SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.41PEREIRA, Luís Moniz; LOPES; António (2020), Máquinas Éticas. Da Moral da Máquina à Máquina Moral, Caparica, NOVA.FCT Editorial. índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.41  Porto jun. 2021  Epub 25-Fev-2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soc41r2 

Recensão

AMIROU, Rachid (2007), Imaginário Turístico e Sociabilidades de Viagem, Vila Nova de Gaia, Estratégias Criativas

Eduardo Silva1 

1Faculdade de Letras da Universidade do Porto


Originalmente publicado em 1995, Imaginário Turístico e Sociabilidades de Viagem é o primeiro livro do sociólogo e antropólogo Rachid Amirou. Neste, refuta discursos que distinguem viajantes de turistas1 e reaproxima o turista do peregrino, o seu “modelo original” (Amirou, 2007: 31). Destacando que ambos foram historicamente movidos pelo mistério e pelo fascínio, releva a importância dos turistas para os lugares turísticos, os quais se tornam turisticamente atrativos após serem sacralizados segundo o processo de sacralização proposto por Dean MacCannell2, pela constituição de comunidades emocionais “efervescentes” que elevam espaços do “anonimato” consagrando-os em “atracção”, e/ou pela sua marcação por uma “presença” histórica ou cultural (Amirou, 2007: 62-64). Denotando a relativização e equivalência dos objetos turísticos segundo lógicas de consumo colecionistas e a diferenciação dos lugares pela sua atratividade para a prática turística segundo ideias e representações consolidadas no imaginário turístico, Amirou afirma que o turismo criou o indivíduo “poli-espacial” cuja identidade se renova constantemente pela viagem, a qual se torna o meio deste se reunificar (2007: 65-67). E dentro do “espaço turístico”, faz a diferenciação do “espaço do turismo”, com existência material exterior aos indivíduos, do “espaço do turista”, com existência imaterial e induzido nos indivíduos por um “discurso global” turístico (Amirou, 2007: 86). Assim, o espaço turístico torna-se impregnado de emoções e o espaço do turismo uma metáfora para o “Paraíso” onde estas se projetam e no qual os indivíduos transgridem de forma livre (Amirou, 2007: 94-95). Além disto, este autor identifica nos apelos à viagem dos discursos globais do turismo um processo de domesticação dos lugares turísticos que atenua os perigos do desconhecido e induz uma “harmonização tranquilizante” dos seus opostos - próximo/longínquo, terra/mar, baixo/alto, estada/expedição - que convergem na imagem dum “Centro” sagrado que os indivíduos, localizados a priori num quotidiano periférico e profano, devem alcançar (Amirou, 2007: 101-102). Salientando a influência das mobilidades tradicionais da peregrinação nas mobilidades turísticas contemporâneas, Amirou deslinda o “rito de passagem” dos turistas que voam para o seu destino turístico: na sala de espera, os indivíduos distanciam-se das suas obrigações quotidianas e aproximam-se dum “alhures” de liberdade; no voo, esbatem-se as condicionantes de classe e forma-se uma comunidade momentânea de passageiros reforçada pela partilha comum do espaço e da experiência; no destino, dá-se a suspensão dos estatutos, das conveniências, das interdições e dos papéis sociais na condição de turista (2007: 119-130). Abordando a jornada do peregrino, este autor problematiza o preconceito do seu caráter rígido sublinhando a “diluição progressiva do alibi religioso” em motivação turística dado que na idade média a peregrinação concedia aos indivíduos uma “justificação idónea” para “ir de férias” (Amirou, 2007: 135-140). Assim, na sua visão, tal como o turista que ruma ao seu destino turístico, a peregrinação tem início na devoção privada do indivíduo que ruma ao seu santuário sagrado para se juntar a outros indivíduos devotos, uma jornada que peregrinos de diversas classes sociais cumprem segundo rituais de passagem para se isolarem do profano, adotando comportamentos e vestuário simples em busca da regeneração dos valores originais da religião comunitária e de um ideal de communitas (Amirou, 2007: 136-137).

Focando-se no comportamento dos indivíduos durante as férias, Amirou afirma que este resulta da combinação de duas lógicas: comunal, baseada na peregrinação e num ideal de “communitas”; diferencial, baseada na sociedade de corte e num ideal de “societas” (2007: 154). Este autor reconhece as origens aristocráticas do turismo contemporâneo e as suas heranças, como o modo de “saber-ver” dos “grandes viajantes” (Burgelin, 1967, citado em Amirou, 2007: 163) românticos que encontra tradução no olhar turístico contemporâneo com o distanciamento simbólico de ordem “cultural” (Affergan, 1987, citado em Amirou, 2007: 163) criado entre o turista e o objeto do seu olhar. Ademais, demarca a transição duma idealização aristocrática da natureza para um romantismo burguês e urbano, visível nas consequências da ocupação massiva de espaços urbanos densamente povoados pelo turismo de massas, na idealização de alguns grupos ocupacionais enquanto “sobreviventes de um mundo idílico” e na aceção do passado como “tempo edénico” em que o Homem vivia em perfeita harmonia com a natureza, idealizações perpetuadas no imaginário turístico contemporâneo pela publicidade (Amirou, 2007: 166). Tal como outrora na grand tour, Amirou refere que é também discernível no turismo contemporâneo uma aprendizagem “relacional” - os indivíduos interiorizam novos conhecimentos pela prática de sociabilidade durante a viagem (2007: 160-161). É também através dessa prática que os turistas contestam as hierarquias sociais do seu quotidiano e a posição que nelas ocupam, um exercício de libertação que contrasta com o que carateriza ser uma busca destes indivíduos por uma aceitação afetiva num “Nós”, abrigando-se numa “bolha turística” (Amirou, 2007: 171-173). Além de troca comercial, este autor vê o turismo como troca simbólica: para além de acomodação e viagem, o turista busca um espaço que acomode o seu exercício de liberdade (Amirou, 2007:180). Concluindo a sua reflexão, Amirou reforça a homologia entre peregrinação e turismo pela partilha comum dum “rito de passagem” simbólico percorrido pelos indivíduos formando uma “bolha”, um “espaço potencial” de adaptação que cria um espaço/tempo particular relativo ao destino turístico no qual se integra o imaginário turístico (2007: 187-188). O turista cria o seu próprio objeto exótico a partir do seu imaginário com base no objeto que pré-existe à sua visita, um processo de apreensão do mundo exterior pelos indivíduos que depende da existência de dois elementos: um objeto turístico enquanto lugar sobre o qual sonhar; uma” comunidade de sonhadores” unida pela busca conjunta do Alhures (Amirou, 2007: 190-193). Neste livro, Amirou parte do conhecimento que angariou no âmbito da sua experiência profissional enquanto acompanhante de viagens internacionais e duma extensa revisão bibliográfica da teoria sociológica clássica e dos estudos de turismo para tecer uma reflexão contemporânea sobre o fenómeno turístico. A título de crítica, aponta-se que este autor idealiza o olhar turístico enquanto “sistema estável de representações” (Amirou, 2007: 80) formado pelo turista sobre o espaço do turismo, mas não menciona nesta obra o conceito do “olhar do turista”3 de John Urry (1990: 1-4). Todavia, destaca-se o seu contributo para aprofundar o entendimento das subjetividades dos indivíduos no contexto das práticas turísticas, impondo-se a sua consulta para pensar no papel do imaginário turístico enquanto constructo coletivo de ordens histórica e cultural nas motivações e sociabilidades do turista

1Recorde-se Jean-Didier Urbain e a sua ideia do turista como o oposto do viajante “verdadeiro” (1991, citado em Amirou, 2007: 31).

2Segundo MacCannell, a sacralização dos lugares turísticos compreende cinco fases: “designação”; “enquadramento e elevação”; “consagração”; “reprodução mecânica”; “reprodução social” (1999(1976):44-45).

3O “olhar do turista” concetualiza os sucessivos processos de organização social e especial do olhar dos turistas através de um sistema de “atividades sociais e signos” nos quais a ação dos agentes turísticos é determinante (Urry, 1990: 1-4).

Recebido: 13 de Março de 2021; Aceito: 15 de Maio de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons