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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia  no.tematico10 Porto dez. 2020  Epub 24-Mar-2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soctem2020a4 

Artigos originais

Direitos cívicos e políticos na infância e adolescência: da retórica da participação ao protagonismo infantil

Civil and political rights in childhood and adolescence:from the rhetoric of participation to child protagonism

Droits civiques et politiques dans l'enfance et l'adolescence:de la rhétorique de la participation au protagonisme de l'enfant

Derechos civiles y políticos en la infancia y la adolescencia:desde la retórica de participación al protagonismo infantil

Inês Barbosa1 

1Instituto de Sociologia da Universidade do Porto


RESUMO

Neste artigo refletimos sobre os 30 anos dos direitos civis e políticos, legitimados pela Convenção sobre os Direitos da Criança. Depois de um breve historial e enquadramento desses direitos, analisamos conceitos, práticas e arenas de participação, abrindo caminho para a defesa de uma abordagem pelo “protagonismo infantil”. Nesse sentido, a análise salienta os constrangimentos e possibilidades das iniciativas de promoção da participação. Terminamos com uma reflexão sobre os novos desafios que se colocam à cidadania infantil e juvenil, lançando algumas pistas para debate.

Palavras-chave: Direitos da criança; participação; protagonismo infantil

ABSTRACT

In this article we reflect on the 30 years of civil and political rights, legitimized by the Convention on the Rights of the Child. After a brief history and framing of these rights, we analyze concepts, practices and arenas of participation, paving the way for the defense of an approach for “child protagonism”. In this sense, the analysis highlights the constraints and possibilities of initiatives to promote participation. We ended with a reflection on the new challenges facing child and youth citizenship, launching some clues for debate.

Keywords: Children's rights; participation; child protagonism

RÉSUMÉ

Dans cet article, nous réfléchissons aux 30 ans de droits civils et politiques, légitimés par la Convention relative aux droits de l'enfant. Après un bref historique et un cadrage de ces droits, nous analysons les concepts, les pratiques et les arènes de participation, ouvrant la voie à la défense d'une approche par le «protagonisme de l'enfant». En ce sens, l'analyse met en évidence les contraintes et les possibilités des initiatives de promotion de la participation. Nous terminons par une réflexion sur les nouveaux défis auxquels est confrontée la citoyenneté des enfants et des jeunes, en lançant quelques pistes de débat.

Mots-clés: Résumé: droits des enfants; participation; enfant protagonisme

RESUMEN

En este artículo reflexionamos sobre los 30 años de derechos civiles y políticos, legitimados por la Convención sobre los Derechos del Niño. Después de una breve historia y el encuadre de estos derechos, se analizan conceptos, prácticas y espacios de participación, allanando el camino para la defensa de un enfoque de “protagonismo infantil”. En este sentido, el análisis destaca las limitaciones y posibilidades de las iniciativas para promover la participación. Terminamos con una reflexión sobre los nuevos desafíos que enfrenta la ciudadanía infantil y juvenil, lanzando algunas pistas para el debate.

Palavras clave: Derechos de los niños; participación; protagonismo infantil

Introdução

Cidadania, participação, empoderamento são conceitos que, cada vez mais, ocupam o nosso universo vocabular, em particular nos âmbitos educativos, políticos e sociais. Da legislação nacional às diretrizes europeias, não faltam artigos e alíneas que especificam a necessidade de se proporcionar tempos e espaços para que os cidadãos e cidadãs possam intervir na sociedade civil. Programas como o “Erasmus Plus” (Comissão Europeia), documentos como a “Agenda 2030” (ONU) ou iniciativas como a “Cidade Amiga das Crianças” (UNICEF) são claros nas suas intenções: é vontade generalizada das nações a construção de uma sociedade mais democrática e inclusiva, alinhada com os Direitos Humanos, sendo a participação cívica um meio e um fim para que tal aconteça.

As crianças e adolescentes têm sido um dos alvos privilegiados desse discurso emancipatório, assente numa “educação para a cidadania global” (UNESCO, 2015) promovida nos mais diversos âmbitos e modalidades (formal, informal e não-formal). Uma educação preocupada com o presente e voltada para o futuro e que permita combater o aumento da violência, racismo, extremismo, xenofobia, discriminação e intolerância (CE, 2010). No plano local, multiplicam-se instrumentos, estratégias e recursos pedagógicos nas escolas e centros de atividades de tempos livres, em projetos de intervenção comunitária, nas autarquias, entre outros. Exemplo disso, no contexto português, são os Orçamentos Participativos Escolares, os Conselhos Municipais da Juventude, o Parlamento Jovem, mas também iniciativas pontuais e territoriais, como é o caso do programa “Políticos por um Dia” da Câmara Municipal do Porto. Vários projetos socioeducativos - em particular do Programa Escolhas - promovem também mecanismos participativos nos seus territórios de intervenção. Há ainda experiências longas e sedimentadas de organização democrática - como o Movimento da Escola Moderna e a Escola da Ponte - e outras mais recentes como a República dos Jovens , em Lousada, bem como iniciativas educativas “alternativas” que têm surgido um pouco por todo o país e que colocam as crianças no centro das decisões . Também a academia, em particular no campo da sociologia da infância, tem procurado escutar e disseminar as percepções e representações infantis através de abordagens ativas e participativas (Trevisan e Fernandes, 2019).

A Convenção sobre os Direitos das Crianças, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989 e ratificada por Portugal no ano seguinte (Albuquerque, 2000), é o documento-mãe de qualquer proposta relacionada com a infância e juventude. Nela constam uma série de direitos consagrados aos indivíduos menores de 18 anos, incluindo quatro especificamente implicados na promoção da participação. Os artigos 12º, 13º, 14º e 15º determinam que todas as crianças e adolescentes têm o direito a expressar a sua opinião sobre questões que lhes digam respeito; direito à liberdade de expressão, consciência e pensamento, bem como a reunir-se e organizar-se pacificamente em associações.

Neste artigo, começamos por traçar um breve historial do processo que levou ao desenho e implementação da Convenção, dando um enfoque particular aos direitos cívicos e políticos e assinalando alguns aspetos tensos e paradoxais que põe em causa a sua efetivação. Partimos depois para uma análise sobre os conceitos, práticas e arenas de participação, abrindo caminho para a defesa de uma abordagem pelo “protagonismo infantil” (Gaitán, 1998; Alfageme et al, 2003). Posteriormente, centramo-nos em sete constrangimentos e sete possibilidades respetivas: o papel do adulto (entre a instrumentalização e a mediação); a inclusão e visibilização das minorias; a adaptação de ambientes, linguagens e procedimentos; o primado da democracia participativa; a preferência pela prática quotidiana em nome da sustentabilidade e continuidade dos projetos; a preocupação com a eficácia e relevância das iniciativas e, por fim, a aposta numa educação crítica e inconformada, em contraponto com uma cidadania encolhida e retórica. Finalizamos o artigo com uma reflexão sobre alguns fenómenos recentes que têm acontecido na esfera infantil e juvenil e sobre a forma como estes colocam novos desafios aos direitos de participação.

Como ponto de partida, não podemos deixar de proferir três ilações simples, mas fundamentais: a primeira é de que não há nenhum contexto a que a criança pertença em que não seja possível garantir-lhe direitos civis e políticos. A segunda é que cabe ao adulto proporcionar oportunidades, meios e o suporte necessário para atingir esses propósitos. A terceira é que, mais do que nunca, é importante passar dos discursos inconsequentes à sua tradução efetiva no terreno.

1. Breve história e enquadramento dos direitos civis e políticos das crianças

O surgimento da infância enquanto grupo social com direitos, liberdades e garantias pode ser situado no final do 1º quartel do século XX. Em 1919, é realizada a primeira conferência da Organização Mundial do Trabalho, estipulando-se limites ao trabalho infantil e garantindo proteção à maternidade. Nesse mesmo ano, a britânica Eglantyne Jebb cria a organização não-governamental “Save the Children” como forma de colmatar os efeitos devastadores da 1º Grande Guerra Mundial e da Revolução Russa na população infantil. No seguimento dessa movimentação, Jebb lidera uma campanha global que culmina na elaboração da Declaração de Genebra, em 1924. O conjunto de cinco afirmações - que mais tarde se alargaram a sete - determinava os “deveres da humanidade” para com as crianças. Estas deveriam ser a primeiras a ser socorridas, protegidas e cuidadas, em particular em situações de maior vulnerabilidade. Pela primeira vez, é feita a referência aos “direitos da criança” num documento jurídico (Albuquerque, 2000: 27). Trata-se de um “momento-chave de um percurso de construção e consolidação da ideia de crianças como sujeitos de direitos”, ainda que, à época, sejam sobretudo “vítimas com direitos” (Soares, 2005: 2)

Só em 1945, no rescaldo da 2ª Grande Guerra, este documento ganha nova relevância, tendo o Conselho Económico e Social das Nações Unidas recomendado a sua adoção oficial, com o “objetivo de canalizar as atenções do mundo do pós-guerra para os problemas urgentes relacionados com as crianças”. (Albuquerque, 2000). Nesse mesmo ano, é fundada a UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância, inicialmente com caráter de emergência e, mais tarde, de salvaguarda e vigilância permanente dos direitos infantis em áreas distintas: saúde, educação, nutrição, desenvolvimento, bem-estar, etc. Em 1948 é também redigida e adotada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), cujos princípios são dirigidos a todas as pessoas, independentemente da idade, género, etnia ou nacionalidade. No artigo 25º, alínea 1, é reforçado o estatuto particularmente vulnerável da infância: “A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma proteção social”.

Baseada nesses dois importantes documentos - a Declaração de Genebra e a DUDH - a Assembleia Geral das Nações Unidas proclama, em 1959, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, salientando novamente que esta, “por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, tem necessidade de uma protecção e cuidados especiais”. O conjunto de dez princípios definia, assim, o direito à vida e ao desenvolvimento, à identidade e nacionalidade, à liberdade, educação e lazer, bem como à proteção perante situações de discriminação, abandono ou violência. Contudo, essa declaração não comportava ainda quaisquer obrigações jurídicas. Só trinta anos mais tarde passou a ter uma dimensão legal e os Estados Partes passaram a ser responsáveis pelo cumprimento desses direitos.

O processo de construção da Convenção foi longo e complexo. Impulsionado pelo governo polaco, em 1978, o documento final só ficou concluído em 1989, por um lado, devido às tensões da Guerra Fria, por outro, pela dificuldade em respeitar as especificidades culturais das várias nações e, ao mesmo tempo, garantir direitos universais a todas as crianças. Apesar disso, é hoje um dos documentos mais unânimes do mundo, tendo sido ratificado por quase todos os Estados Membros . Os 54 artigos da Convenção dividem-se, geralmente, em três grandes núcleos (Hammarberg, 1990):

a) Direitos de provisão: que visam a satisfação de necessidades básicas das crianças, tais como saúde, educação, habitação, segurança social, cultura, lazer, etc.

b) Direitos de proteção: que salvaguardam as crianças em situações de negligência, discriminação, exploração, abandono, exclusão ou violência;

c) Direitos de participação: que reconhecem a identidade e nacionalidade das crianças, bem como o direito a ser escutadas, consultadas e informadas.

Este último grupo é, de facto, um dos maiores avanços relativamente à Declaração Universal de 1959, pois finalmente são reconhecidos direitos civis e políticos aos indivíduos menores de idade. Estes passam a ser vistos como cidadãos/ãs com direito a decidir, escolher e participar na vida familiar, escolar ou da comunidade. O artigo 12º reconhece o direito a expressarem livremente a sua opinião sobre questões que lhes digam respeito; o artigo 13º garante o direito à liberdade de expressão; o artigo 14º defende a liberdade de pensamento, consciência e religião e o artigo 15º assegura o direito à liberdade de associação e reunião pacífica. Podemos ainda incluir neste grupo, o artigo 16º relativo à privacidade e confidencialidade e o artigo 17º referente ao direito à informação veiculada pelos meios de comunicação social.

O Comité para os Direitos da Criança identificou o artigo 12º como um dos quatros princípios gerais da Convenção, devendo este ser entendido em estreita articulação com os artigos 2º de não-discriminação; o artigo 3º que coloca no topo das prioridades o “interesse superior da criança” e o artigo 6º referente ao direito à vida e ao desenvolvimento pleno. O artigo 12º é, pois, um artigo fundamental e transversal na medida em que é uma garantia de que os outros direitos se concretizam: quando uma criança é escutada e levada a sério está mais protegida contra qualquer forma de discriminação ou violência. (Lansdown, 2011: 31)

Se é certo que, no mundo ocidental, há um discurso generalizado sobre a criança enquanto sujeito de direitos, este tem sido sobretudo um “discurso decorativo e quimérico”. Decorativo, porque é “politicamente correto” e agrada a grande parte das pessoas, quimérico porque na maioria das vezes apesar de o invocarem, não o consideram “relevante, nem mesmo possível (ou necessário) de concretizar” (Soares, 2005: 1). Se os direitos de proteção e provisão têm tido, nas últimas décadas, grandes progressos, o mesmo não se pode dizer relativamente aos direitos de participação. Estes têm-se caracterizado por “um alto consenso” e uma “baixa intensidade” (Casas, 1998) Elencamos aqui alguns dos aspetos mais frágeis da Convenção e que têm colocado entraves na sua efetivação:

1) A infância tem sido vista sobretudo a partir de um prisma de menoridade e de incompletude, uma etapa de vida cujo propósito é deixar de o ser (Jenks, 2005). A criança ainda-não é autónoma, ainda-não trabalha, ainda-não vota, como poderemos falar de participação cívica ou política? (Alfageme et al, 2003: 43). Na melhor das hipóteses, ser-lhes-ia conferido o estatuto de semi-cidadão ou futuro cidadão e cidadã. Se a infância é uma construção social esta é, em grande medida, construída pelo adulto (Tomás e Soares, 2004: 350) que a vê como um ser humano particularmente desprotegido, dependente ou inapto. Se para um segmento considerável dos agentes educativos, a participação infantil é já um dado adquirido (ainda que frequentemente se fique pela teoria), para muitas pessoas, o simples facto de as escutar ou validar o que dizem é entendido como inadequado. Os argumentos são de várias ordens, Lansdown (2011: 12-16) aponta alguns deles: faltam-lhes competências, conhecimentos ou capacidade de discernimento; é uma responsabilidade excessiva que os vai retirar do mundo onírico da infância; os adultos é que sabem o que é melhor para elas; dar-lhes demasiado protagonismo transformá-las-á em pequenos tiranos prepotentes: “Primeiro os deveres, mais tarde os direitos”.

2) Em linha com esta visão, a criança surge numa perspetiva de vulnerabilidade. Faltando-lhe meios próprios para se desenvolver e para se defender, precisa de ser educada e protegida por quem detém a autoridade e o poder, ou seja, o adulto. Predominam, pois, paradigmas de "paternalismo, propriedade e domesticação" bem como de "proteção e controlo" (Tomás, 2007) em que a criança, em vez de sujeito, é vista como objeto, uma propriedade dos pais, com pouca ou nenhuma autonomia para gerir o seu quotidiano, para controlar as suas decisões, para determinar os seus tempos e espaços em liberdade. O discurso jurídico plasmado na Convenção encontra-se profundamente marcado por esses paradigmas, gerando debilidades e ameaças à concretização dos direitos de participação, na medida em que pressupõe relações assimétricas entre adultos e crianças. (Alfageme et al, 2003: 32) O facto de o documento ter sido redigido como resposta à crise e barbárie provocada pelas duas Grandes Guerras Mundiais, terá contribuído para que os direitos de proteção e provisão tivessem tido sempre um lugar de relevo, em detrimento dos direitos cívicos e políticos.

3) Ainda que as crianças tenham direitos próprios e uma Convenção só delas, são particularmente dependentes do cumprimento dos direitos dos adultos cuidadores. Ou seja, a infância é um grupo social particularmente vulnerável não só porque tem menos meios para se defender ou autonomizar, mas também porque está subordinada às condições de vida dos adultos. Por exemplo, o trabalho precário, o desemprego e a pobreza afectam a democracia, pois limitam as possibilidades de participação cidadã (Ferreira, 2010). Como podemos assegurar a participação de um aluno ou aluna se os encarregados de educação, os assistentes operacionais ou os/as docentes não são incluídos nas decisões da escola? Como podemos garantir que a criança tenha liberdade de escolha em casa quando a família é afetada pela precariedade e pelos efeitos das políticas económicas (Sarmento et al., 2015)? Como pode um médico de família responder às inquietações e indagações de um/a adolescente se tem um tempo limitado para o atender? Para garantir direitos aos mais novos é necessário respeitar os direitos dos mais velhos.

4) Outro aspeto a ter em conta é a tensão entre universal e singular, individual e coletivo. A pretensão de se escrever uma convenção universal não deixa de ser contraditória com o conceito de infância enquanto grupo social heterogéneo composto por realidades e experiências particulares. Vale a pena lembrar que o documento abrange todos os indivíduos menores de 18 anos , estando incluídos nesse grupo bebés, crianças e adolescentes com competências, necessidades e interesses naturalmente diversos. Para além da dimensão etária, o documento é frágil no que se refere às interseções de género, etnia, classe ou geografia. O facto de ter sido redigido com escassa presença dos países do Sul explica em parte essa situação (Martinez & Martinez, 2001). Se os mais novos partilham entre si a condição de subordinação face ao poder dos adultos, “uma reflexão atenta torna evidente a diferença do impacto deste poder entre as crianças dos diversos grupos sociais” (Madeira, 2015: 65). Por outro lado, o facto de estes direitos serem “invocados, exercidos e gozados individualmente” (Alfageme et al, 2003: 33) cria obstáculos concretos à ideia de um grupo social reunido por interesses comuns que se organiza para lutar pelas suas reivindicações.

5) Uma outra crítica importante relaciona-se com o modo como os direitos estão formulados, pois o seu caráter generalista dá pouca margem à sua aplicação, tornando-os na prática inoperantes (Alfageme et al, 2003: 31-33). Cabe ao adulto (mais uma vez) definir o “interesse superior da criança”, interpretar o seu “grau de maturidade” ou perceber se a sua “liberdade de expressão” vai ou não contra a “ordem pública”. Aliás, as adendas que se encontram nalguns artigos representam uma clara discriminação relativamente aos menores de idade. Os artigos 13º, 14º e 15º da Convenção consideram que o exercício desses direitos (liberdade de expressão, pensamento, consciência, religião, reunião e associação) podem ser “objeto de restrições previstas na lei”, “no interesse da segurança nacional ou da segurança pública, da ordem pública, para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades de outrem”. Direitos análogos para os adultos encontram-se na Constituição da República Portuguesa (artigos 45º e 46º), na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 20º) ou na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (10º, 11º e 12º), sem, contudo, apresentarem qualquer tipo de ressalva.

6) Por fim, as crianças são o único grupo social para quem foram elaborados direitos que não resultaram de um movimento político ou de uma conquista, como aconteceu no caso das mulheres, dos negros ou dos indígenas. Foram atribuídos direitos às crianças e adolescentes, mas estes não fizeram parte dessa construção, nem tão pouco foram consultados sobre os mesmos (Madeira, 2015: 68). Não sendo a Convenção o resultado de um processo participativo com os principais interessados, importa repensá-la e adaptá-la aos dias de hoje e aos contextos particulares, a partir de um diálogo vigoroso e fecundo que permita ter em conta as suas culturas próprias, os seus anseios e os desafios que os esperam. Isso obriga a um trabalho continuado e de proximidade entre os vários atores educativos e sociais. Implica também abrir mão do poder absoluto do adulto para escutar, verdadeiramente, as crianças e adolescentes.

Não esquecendo as longas e repetidas atrocidades cometidas contra as crianças em países em guerra, como a Síria ou o Afeganistão; em campos de refugiados como Moria ou Calais; em determinadas culturas onde ainda se dão casamentos forçados ou a mutilação genital feminina; em muitos territórios onde a forme e pobreza extrema continuam a condenar à morte os mais novos, entre muitos outros exemplos desoladores, podemos afirmar sem quaisquer dúvidas que, no último século, muitos avanços se deram no campo da proteção e provisão das crianças. Não faltam, porém, novos e complexos desafios, para os quais a sua participação efetiva pode resultar numa das estratégias mais importantes de os resolver e combater.

2. Espaços, tempos e mecanismos de participação: em defesa do protagonismo infantil

Comecemos pelo óbvio: o que entendemos por participação das crianças e das/os adolescentes? A palavra “participar” deve ser conjugada com muitos outros verbos: expressar necessidades e interesses; ser escutado, informado e questionado; influenciar, negociar e tomar decisões; fazer parte das instituições por onde se movem; ser agentes ativos e críticos na transformação dos seus mundos de vida. Quando dizemos que todas as crianças têm direito a participar queremos, pois, afirmar que estas devem ser incluídas em todas as matérias que as afetam, enquanto indivíduos e enquanto grupo social, num processo que se pretende contínuo e permanente. E que lugares são esses, onde elas podem intervir? Todas as arenas que estas ocupam: a família enquanto primeira instância socializadora; o infantário ou a escola, onde passam grande parte do quotidiano; os espaços de lazer, desporto ou cultura que frequentam nos tempos livres; as instituições judiciais, de saúde ou de proteção social com as quais contactam de forma mais ou menos pontual; e também os órgãos locais e nacionais, como as juntas de freguesia ou o governo.

Para evitarmos abstrações, os direitos civis e políticos das crianças traduzem-se em pequenos e grandes atos em que é dada visibilidade e importância ao que pensam, sentem e necessitam. Respeitar o artigo 12º no contexto familiar pode passar por atitudes simples como incentivar a criança a escolher a decoração do quarto ou negociar o tempo permitido para estar no telemóvel. Na esfera escolar, pode significar ser eleito para delegado/a de turma, seleccionar em consenso a ementa da cantina ou fazer parte da decisão sobre a sua própria retenção. No ATL ou noutro espaço associativo, cultural ou desportivo, os direitos de participação podem implicar a definição conjunta de regras, horários ou atividades. No campo da saúde ou da justiça implicará ser informado de todos os procedimentos para poder decidir em consonância. Intervir no bairro ou na cidade incluirá participar em fóruns ou comissões ou ser convidado a fazer parte de projetos de melhoria do espaço público. Os mecanismos de participação são, por isso, também eles plurais. Desde o diálogo informal à negociação institucional, passando pelos grupos focais, os inquéritos, as entrevistas, até dispositivos mais criativos, como a cartografia visual, o role-playing, o photovoice, ou mais disruptivos, como as manifestações, as petições ou mesmo a greve (Soeiro, 2019).

O grau e intensidade da participação difere bastante, não só tendo em conta a idade e maturidade das crianças, mas também consoante os contextos onde esta decorre, os objetivos que se pretende atingir ou as oportunidades que são proporcionadas. Para discutirmos esta questão, mobilizamos três referências importantes: Roger Hart, Gerison Lansdown e Lourdes Gaitán.

Roger Hart (1992) construiu uma “escada da participação” constituída por oito degraus que atribuem uma progressiva agência às crianças e jovens. Na base da escada, estaria a “manipulação” - as crianças intervêm em função dos interesses dos adultos ou não há uma partilha de informação transparente; a “decoração” - as crianças servem apenas para adornar determinado projeto e iniciativa; e o “tokenismo” - apesar da aparência de se ter em conta as suas opiniões, estas têm pouco ou nenhum impacto significativo. Nos três casos, estaríamos perante formas de “não-participação.” Nos degraus seguintes, a intervenção das crianças pode ir desde a simples partilha de informação, ser consultada e tida em consideração, a projetos nos quais são estas quem inicia e dirige todo o processo.

Lansdown (2011: 147-15) identifica três categorias que podem ser mobilizadas em diferentes contextos e de acordo com os objetivos a atingir. Estas pressupõe diferentes níveis de empoderamento: a participação consultiva, em que os processos são conduzidos e iniciados por adultos servindo, essencialmente, para obter informações sobre a perspetiva das crianças em relação a determinados tópicos; a participação colaborativa que, apesar de encetada por adultos, permite uma maior colaboração e ação por parte das crianças; e a participação liderada por crianças que as responsabiliza pelos processos e pelos resultados, funcionando o adulto apenas como mediador.

Por fim, Gaitán (1998) utiliza o termo “protagonismo infantil” para designar “o processo social mediante o qual meninas, meninos e adolescentes desempenham o papel principal no seu desenvolvimento e no da sua comunidade”, tendo em vista “alcançar a realização plena dos seus direitos”. Desse protagonismo fazem parte três fases vinculadas entre si: a organização, a participação e a expressão infantil. Esses mecanismos que, ainda que em intensidades e formatos diferentes concorrem para o mesmo, aspiram à sensibilização da família e de outros setores ligados à criança; à participação da sociedade civil a favor dos seus direitos e ao compromisso das autoridades para impulsionar políticas públicas congruentes com esse projeto. (Gaitán 1998: 85-86)

O discurso do protagonismo infantil é ainda pouco difundido na Europa, surgindo fundamentalmente das experiências dos movimentos de Meninos e Meninas Trabalhadoras da América do Sul. Partindo das origens etimológicas da palavra “protagonismo”, Alfageme et al (2003) reforçam que esta significa: “ter poder e conduzir”, “lutar e esforçar-se”, ou, tão somente, “dignidade”. Não se trata de “inverter a situação de dominação e entregar o poder às crianças” - como numa “infantocracia” - mas abrir espaço para uma convivência em que este grupo social seja tido como competente e um “ator social relevante”. (Alfageme et al, 2003: 48-49) No entender destes autores, este conceito representa um “salto qualitativo” relativamente aos direitos de “participação”. Na secção seguinte, damos conta de alguns obstáculos e também de algumas possibilidades que nos permitem dar esse salto, rumo a uma cidadania plena, mas também rebelde e inconformada.

3. Obstáculos e possibilidades de participação: de que cidadania estamos a falar?

Apesar dos esforços que têm movido escolas, projetos sociais ou municípios, o contexto português ainda é pouco profícuo no que à participação infantil e juvenil diz respeito. Isto num país que conta com taxas crescentes de abstenção, com níveis cada vez mais baixos de participação associativa, sindical e partidária; e cujos índices de desconfiança e desafeição política descem a pique (Lobo, 2015; Ferreira, 2016; Ferreira, 2018). De um modo geral, diríamos que muito se encontra por fazer e quando assim é vale a pena assentarmos as bases daquilo que seria a conjuntura ideal, esboçando um caminho utópico pelo qual nos podemos guiar. De seguida, enunciamos sete proposições que refletem alguns constrangimentos e possíveis respostas para os mesmos. Não se trata de uma receita a ser aplicada, mas sim de reflexões que têm por objetivo estimular a discussão e provocar alternativas. Um aspeto que vale a pena realçar nesta discussão é que alguns dos constrangimentos e possibilidades dos direitos de participação que aqui enunciamos são semelhantes aos dos adultos. Assim como o princípio de Tonucci (2009) de que uma cidade boa para as crianças é uma cidade boa para toda a gente (para os idosos, para os doentes, para as minorias), também uma democracia boa para as crianças o será também para muitos adultos, sobretudo aqueles que se encontram cada vez mais arredados ou descrentes da política e dos processos participativos.

1) Mediação e cumplicidade: o papel do adulto

Visto que, na grande maioria das vezes, as iniciativas e projetos são liderados e organizados por adultos, facilmente se produzem mecanismos, mais ou menos conscientes, de controlo, manipulação ou instrumentalização. Promover tempos e espaços de participação não significa tomar a palavra, ocupar o lugar ou intrometer-se nos seus assuntos. O adulto deve criar mecanismos de apoio e suporte, estimulá-los a organizarem-se, dar-lhes a informação necessária, garantir-lhes meios e oportunidades para que consigam ampliar a sua voz, mas sem estar permanentemente presente, sem dirigir ou influenciar opções, estratégias ou decisões. O poder do adulto é demasiado grande para ser negligenciado ou ignorado. A expressão que Rosa Madeira (2015: 73) utiliza, “cumplicidade”, é talvez a que mais se aproxima daquilo que entendemos do seu papel. Este deve ser um aliado, um mediador, um parceiro nas lutas, mantendo-se, sempre que possível, invisível, permitindo que sejam as crianças as protagonistas, preferencialmente, de uma forma auto-organizada.

2) Da discriminação à inclusão: a participação é para todos/as

Seja a uma escala pequena como uma turma, como ao nível nacional ou internacional, os mecanismos participativos frequentemente excluem inúmeros segmentos marginalizados: as raparigas, as minorias étnicas, os mais pobres, os menores institucionalizados, os que têm necessidades educativas especiais, etc. Aqueles que têm direito a expressar-se e a ser escutados nas suas ideias e opiniões são, por isso, um grupo privilegiado. Em qualquer processo, é fundamental assegurar a inclusão de todas as crianças e jovens, tendo em conta aspetos com o género, a etnia, a classe social, a idade ou a condição física e mental. Estejamos a falar de eleições para delegado/a de turma ou para a presidência da Associação de Estudantes, de um Conselho Municipal da Juventude ou de iniciativas pontuais em que é necessária a constituição de um grupo, devemos procurar sempre garantir o máximo de representatividade possível, evitando que, sistematicamente, sejam escolhidos os melhores, os mais bem-comportados, os brancos de classe média ou os que têm um perfil de liderança.

3) Adaptação dos ambientes, linguagens e procedimentos

Apesar das boas intenções, muitos dos projetos participativos são uma imitação dos processos dos adultos, não correspondendo aquilo que é a cultura infantil e juvenil. Apelidá-los de “senhor deputado”, dar-lhes 2 minutos para exporem as suas ideias ou fomentar procedimentos burocráticos e entediantes são formas muito distantes das suas realidades. Essa mimetização, aliás, pode extravasar e alimentar alguns “vícios” das nossas democracias: a competitividade, as hierarquias ou a corrupção. Os moldes em que essa participação se dá têm de ser (re)pensados de acordo com as competências e necessidades de cada grupo ou indivíduo. É fundamental proporcionar condições para que ela aconteça e seja apreendida por todos os intervenientes e, para isso, é necessário adaptar recursos, ambientes, regras, equipamento, linguagem, ritmos. A participação deve, pois, ser “ativa, crítica e cuidadosamente preparada, atendendo à complexidade e assimetria das relações sociais” (Madeira, 2015: 69), garantindo a possibilidade de captar a autenticidade das suas vontade e propostas (Gaitán, 1998: 91).

4) Predomínio dos processos de democracia participativa

Muitos dos processos que se dão em escolas, projetos ou municípios baseiam-se na representação: o porta-voz, a delegada, o dirigente da associação de estudantes, a Embaixadora da Juventude. Perde-se, pois uma oportunidade para escutar um número amplo de indivíduos, para estimular o dissenso e ampliar o debate democrático, optando-se por uma figura que a todos/as representa. Devemos encarar todos os contextos - a escola, o ATL ou o clube desportivo - como laboratórios privilegiados de aprendizagem da democracia, favorecendo os mecanismos de participação em detrimento dos de representação. Eleições para associações de estudantes, parlamentos jovens, orçamento participativo, conselhos municipais da infância ou da juventude são mecanismos interessantes, mas, por um lado, são muitas vezes utilizados de forma pouco transparente ou genuína e, por outro, não garantem de todo a efetivação dos direitos de participação de todos e todas. Ao mesmo tempo, devemos ser cautelosos com o que queremos transmitir com a figura do líder. São os ideais empreendedores? Do self-made-man? Dos vencedores e dos vencidos?

5) Práticas quotidianas, continuadas e sustentáveis

Porque as sociedades contemporâneas são cada vez mais vividas a contra-relógio, porque as ONGs e grande parte dos projetos de intervenção educativa e social estão, muitas vezes, dependentes de financiamentos pontuais, o facto é que muitas das iniciativas (mesmo as mais louváveis) têm um tempo limitado e condicionado. Neste sentido, mais do que momentos rebuscados de participação política, precisamos encarar o exercício dos direitos civis das crianças como ações simples, permanentes e abrangentes de intervenção nos diferentes mundos de vida. No contexto escolar, por exemplo, não faltam ocasiões para democratizá-la: decidir o regulamento interno, organizar a oferta extracurricular, preparar as visitas de estudo, dos aspetos mais corriqueiros aos grandes empreendimentos, a escola pode ser toda uma experiência democrática. Expressar ideias e aspirações, levar avante projetos de transformação do entorno, controlar os aspetos que lhes dizem diretamente respeito não devem ser entendidos como “cerimónias” mas como gestos rotineiros. Só isso poderá garantir a continuidade e a sustentabilidade das práticas e dos conceitos democráticos.

6) Participação com retorno: eficácia e relevância

Convocam-se as crianças e adolescentes, auscultam-se as suas preocupações, desenham-se com eles propostas de mudança, divulgam-se até os resultados desses encontros, mas no final da história nada acontece, gerando desânimo nos envolvidos/as e pouco ou nenhum impacto no meio social em que se encontram. A participação deve ser consequente e deve ser relevante; para isso tem de ser genuína: tem de partir de problemas concretos, tem de implicar processos por vezes difíceis, tem de ter objetivos claros e concretizáveis. De pouco serve elaborar projetos muito bem conseguidos, se no final das contas estas ficam nas gavetas, sem qualquer resultado prático. A ineficácia não só é motivo de frustração, como é geradora de um sentimento de desafeição face aos processos participativos (“não vale a pena”, “não serve para nada”) que se prolongará numa atitude futura face à democracia.

7) Por uma cidadania crítica e inconformada

Apesar de um discurso enaltecedor da “cidadania”, muitas vezes os decretos, alíneas e recomendações não saem do papel. Isso pode acontecer devido a impedimentos burocráticos, a limitações institucionais, à ausência de indicações concretas ou, simplesmente, à falta de vontade dos adultos que veem na participação infantil uma ameaça ao seu próprio poder. Além do mais, essa cidadania “abstrata” rege-se frequentemente por conceções e práticas politicamente corretas que frequentemente se confundem com civismo: vamos formar o “pequeno cidadão bem-comportado”. Dá-se uma participação encenada, apenas para “cumprir calendário”. Enquanto o “civismo” e a “civilidade” remetem para o cumprimento das regras do “bom comportamento”, numa lógica de obediência e de mera adaptação às características e às condições do mundo em que vivemos, a perspectiva da “cidadania” insere-se numa lógica emancipatória de transformação social (Ferreira, 2010). É paradoxal, no entanto, que estando o mundo cada vez mais dominado por um capitalismo financeirizado, a “educação financeira” seja inserida no currículo escolar como componente da designada “educação para a cidadania”, tornando-se, assim, um instrumento de doutrinação capitalista (Ferreira, 2020). Se realmente queremos dar voz às crianças, temos de abdicar do poder instituído e arriscar que estas tenham perspetivas diferentes das nossas. Por cidadania não entendemos civismo, conformismo, consenso, acatamento acrítico das normas e orientações, mas sim um posicionamento informado, por vezes questionador e insurgente, por vezes desassossegado e inconveniente. Caso contrário, estamos destinados a reproduzir ou mimetizar a democracia coxa que os adultos persistem em defender ou, pelo contrário, a descredibilizar.

Cidadania (tal como participação ou democracia) é um conceito de fácil apropriação. Importa sublinhar que a cidadania não é uma “mera concessão do Estado”, mas sim produto de conquistas e lutas sociais; como tal, é fruto de um processo “épico e histórico que tem a ver com a vitória frente ao poder instituído e que, seguramente, tem a ver com a educação e com a capacidade de ter voz e usar a palavra, e de agir de acordo com ela” (Afonso & Ramos, 2007: 82). Nesse sentido, a educação para a cidadania que se procura alimentar é a da discussão, da crítica, da interrogação (Ribeiro et al., 2014: 26-27). Se o objetivo principal de qualquer projeto educativo emancipatório é “recuperar o nosso inconformismo e a nossa rebeldia”, a “nossa capacidade de espanto e de indignação” (Santos, 2009: 18), será preciso (também) redefinirmos e reapropriarmo-nos do conceito de cidadania, na teoria e na prática. Cidadania como aprendizagem coletiva que se dá através da experiência e participação em múltiplos espaços e tempos, não sendo, portanto, uma vivência singular nem um dado adquirido a partir do nascimento ou do local onde se vive. Cidadania assente na análise e questionamento da realidade e que supõe um posicionamento político, não sendo, pois, um conceito neutro ou inócuo que procura ocultar as relações de poder. Cidadania orientada para a reivindicação de direitos, não sendo, por isso, uma forma de garantir cidadãos “mais civilizados” e integrados numa sociedade injusta. Cidadania que vê na diversidade (de condições, de ideias, de posicionamentos) material bruto para trabalhar e não um obstáculo a abater. Cidadania que busca a autonomia e a liberdade, não sendo, portanto, uma competência adequada para servir o mercado de trabalho. Este é o conceito de cidadania que nos parece fecundo para alimentar a transformação social e a luta por uma educação crítica emancipatória (Barbosa et al, 2013).

4. Transformações sociais e desafios da participação: pistas para um debate futuro

Se dificilmente podemos falar de uma infância ou adolescência universal - no sentido de uma realidade partilhada geracionalmente - há fenómenos que se têm afirmado de uma forma clara nos últimos anos e que têm contribuído para o surgimento de novos regimes de controlo e para o enfraquecimento dos direitos de cidadania (Qvortup, 2008). Por um lado, uma tendência para a institucionalização e domesticação do quotidiano. Hoje, grande parte da rotina diária das crianças e adolescentes é passada em atividades estruturadas (Silva, 2012), espaços esses organizados, regulados e controlados por adultos, perpetuando e reforçando relações de dominação e poder (Lima, 1989). Ao mesmo tempo, expressões como "geração bolha" ou "pais-helicóptero" designam uma tendência crescente para a hiperproteção e infantilização, alimentada numa cultura do medo que coloca, seriamente, em causa a sua autonomia (Malone, 2007; Stokes, 2009). As cidades vão-se transformando num conjunto fragmentado de “ilhas” (Zeiher, 2003), por onde as crianças circulam, mediados pelo adulto e pelo carro que a transporta. Em vez de "lugar de encontro e intercâmbio", o mundo urbano converte-se na "separação e especialização dos espaços e das competências (Tonucci, 2009: 149). As crianças são assim segregadas do mundo dos adultos, destinadas a ocupar os "espaços próprios" construídos para elas (Olwig & Gullov). “O afastamento espacial das crianças, ou a sua restrição” funciona assim como “um afastamento da possibilidade de produção” de uma “autoconsciência como ser da cidade e como interveniente na vida em comum" (Sarmento, 2018: 235). A recente pandemia do covid-19 veio intensificar todos estes fenómenos: mais tempo em casa, mais supervisão e controlo, mais suspeição em relação ao “outro”, menos usufruto dos espaços e tempos coletivos.

Ora, todas essas transformações têm um impacto direto no modo como observamos os direitos civis e políticos das crianças e adolescentes na atualidade. Os ritmos de vida “24 sobre 7” dificilmente dão espaço aos processos morosos de participação. Quem é o pai ou mãe que opta por deixá-la escolher a roupa que quer vestir quando se prepara para mais uma saída de casa apressada? Que escola pode implementar procedimentos consultivos ou deliberativos quando há programas curriculares para cumprir? A domesticação e institucionalização dos quotidianos é também incompatível com metodologias participativas que requerem interações menos hierárquicas e estruturas mais flexíveis. Da mesma forma que dificilmente podemos falar de “cidadania” sem uma educação para a autonomia que promova a agência, a capacidade de escolha e a resolução de problemas. Por fim, numa cidade “especializada” e fragmentada, marcada pela aversão ao desconhecido e à diferença, será pouco provável construirmos diálogos capazes de proporcionar um projeto comum.

Ao mesmo tempo, temos vindo a assistir ao surgimento de líderes muito jovens capazes de mobilizar outros e outras para as suas lutas, umas com mais notoriedade como a Greta Thunberg, jovem sueca ativista pelo clima, ou Malala Yousafzai, que tem lutado pela educação das raparigas no Paquistão e que recebeu o prémio Nobel da Paz antes de completar 18 anos. Outras figuras menos conhecidas, como Felix Finkbeiner, o menino de nove anos que iniciou a iniciativa mundial “Plant-for-the-Planet”; Ahmed Tamin que se tornou um ícone da resistência contra a ocupação israelita ou Olga Misik, um dos rostos do movimento russo pró-democracia. Muitos outros “exemplos sem nome” têm estado nas frentes de combate (Liebel e Gaitán, 2019): o Movimento Latino-Americano de Meninos, Meninas e Adolescentes Trabalhadores (Peru e Bolívia) que, em 2012, lutou pelo direito ao trabalho digno; o Movimento dos Sem-Terrinha, também no Brasil, que em 2018 realizou o seu primeiro encontro nacional; as centenas de milhares de jovens nos EUA que, em 2018, organizaram e participaram na “Marcha pelas Nossas Vidas” pela restrição da posse de armas; ou um número semelhante de crianças e adolescentes que, no mesmo ano, no Bangladesh, se recusaram a ir à escola em protesto contra a falta de segurança rodoviária. Sem episódios ou movimentos semelhantes no contexto português, podemos ainda assim dar conta do crescente número de adolescentes nas marchas feministas, LGBT+, anti-racistas ou pela justiça climática.

Diríamos, pois, que estamos numa encruzilhada. Se é verdade que vivemos tempo de apertado controlo que afetam de forma particular as crianças e adolescentes, também é verdade que assistimos a um conjunto de mobilizações individuais e coletivas nas quais estas assumem protagonismo. Não faltam vantagens para se levar a sério os direitos civis e políticos quer para as crianças e jovens, quer para os adultos com quem se relacionam, como para as instituições e sociedade no geral: a) contribui para o seu desenvolvimento pessoal e social (auto-estima e auto-confiança, competências interpessoais, habilidades cognitivas); b) permite aceder aos interesses, necessidades e expetativas das crianças e jovens, conduzindo a melhores tomadas de decisão no que a eles diz respeito; c) protege as crianças e adolescentes de situação de violência e opressão, no sentido em que dá visibilidade e importância à sua condição; d) auxilia na construção de um sentido de pertença e de uma sociedade mais democrática, pautada por valores de igualdade, solidariedade e justiça. (Lansdown, 2011: 5-11) “O que importa não é, portanto, reclamar o direito ao voto ou o acesso das crianças aos espaços de acção política criados pelos e para os adultos. O que interessa é que estas instâncias políticas, formalmente instituídas e reguladas, garantam formas de escutar a voz" (Madeira, 2013: 158).

Enquanto grupo social, as crianças e adolescentes partilham interesses, objetivos e reivindicações comuns, são capazes de elaborar raciocínios lógicos, prestar atenção às necessidades dos outros, escolher conscientemente as decisões que melhor lhes convém, empregar procedimentos democráticos justos. Se são atores sociais condicionados pelas estruturas e processos sociais, são também capazes de as influenciar e transformar (Pavez-Soto e Kattan, 2019). Se não quisermos estar a “brincar” à participação, temos de arriscar dar-lhes poder efetivo (Barbosa, 2019). Isto para que, num futuro próximo, em vez de estarmos a discutir formas de lhes proporcionar espaços e tempos - programados e controlados por nós - para que estes se possam expressar, possamos estar a debater movimentos sociais e outras formas mais fluídas de auto-organização infantil e juvenil em que o nosso papel é sobretudo de parceiros de luta.

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1http://www.escolamoderna.pt/

2http://www.lousadaoeste.org/index.php?option=com_sppagebuilder&view=page&id=4&Itemid=206

3“A Terra” (Viana do Castelo); “O mundo somos nós” (Braga); “A Oliveira” (Algarve) ou a OSMOPE (Porto) são alguns dos exemplos de projetos educativos privados assentes na participação das crianças.

4Há algumas reticências relativamente ao termo “infantil” por este também servir de insulto e menorização. Neste artigo, usamo-lo de forma consciente e crítica.

5Atualmente, apenas os EUA não assinaram a Convenção sobre os Direitos da Criança.

6Há quem inclua um quarto grupo - “Direitos de Prevenção” - destinados a prevenir situações de risco. (Alfageme et al, 2003: 31)

7No Brasil foi concebido o Estatuto da Criança e Adolescente, enquanto complemento da CDC, diferenciando as crianças (até aos 12) dos adolescentes (12 aos 18 anos).

8Contava Gabriela Trevisan, no debate sobre cidadania e participação infantil na FLUP que, num desses processos assembleários, uma das crianças confessara a sua angústia por não saber quanto tempo duravam dois minutos e, muito menos, quantas ideias cabiam neles.

9Gaitán chama a atenção para a figura complexa do “líder” infantil: os bem-comportados que se alinham sempre com os adultos, os super-heróis que se sentem superiores aos companheiros ou os desmotivados que não querem assumir esse papel. (1998: 88-89)

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