foi durante mito tempo o problema maior nestas situações na minha opinião também porque pode não ser unanime em relação ao resto da equipa mas para mim cada vez menos se coloca ou se vê ou se sente esta conspiração do silêncio”, E1.

As dificuldades e os fatores favoráveis vivenciados pelos profissionais e relacionados com o cuidar no final da vida são outros aspetos reportados pelos entrevistados. A verdade é que esta situação é igualmente reportada no estudo de Sánchez-García et al. (2017). Os autores argumentam que os profissionais inquiridos identificaram como principais dificuldades o seguinte: a comunicação com as famílias relacionadas com sentimentos de culpa; a compreensão do declínio e a aproximação da morte. No nosso estudo, foram várias as declarações capturadas na classe 4 relativas a esse tema, sendo de salientar as verbalizações do E1: “a mãe estava revoltada e revoltava se com o marido que era o principal cuidador e depois com a filha e houve uma altura que nós tivemos a necessidade de colocar uma perfusão um dip”. Nestes casos, verificam-se os sentimentos de falta, ou melhor de incompreensão e apreensão por parte dos familiares. O seguinte extrato é elucidador: “pronto quando eu lhe disse olhe para a mãe com os olhos que olhou para o tio ela olhou para além daquilo que ela queria ver foi só assim (…) E a senhora olhou para mim e disse a minha mãe esta a morrer chora e eu disse exatamente ... possivelmente a sua mãe tem dias e horas de vida e ela disse me ... sim”, E1. Argumenta ainda o entrevistado que “a perspetiva dela era outra, ela queria olhar para a mãe e ver que ela ia melhorar e que afins”, E1.

Um outro momento bastante complexo para a família diz respeito à alimentação até ao momento final da vida. Pacheco (2014) reflete sobre este facto ao apresentar algumas perspetivas divergentes de vários especialistas, argumentando a alimentação depende do que julgam ser o benefício e/ou maleficio para o doente terminal. Pudemos verificar que “houve uma família que também me pediu queria porque queria que a mãe se alimentasse porque sim porque tinha que ser não podia morrer à fome as questões de sempre (…) em histerismo porque achavam que tínhamos que por tubo para alimentar tubo para algaliar tubo para tudo e tínhamos duas filhas sem saber muito bem o que é que haviam de fazer com sessenta e muitos anos a idosa com noventa e muitos isto num lar (…) e ela virou se para a sobrinha e disse não vamos fazer nada se a mãe está a morrer não há tubo nenhum que lhe vá dar vida”, E1.

Presente na classe 3, encontram-se segmentos de texto relacionados com o factor medo do momento da morte do familiar, situação também relatada por Sánchez-García et al. (2017) no seu estudo. Segundo o entrevistado E5, percebemos que “às vezes é preciso gerir as coisas para tudo correr bem pois muitas vezes depende ou tentamos muitas vezes retirar o medo ou os receios da família perante aquela situação (…) acho que é porque uma das coisas que as pessoas têm muito medo é da morte principalmente na família encontramos muitas que têm medo do momento da morte como uma coisa assustadora”.

Estes e outros extratos similares que recolhemos no corpus das entrevistas, ilustram que, apesar das famílias saberem que o doente terminal tem uma trajetória de morte esperada, o que mais desejam é que o seu familiar não tenha uma trajetória de morte súbita, sobretudo num quadro clínico de sofrimento.

Sánchez-García et al. (2017) destacam ainda no seu estudo a falta de coordenação com os restantes profissionais, relacionando particularmente tal facto com a falta de compreensão das carências dos doentes. Na verdade, este facto relaciona-se sobretudo com a falta de capacitação e recursos materiais e humanos, tal como mencionam Sánchez-García et al. (2017) e Ferreira (2018). Este tema sobre a relativa carência de recursos humanos também se encontra bem presente na Classe 2, tal como pudemos verificar nas verbalizações de E2 que diz o seguinte: “nós tentamos trabalhar com gestores de caso só que uma vez que só existe uma enfermeira que está trinta e cinco horas na equipa”. Ainda sobre a parte social da equipa “temos uma assistente social temos horas de uma assistente social na equipa são sete horas”, E2. Na declaração da mesma, é ainda salientado que “eu só chego junto dos utentes e dos familiares quando a equipa me referencia geralmente é a equipa medica e de enfermagem que toma conta da ocorrência depois eu geralmente vou só naqueles casos que efetivamente justificam a minha intervenção”, E4.

Em suma, verificamos uma certa carência de profissionais tanto da área social como da área da saúde, porém alguns profissionais argumentam o seguinte: “eu por exemplo não estou trinta e cinco horas, portanto há visitas dos quais eu sou gestora de caso mas vai ter que ser a minha colega a ir por causa da minha não disponibilidade por não estar a tempo inteiro na equipa”, E2. De facto, Ferreira (2018) argumenta que o fator tempo é também bastante mencionado pelos profissionais, sendo decisivo para o aperfeiçoamento das práticas de cuidar numa ECSCP, visto que não sendo de 24/24horas por dia o acompanhamento, e dado que o estado de um doente terminal poder alterar-se velozmente, torna-se necessário antecipar as situações com uma planificação adequada para que o familiar/cuidador não seja surpreendido com a morte súbita ou que venha a gerar um sentimento de desconfiança e de insegurança no acompanhamento domiciliário nas situações de trajetória da sentença de morte suspensa.

Considerações finais

Os resultados preliminares do projeto ETIC descritos anteriormente, embora delimitados na exploração de uma ECSCP do Alentejo, revelam algumas dimensões multifacetadas e complexas das trajetórias de fim de vida e as suas implicações no mundo do trabalho dos profissionais em equipas comunitárias nos cuidados paliativos. Em termos estritos, estes resultados permitiram-nos identificar várias áreas temáticas chave que são transversais ao mundo do trabalho em cuidados paliativos, tais como: a perceção das diferenças entre o trabalho paliativo, curativo e preventivo; a experiência de trabalho sobre o processo de fim de vida; a comunicação e a tradução; a resolução de problemas no trabalho sobre o processo de fim de vida. De salientar que os resultados preliminares sugerem que os doentes/pacientes terminais, os seus familiares e os membros das equipas de saúde possuem experiências diferentes em relação à doença, à organização do cuidado e as trajetórias de fim de vida de que são quotidianamente confrontados nos diversos momentos a partir da definição do doente como terminal. É igualmente de notar que os problemas que surgem mais associados ao trabalho dos profissionais de ECSCP incluem-se a falta de suporte das famílias, situação que dificulta a permanência no domicílio do doente terminal. Um outro aspeto fundamental reside na dificuldade em falar sobre o fim de vida do familiar, assim como a falta de recursos humanos e materiais da equipa, aspetos que se refletem sobretudo na “falta de tempo” quando “não há tempo”. Podemos assim destacar que as dinâmicas do mundo do trabalho em cuidados paliativos são influenciadas pelas relações com os atores chave do processo de fim de vida, ou seja, com o “doente” e a “família”. Como Lacerda et al. (2006: 94) indicam “os maiores beneficiados da atenção domiciliar (…) serão os clientes e seus familiares, porque o cuidado passará a ser individualizado, humanizado, distante dos riscos iatrogénicos, pertinentes ao contexto hospitalar e (…) contará com a participação do principal cuidador: o familiar ou o significante”. Subjaz igualmente nos resultados do estudo a presença de certas tensões a nível da comunicação entre os profissionais da ECSCP e os doentes e famílias, mormente nos aspetos referentes à condição de saúde, razão pela qual os próprios profissionais sugerem a relevância da necessidade de personalizar a transmissão deste tipo de informação aos doentes em cuidados paliativos e às respetivas famílias. Em suma, se não há dúvida de que a procura de conforto dos doentes terminais e a minimização do sofrimento das suas famílias representam os focos primordiais do agir dos profissionais da ECSCP, são as trajetórias de fim de vida dos doentes terminais que mais marcam a realidade da prática no mundo do trabalho de uma ECSCP. À luz dos resultados do estudo podemos afirmar que, parafraseando Glaser e Strauss (citado por Feijão e Vicente, 2014: 251), são as situações da trajetória de morte súbita, da trajetória de morte rápida esperada, da trajetória de morte demorada esperada, da trajetória da sentença de morte suspensa, e da trajetória de padrão de entrada-reentrada que mais influenciam o mundo do trabalho das ECSCP

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Recebido: 10 de Setembro de 2020; Aceito: 29 de Novembro de 2020

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