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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.40  Porto dez. 2020  Epub 07-Mar-2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soc40r2 

Recensão

MASCLET, Olivier; AMOSSÉ, Thomas; BERNARD, Lise; CARTIER, Marie; LECHIEN, Marie-Hélène; SCHWARTZ, Olivier; SIBLOT, Yasmine (Dir.) (2020), Être comme tout le monde. Employées et ouvriers dans la France contemporaine, Paris, Éditions Raisons d’agir. ISBN 979-10-97084-06-6

João Queirós

1Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

2Instituto de Sociologia da Universidade do Porto


O livro Être comme tout le monde. Employées et ouvriers dans la France contemporaine, organizado por um coletivo de cientistas sociais ligado a centros de investigação sediados em Paris, Nantes e Poitiers (CERLIS, CMH, CENS e GRESCO), apresenta os principais resultados de uma investigação desenvolvida entre 2014 e 2018, com o apoio da Agence nationale de la recherche, sobre recomposições sociais e culturais das classes populares na França contemporânea. A pesquisa, que envolveu perto de três dezenas de investigadores e investigadoras, a maioria coautora de pelo menos um dos 22 capítulos do livro (são 26 os nomes inscritos na lista de autorias dos diferentes segmentos do volume), assumiu como propósito fundamental a produção de conhecimento sociológico aprofundado sobre estilos de vida das frações “estáveis- modestas” dos meios populares contemporâneos, isto é, dos grupos domésticos populares cujas condições de existência e padrões aspiracionais e de consumo ficam aquém dos das classes médias e dos segmentos mais dotados das classes populares, mas que se afastam também das famílias menos dotadas de recursos, mais precarizadas e o mais das vezes dependentes dos apoios do Estado social. Fração “central” das classes populares - porventura por isso mesmo geralmente arredada da atenção de sociólogos e jornalistas -, o segmento das famílias “estáveis-modestas” engloba os grupos domésticos que procuram “viver do seu trabalho”, aspirando por essa via a “viver como toda a gente”, isto é, a viver segundo as normas - de consumo, alojamento, educação, saúde, entre outras - comuns à sociedade modal. A análise das condições, constrangimentos e aspirações deste amplo e multifacetado grupo social é aqui realizada considerando o pano de fundo desenhado por três transformações relevantes dos universos populares observadas em França ao longo das últimas quatro décadas: i) uma “extensão do domínio do comum”, resultante do alargamento do acesso a bens materiais (alojamentos, equipamentos, viaturas) e a serviços e bens simbólicos (escolaridade, lazeres, cuidados de saúde) outrora monopolizados pelas categorias médias e superiores; ii) uma “extensão do domínio do julgamento”, decorrente da primeira transformação mencionada e, bem assim, do alargamento dos processos de comparação interpessoal e interclassista, que pesam significativamente sobre as categorias populares, gerando tensão e risco acrescido de estigmatização; e iii) uma “extensão do domínio das aspirações”, resultante do maior contacto e da paulatina aproximação aos universos de sentido, normas e práticas das categorias médias e diplomadas (pp. 13-15; 27-29). “Desencravadas” e “abertas” à sociedade englobante como nunca, mas nem por isso mais protegidas face aos riscos de precariedade e marginalização no terreno económico, as classes populares contemporâneas - e, em especial, as famílias “estáveis-modestas” - constituem um segmento social clivado e heterogéneo, que por isso mesmo desafia o olhar sociológico e impõe desconfiança relativamente aos retratos unilaterais e monocromáticos que delas possam ser feitos. Mesmo aceitando que estes homens e mulheres - eles mais regularmente operários, elas mais regularmente empregadas - sejam analiticamente agrupados no segmento “popular” do espaço social, caracterizável genericamente pela “pequenez dos estatutos profissionais” que engloba, pelo “caráter reduzido dos recursos económicos” de que dispõe e pela “distância ao capital cultural” que manifesta (pp. 15-16), a verdade é que estamos perante indivíduos e famílias com origens, trajetórias, condições e projetos bastante diversos. Como estudar, então, este grupo “central”, mas muito amplo e internamente diferenciado, dos universos populares contemporâneos? A investigação a que o livro aqui recenseado se refere optou, a este propósito, por uma combinação - que se revelou heurística - entre pesquisa estatística e pesquisa monográfica. Através da construção de um dispositivo estatístico baseado na exploração e análise de dados de fontes oficiais e na elaboração de uma “cartografia fatorial” das famílias estudadas (pp. 71-76), a pesquisa procedeu a uma caracterização - explorada no Capítulo 1 do livro - da evolução, ao longo das últimas décadas, dos grupos socioprofissionais integráveis na categoria dos “estáveis- modestos”, em planos como os da situação face à atividade económica e ao emprego, rendimentos e padrões de consumo, escolarização e diplomas, origens sociais e familiares e conjugalidades. Esta caracterização permitiu, por um lado, objetivar a divisão ternária do espaço social habitado pelos grupos domésticos populares - um segmento “superior” munido de maiores recursos e mais próximo económica, cultural e socialmente das classes médias (empregados administrativos de certos setores de atividade, polícias, militares); um segmento “inferior” muito marcado pela escassez de recursos e pela precariedade económica e social (operários não qualificados, empregadas de serviços sociais e pessoais, muitas vezes imigrantes); e um segmento “mediano” distinguível daqueles dois polos (p. 65) - e, por outro lado, forneceu o enquadramento necessário a uma adequada apreciação analítica dos casos selecionados para estudo aprofundado. Enquadradas por tais elementos de caracterização, as monografias realizadas pela equipa de investigação, que neste livro surgem vertidas em 21 retratos de grupos domésticos, distribuídos por outros tantos capítulos, são a porta de entrada para a exploração de dimensões fundamentais do quotidiano destas “frações medianas” das classes populares. Ainda que elaborados em torno de um mesmo guião, os 21 retratos apresentam direções e pontos focais distintos, e estão por isso organizados em três partes temáticas, correspondentes a três eixos analíticos diferentes: numa primeira parte (Capítulos 2 a 9), trata-se de explorar as modalidades de acesso à estabilidade social em meio popular, podendo aqui observar-se a complexidade deste processo, que decorre de múltiplos fatores (propriedades biográficas individuais, efeitos de contexto e trajetória, relações conjugais e familiares); numa segunda parte (Capítulos 10 a 15), olham-se primordialmente as formas de organização doméstica e as divisões de género, focando, muito em especial, a situação laboral das mulheres, o quotidiano relacional no seio do lar e aspetos diversos relativos a estratégias de reprodução social das famílias; numa terceira parte, finalmente (Capítulos 16 a 22), observam-se práticas de sociabilidade, relações com instituições e lógicas de posicionamento face a outros grupos sociais, destacando-se a variabilidade das formas de “boa vontade institucional” praticadas por estas famílias e a consolidação no seu seio de uma “consciência social triangular” (já não a tradicional apreciação “Nós” versus “Eles”, mas um sentimento de “dupla distância” - quer face aos grupos tidos como “superiores”, quer face aos grupos populares entendidos como estando “pior”). Lidos em conjunto, estes 21 retratos de famílias “estáveis-modestas” oferecem um panorama amplo, rico e detalhado da diversidade característica dos meios populares, tal como estes podem ser observados na França dos nossos dias, e contribuem para especificar analiticamente uma noção - a noção de “popular”, ou de “classes populares” - que tantas desinteligências, mitos e equívocos continua a gerar. Sem temer a exploração de outros eixos de análise das desigualdades sociais, como os que remetem para as relações de género, a imigração, a pertença étnica ou a vinculação territorial, este livro constitui uma ilustração especialmente robusta de como a classe é um analisador teórico e prático indispensável a qualquer esforço sociológico alargado de compreensão da estruturação e devir das sociedades contemporâneas. O livro é ainda prova da vitalidade e capacidade de renovação que, ao menos em França, a sociologia das classes sociais vem demonstrando

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