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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.42  Porto dez. 2021  Epub 08-Mar-2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soc42a4 

Artigos originais

Cooperação intermunicipal e capacidade de governança: uma revisão conceptual

Coopération intercommunale et capacité de gouvernance: un examen conceptuel

Intermunicipal cooperation and governance capacity: a conceptual review

Cooperación intermunicipal y capacidad de gobernanza: una revisión conceptual

Ricardo Cunha Dias

Paulo Castro Seixas

Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa

Centro de Administração e Políticas Públicas


RESUMO

Cooperação intermunicipal e governança multinível são conceitos indissociáveis na atual política da União Europeia (UE). No entanto, estes conceitos têm-se mantido em corpos teóricos distintos. Neste quadro, este artigo faz uma revisão sobre estes conceitos, procurando identificar os fatores que explicam os instrumentos de cooperação intermunicipal na UE, e como a sua capacidade de governança pode ser problematizada numa lógica multinível. O texto conclui alertando para a Europeização destes instrumentos, fator que a literatura tem deixado em segundo plano.

Palavras-chave: Cooperação Intermunicipal; Governança Multinível; Europeização.

ABSTRACT

Intermunicipal cooperation and multilevel governance are inseparable concepts in current European Union (EU) policy. However, these concepts have been maintained in different theoretical bodies. In this context, this paper reviews these concepts, aiming to identify the factors that explain the instruments of intermunicipal cooperation in the EU, and how its governance capacity can be problematized in a multilevel logic. The text concludes by warning about the Europeanization of these instruments, a factor that the literature has left in the background.

Keywords: Intermunicipal Cooperation; Multilevel Governance; Europeanization.

RESUME

La coopération intercommunale et la gouvernance multi-niveaux sont des concepts indissociables de la politique actuelle de l’Union Européenne (UE). Cependant, ces concepts ont été maintenus dans différents corps théoriques. Dans ce contexte, cet article passe en revue ces concepts, en cherchant à identifier les facteurs qui expliquent les instruments de coopération intercommunale dans l’UE, et comment sa capacité de gouvernance peut être problématisée dans une logique multi-niveau. Le texte conclut en mettant en garde contre l’Européanisation de ces instruments, facteur que la littérature a laissé en arrière-plan.

Mots-clés: Coopération Intercommunale; Gouvernance Multi-niveaux, Européanisation.

RESUMEN

RESUMEN La cooperación intermunicipal y la gobernanza multinivel son conceptos inseparables en la política actual de la Unión Europea (UE). Sin embargo, estos conceptos se han mantenido en diferentes cuerpos teóricos. En este contexto, este artículo revisa estos conceptos, tratando de identificar los factores que explican los instrumentos de cooperación intermunicipal en la UE, y cómo se puede problematizar su capacidad de gobernanza en una lógica multinivel. El texto concluye advirtiendo sobre la Europeización de estos instrumentos, factor que la literatura ha dejado en un segundo plano.

Palabras clave: Cooperación Intermunicipal; Gobernanza Multinivel; Europeización.

1. Introdução

Nas últimas décadas, a cooperação intermunicipal tornou-se um modo comum de governança regional entre os países europeus, incluindo Portugal (Teles, 2016). Historicamente, esta solução surgiu como alternativa às fusões municipais e privatizações para criar economias de escala e aumentar a eficiência na implementação de políticas e prestação de serviços públicos (Tavares, 2015; Tavares e Feiock, 2017). No entanto, pouco se sabe ainda sobre a capacidade de governança destes novos arranjos (Silva, Teles e Ferreira, 2018), sobretudo no âmbito da Política de Coesão da União Europeia (UE), na qual, a tendência para uma maior racionalidade multinível e territorial, veio afirmar o papel destes arranjos como nível intermédio e intermediador de desenvolvimento (Feio e Chorincas, 2009; Seixas, Oliveira e Dias, 2020).

Na literatura, são escassas e pouco abrangentes as pesquisas que procuraram comparar os tipos de cooperação intermunicipal na Europa (Hulst e van Montfort, 2007; Tavares e Feiock, 2017; Swianiewicz e Teles, 2019). O problema parece estar na diversidade de formatos que tais instrumentos podem assumir, sendo que as diferentes tradições administrativas, sistemas de governança multinível e graus de autonomia local, têm dificultado o avanço de tipologias abrangentes. Para além disso, os âmbitos, motivações e custos/benefícios que levam os municípios a cooperar são múltiplos (Tavares e Feiock, 2017). Por estas razões, a relação entre a capacidade de governança de um instrumento de cooperação intermunicipal com os fatores que influenciaram a sua adoção é complexa e está grandemente por fazer quando problematizada num quadro multinível (Silva, Teles e Ferreira, 2018).

Procurando contribuir para a superação de tal lacuna, este texto faz uma revisão destes conceitos, tendo como objetivos: (1) identificar os fatores utilizados para explicar a escolha e o sucesso dos arranjos de cooperação intermunicipal na Europa; e (2) como é que esses fatores podem ser relacionados com a capacidade de governança multinível de tais arranjos. O argumento principal é o de que o fenómeno da Europeização de políticas públicas, sobretudo através da Política de Coesão da UE, tem influência no tipo e capacidade de governança dos arranjos de cooperação intermunicipal adotados pelos seus Estados-membros. O contributo deste texto é, assim, o de apresentar um quadro integrador de diferentes visões e formas de analisar a capacidade de governança multinível dos arranjos de cooperação intermunicipal. Ao fazê-lo, acaba-se também por articular dois corpos de literatura que se têm mantido mais ou menos distintos.

2. Cooperação intermunicipal: tipologias e fatores explicativos

2.1 Breve contextualização

Nos últimos cinquenta anos, a generalidade dos países europeus foi confrontada com as crescentes pressões da globalização e urbanização acelerada sobre as infraestruturas, equipamentos e serviços locais (Tavares, 2015; Tavares e Feiock, 2017). Neste contexto, as autoridades nacionais foram também pressionadas pela competição internacional e a integração europeia a encontrar novas formas de organização regional, destacando-se, nesse processo, a lógica multinível introduzida pela UE nas redes de governação e implementação de políticas públicas, na qual entidades supra e subnacionais passaram a partilhar os processos de tomada de decisão (Marks, 1992; 1993).

Ao mesmo tempo, este processo foi acompanhado por uma tendência para a descentralização, desconcentração e delegação de competências para as autarquias locais e regiões que ajudou a estabelecer o fim dos municípios de origem medieval em favor da redefinição das relações intergovernamentais. O resultado foi uma mudança de paradigma das tradicionais formas de governo para novas formas de governança, em que um modelo de Estado, baseado nas hierarquias e nos mercados, acumulou um modelo de redes, passando a administração/gestão de funções, tarefas e capacidades a ser alcançada através da cooperação entre diversos atores, públicos e privados (Puntillo, 2017).

Neste quadro, governo e governança vêm assumindo significados distintos. Enquanto o termo ‘governo’ é utilizado para designar as instituições formais do Estado que têm por missão orientar a ação coletiva tendo como limites a esfera pública; a governança enquadra geralmente realidades mais abrangentes, envolvendo as relações institucionais entre o Estado, o setor privado e a sociedade civil (Pierre e Peters, 2000). Desse modo, as novas formas de governança em rede não se baseiam apenas num movimento centro/periferia e top-down/bottom-up de poder, mas também na criação de relações de cooperação mais ou menos estáveis entre atores e instituições no mesmo e em diferentes níveis administrativos e escalas territoriais (Hajer e Wagenaar, 2003).

Nesta mudança de paradigma, a cooperação intermunicipal tornou-se uma forma comum de governança territorial. Este modelo visa sobretudo a provisão conjunta de serviços públicos e a criação de economias de escala e âmbito territorial; mas também o planeamento e coordenação regional, procurando incorporar interdependências mútuas e aumentar a capacidade para resolver problemas que ultrapassam as fronteiras político-administrativas tradicionais (Hulst e van Montfort, 2011).

2.2. O conceito de cooperação intermunicipal e tipologias na Europa

Segundo Hulst e van Montfort (2007), a “cooperação intermunicipal” refere-se: tanto às interações entre governos locais para a concretizar uma tarefa ou objetivo comum; quanto à relação entre as instituições de cooperação e os municípios constituintes. Tavares e Feiock (2017), por seu turno, utilizam o conceito para designar todas as soluções de interação entre municípios que visam resolver dilemas de Ação Coletiva Institucional (ACI). Tal situação ocorre quando o resultado independente da tomada de decisão de dois ou mais municípios gera um resultado agregado menos eficiente do que se agissem em conjunto.

Neste quadro, a ‘cooperação intermunicipal’ tem sido considerada uma forma de inovação na governança territorial que aumenta a capacidade e eficiência na prestação de serviços públicos locais e promove a coordenação de serviços e políticas regionais em unidades fragmentadas do governo local. Isso implica, por um lado, encontrar a escala ótima para que os municípios possam enfrentar adequadamente os desafios socioeconómicos do território e, por outro, ter em conta que as instituições governamentais detêm ainda papéis importantes, especialmente no controlo, coordenação e orientação de redes (Puntillo, 2017).

Assim, cooperação intermunicipal e governança são dois conceitos complementares, mas que implicam um equilíbrio entre escala territorial, nível administrativo e solução adotada. Isso ocorre porque as caraterísticas do arranjo de cooperação selecionado estão inseridas dentro de uma estrutura institucional. Em tal estrutura, os atores governamentais detêm um papel de liderança hierárquica, legitimidade e apoio a formas de autogoverno, mantendo o controlo das autoridades locais sobre políticas e decisões e, ao mesmo tempo, institucionalizando novas formas de governança sobre o território (Hulst e van Montfort, 2007).

Na Europa, o âmbito dos arranjos de cooperação intermunicipal é muito diversificado entre os países e dentro deles, e esta pluralidade torna difícil a pesquisa comparada. Tal explica o facto de haver poucos estudos sobre o tema e dos existentes se centrarem em análises grandemente descritivas e históricas da situação dentro de países e em comparações internacionais relativamente gerais, bem como as dificuldades em desenvolver um quadro teórico-conceptual (Teles, 2016; Swianiewicz e Teles, 2019).

Um dos trabalhos pioneiros sobre cooperação intermunicipal na Europa foi apresentado por Hulst e van Montfort (2007). Com base em estudos de caso de oito países europeus , estes autores identificaram quatro tipos de cooperação intermunicipal recorrentes: 1) governos quasi-regionais (organizações permanentes com autoridade decisória envolvidas no planeamento e coordenação de políticas locais); 2) organizações permanentes envolvidas na prestação de serviços; 3) cooperação contratual para a prestação de serviços; e 4) fóruns de planeamento (redes informais envolvidas no planeamento e coordenação de políticas locais).

No quadro destas tipologias, os autores concluíram que as diferenças entre os países são sobretudo explicadas pelo contexto institucional nacional e pela influência que as diferenças nas tradições do Estado, através de fenómenos de path depedency, tiveram nos processos de reformas territoriais. Assim, enquanto nos países de tradição anglo-saxónica, germânica ou escandinava, a cultura política e as caraterísticas mais consensuais e orgânicas destas tradições asseguraram uma maior abertura às reformas descentralizadoras por parte dos atores nacionais e locais; nos países de tradição napoleónica, o enfoque excessivamente legalista e burocrático fez com que estes permaneceram fortemente centralizados e resistissem à descentralização funcional para níveis subnacionais de governo. Desse modo, dependendo das tradições administrativas, as relações intergovernamentais verticais assumem padrões bastante distintos, influenciando o tipo e o sucesso dos arranjos adotados.

Mais recentemente, uma outra tipologia foi apresentada por Tavares e Feiock (2017), que procuraram explicar o processo de seleção dos instrumentos de cooperação intermunicipal para resolver dilemas de ACI na Europa. Estes autores utilizaram uma matriz bidimensional entre: (1) o grau de amplitude institucional (bilateral, multilateral ou complexa); e (2) o tipo de mecanismo de integração envolvido (Quadro 1). Segundo esta matriz, a abrangência institucional varia de acordo com o número de entidades envolvidas e com o número de atribuições associadas à relação intermunicipal, diferindo entre associações de “fim específico” e de “fins múltiplos”.

Já os tipos de mecanismos de integração da tomada de decisão variam do mais informal ao mais formal, na seguinte ordem: 1) enraizamento social; 2) contratos; 3) autoridade delegada; e 4) autoridade imposta. Os três primeiros são tipos de governação descentralizada, envolvendo a associação voluntária de municípios para enfrentar dilemas de ACI; e o último é uma solução centralizada, imposta por um nível de governo superior para direcionar as ações das unidades locais e internalizar tais dilemas. Neste quadro, quanto maior for o grau de amplitude institucional, mais complexos e elevados são os custos da tomada de decisão; e quanto mais formal for o tipo de mecanismo de integração envolvido, mais elevado são os custos de autonomia, originando diferentes mecanismos/instrumentos.

Em linha com o estudo de Hulst e van Montfort (2007), Tavares e Feiock (2017) concluíram que a diversidade institucional resultante de fatores históricos, culturais e constitucionais-legais é grandemente explicativa da variação de instrumentos de cooperação intermunicipal entre países europeus e que a preferência por soluções formais e hierárquicas é dominante. Porém, a par do quadro constitucional-legal, os autores evidenciam que as instituições políticas locais, a homogeneidade de preferências dentro e entre comunidades, a interação entre instrumentos de governação e os riscos de colaboração associados a cada dilema de ACI, influenciam os custos de transação e, portanto, também explicam a seleção entre diferentes instrumentos.

Quadro 1: Instrumentos de integração e custos de transação. Fonte: Feiock (2013,apud Tavares, 2015). 

2.3 Fundamentos teóricos e fatores explicativos da cooperação intermunicipal

Um quadro teórico para a cooperação intermunicipal tem sido fundamentado nas ideias do neoinstitucionalismo histórico e sociológico, apresentando os seguintes pressupostos: a) o contexto institucional determina as oportunidades e restrições que os atores enfrentam e estabelece as regras do jogo em estes prosseguem os seus objetivos; b) enquanto as instituições existentes moldam as estratégias e a conduta dos atores, estas, por sua vez, podem cristalizar-se em novas instituições; e c) os fatores externos impulsionam novas estratégias e mudanças institucionais (Hulst e van Montfort, 2011).

Esta abordagem implica que a estrutura formal do estado e a legislação existente se relacionam com a cooperação intermunicipal para determinar a necessidade e vantagens/benefícios possíveis da cooperação. Neste quadro, um modelo conceptual foi proposto por Hulst e van Montfort (2011) a partir de três dimensões: (1) “presença e a forma de cooperação intermunicipal”; (2) “caraterísticas do contexto institucional administrativo”; e (3) “fatores externos”. A estas, Hulst et al. (2009) acrescentam mais duas: (4) “preferências locais”; e (5) “fatores de desenvolvimento”, também consideradas por Tavares e Feiock (2017) que referem ainda: os (6) “riscos de colaboração”; (7) a “interação entre instrumentos de políticas públicas”; e (8) o “enraizamento em redes sociais”.

Na primeira dimensão, a (1.1) “presença de cooperação” refere-se ao tipo de tarefas/atribuições envolvidas, distinguindo entre (i) “prestação conjunta de serviços” e (ii) “coordenação e planeamento de políticas”; enquanto a (1.2) “forma” (ou design) institucional diz respeito ao grau de integração organizacional, podendo sustentar-se em: (i) redes informais (em que os participantes mantêm contactos regulares entre si); (ii) acordos formais (estabelecem procedimentos de tomada de decisão conjunta); e (iii) organizações permanentes (forma mais institucionalizada, implicando a integração de atividades numa nova organização).

Os autores distinguem ainda entre dois tipos de organizações permanentes: (a) as que operam como uma agência dos municípios, atendendo a governos locais individualmente e a seu pedido; e (b) as que têm poderes formais de decisão transferidos pelos municípios. Ou seja, na forma de cooperação, é ainda de considerar se as organizações intermunicipais dispõem, ou não, de poderes formais de decisão relativamente aos assuntos locais. Esta primeira dimensão carateriza, portanto, os arranjos de cooperação intermunicipal em função do âmbito da cooperação e do seu grau de institucionalização, design institucional e autonomia.

Já a dimensão (2) “caraterísticas do contexto institucional” implica três componentes: (2.1) “estrutura formal do estado” (número de níveis administrativos, distribuição de responsabilidades entre níveis, âmbito e autonomia do governo local e número e tamanho dos municípios); (2.2) “cultura administrativa”, que compreende o conjunto de valores, normas, regras informais e tradições relativas ao Estado, sua organização política e administração pública; e (2.3) “legislação, incentivos e políticas de governo central ou intermediário em matéria de cooperação intermunicipal”, que definem oportunidades e restrições para a cooperação e tornam alguns arranjos institucionais mais atraentes do que outros. Em suma, esta segunda dimensão pode ser usada para explicar os constrangimentos/limitações e incentivos que determinam a primeira, ainda que essa possa também levar à mudança do contexto institucional, sobretudo nas suas relações com (3) “fatores externos”.

Esta terceira dimensão refere-se ao conjunto de pressões que, em toda a Europa, os governos locais enfrentam para fornecer melhores serviços públicos e aumentar a qualidade, complexidade e/ou alcance das suas atividades e internalizar dilemas de ACI. Entre estas, Hulst e van Montfort (2011) destacam: (3.1) a crescente procura dos cidadãos que exige a produção de serviços em novas escalas; (3.2) a complexidade e a escala dos processos sociais que requerem a formulação de políticas em escalas supralocais; e (3.3) o aumento da competição internacional e a necessidade de políticas territoriais que promovam economias locais e regionais.

Esquema 1 Modelo conceptual da cooperação intermunicipal Fonte: Hulst e van Montfort (2011), tradução nossa 

Enquanto estas primeiras dimensões adotam uma perspetiva determinística, as seguintes assentam nos fundamentos do institucionalismo económico e num leque abrangente de outras teorias que sustentam um quadro de trabalho/framework denominado de Enquadramento da ACI (Feiock, 2013; Tavares, 2015). Este framework procura explicar como os custos de transação associados ao tipo de dilema de ACI, mas também às preferências, condições e atores locais, influenciam a perceção dos trade-offs entre custos/benefícios de cada dilema e, consequentemente, a opção por diferentes arranjos disponíveis, e o sucesso em resolver esses mesmos dilemas (Esquema 2).

Neste quadro, uma outra dimensão refere-se às (4) “preferências dos governos locais”, sendo que estas enfrentam (4.1) “pressões internas”, tais como oposição de grupos de interesse, resistência administrativa e diversidade na composição sociodemográfica que, por sua vez, comprometem a heterogeneidade de preferências e objetivos da cooperação entre municípios. Por oposição, a (4.5) “homogeneidade no seio de cada jurisdição” reduz os custos de transação envolvidos na cooperação com outros municípios. Os municípios detêm também um (4.2) “conhecimento do território” (recursos e necessidades), que lhes permite avaliar quais os atores e relações podem contribuir para, consigo, promover um consenso cooperativo em torno de um objetivo comum (Tavares e Feiock, 2017).

Porém, estas relações não eliminam outras que implicam o conflito e a competição entre municípios. A dimensão referente aos (5) “fatores de desenvolvimento” ilustra isso mesmo. Entre diferentes municípios, a (5.1) heterogeneidade de preferências associada a desigualdades socioeconómicas, tecnológicas, demográficas e mesmo políticas, diminui a probabilidade de sucesso da colaboração, já que os benefícios potenciais serão menos atraentes para os municípios mais desenvolvidos/melhor posicionados. Em contraste, jurisdições similares tendem a estabelecer redes informais para o desenvolvimento (homofilia), criando um efeito de cluster (Tavares, 2015).

Uma outra dimensão é a (6) ‘interação entre instrumentos de cooperação intermunicipal’. A seleção entre alternativas entre os diferentes instrumentos de cooperação não é feita de forma isolada ou independente e, portanto, as (6.1) ‘experiências/práticas anteriores’ e os (6.2) ‘instrumentos de integração pré-existentes’ influenciam tanto a seleção quanto o sucesso de instrumentos subsequentes (efeito multiplicador). Uma outra condicionante na interação entre tais instrumentos pode decorrer de um efeito de substituição (crowding out) causado por soluções centralizadas (top-down), sobretudo quando o quadro constitucional-legal e/ou a tradição histórica e cultural são adversos aos esforços de governação regional (Tavares, 2015).

A escolha dos instrumentos de cooperação intermunicipal é também influenciada pelos (7) “riscos de colaboração” decorrentes do perfil do dilema de ACI em cada caso. Neste quadro, o (7.1) “grau de especificidade” do objetivo da cooperação e o (7.2) “grau de dificuldade de cálculo” dos custos-benefícios associado a esse objetivo (e, se for o caso, de monitorizar o desempenho dos agentes), gera (Tavares, 2015): (a) problemas de coordenação (quando há consenso sobre os objetivos, mas há assimetrias de informação); (b) problemas de divisão (há consenso sobre os objetivos, mas não com a afetação dos custos/benefícios da colaboração); e (c) problemas de defeção (comportamento oportunista potencial por parte de atores racionais que procuram contornar as disposições dos acordos).

Esquema 2 O Enquadramento da ACI Fonte: elaborado a partir de Tavares (2015) 

De uma forma ou de outra, todas as dimensões anteriores são influenciadas pelo (8) “enraizamento social” (embeddedness), assumindo-se que a pré-existência de redes informais facilitam o desenvolvimento e a coordenação de instrumentos mais formais e a sua institucionalização (Tavares, 2015). Desse modo, fatores como: as (8.1) “interações de longo prazo” (laços históricos; existência de outras redes, etc.); (8.2) “proximidade geográfica”; (8.3) “identidade territorial” (cultura e traços políticos comuns, significados partilhados e identidade cívica); e (8.4) “policentrismo” (visão de cidade-região; um espaço cívico cognitivo e vivido), estabelecem relações de confiança, reciprocidade, capital social e reputação, que aumentam o comprometimento entre os atores locais e a probabilidade de cooperação bem-sucedida, ao mesmo tempo que reduzem o oportunismo. A existência destas relações diminui também os custos de transação, autonomia e os riscos de colaboração.

3. Cooperação intermunicipal e governança multinível: uma aproximação conceptual

3.1 Governança multinível: a influência da Europeização

A relação entre escala territorial vs. nível administrativo é uma problemática central da cooperação intermunicipal (Puntillo, 2017; Hulst e Van Montfort, 2007), mas também da literatura sobre governança multinível (Monteiro e Romão, 2018). O conceito foi cunhado por Gary Marks (1992; 1993) para explicar a influência das instituições supra e subnacionais no processo político da UE que se tornou caraterística principal da tomada de decisão na Política de Coesão após a reforma de 1988. De acordo com o autor, os estímulos, políticos e estratégicos, desta política foram impulsos centrais para a construção de um sistema de negociação contínua entre governos de vários níveis territoriais, que surge da necessidade de maior legitimação, informação e recursos locais.

Essa influência tem também sido tratada através do conceito de ‘Europeização’, utilizado para compreender as transformações na UE em resultado da dinâmica da política europeia e do surgimento, evolução e impactos de tal sistema de governança multinível nas instituições domésticas (Olsen, 2002). O argumento na base do conceito é que o impacto doméstico das políticas da UE varia com o nível de pressão de adaptação europeia em relação às instituições nacionais e com a extensão com que os contextos domésticos, incluindo estruturas institucionais de oportunidades e constelações de atores, facilita ou limita os ajustes aos requisitos europeus (Knill e Lehmkuhl, 1999; Saurugger e Radaelli, 2008).

Geralmente são referidos três tipos de mecanismos de Europeização (Knill e Lehmkuhl, 1999): (i) integração positiva (políticas que prescrevem modelos institucionais para ajuste doméstico); (ii) integração negativa (políticas que modificam as estruturas de oportunidades domésticas); e (iii) integração de “enquadramento” (políticas que conduzem a mudança de crenças e valores dos atores domésticos). Neste quadro, a influência da UE tanto pode ser exercida através de mecanismos baseados na lei e/ou na hierarquia (exemplo das diretivas), como através de mecanismos de governança baseados na parceria/cooperação e na aprendizagem, sobretudo em áreas em que a competência da UE é escassa ou inexistente (como no planeamento do território), ou onde interesses divergentes dos Estados-membros tornam impossível o acordo sobre legislação (Radaelli, 2008).

Na literatura, este modo de governança baseado na parceria/cooperação e na aprendizagem é referido como Método Aberto de Coordenação (MAC), sendo apresentado em documentos oficiais como um componente essencial da governança da UE desde 2000. Enquanto mecanismo de Europeização, o MAC implica uma combinação entre (Radaelli, 2008): uma “aprendizagem por socialização” (que visa tornar os policymakers mais conscientes de sua interdependência e podem inspirar mais compromisso com os objetivos da UE); uma “aprendizagem por monitorização” (que permite à UE acompanhar o progresso e comparar o que foi alcançado pelos Estados-membros); e uma “aprendizagem por argumentação e persuasão” (contribuem para o refinamento de diretrizes, cronogramas e objetivos).

Empiricamente, a literatura evidencia que a Europeização através de um modo de governança baseado na parceria/cooperação e na aprendizagem existe, sendo, porém, mais comum ao nível da UE e impulsionada segundo uma lógica hierárquica e limitada do topo para a base (Radaelli, 2008). Os maus resultados em termos de aprendizagem bottom-up parecem refletir a falta de participação, um subestimar das particularidades da aprendizagem em um contexto político e os problemas de produção de conhecimento utilizável por meio de instrumentos apropriados.

Ao nível da Política de Coesão, foi também demonstrado que o legado do centralismo, a falta de tradições na formulação de políticas colaborativas e autoridades subnacionais fracamente institucionalizadas levantam questões sobre a Europeização baseada na parceria/cooperação e na aprendizagem. Uma análise feita à implementação dos Fundos Estruturais 2007-2013 no caso polaco revelou que a abordagem de parceria/cooperação tendeu inicialmente a ser adotada como resultado de restrições de cima para baixo ou em resposta às oportunidades que ela criou, correspondendo a um ajuste de escolha racional (Dabrowski, 2013). Quando a parceria era contrária aos interesses ou preferências dos atores, ela era cumprida com relutância, o que geralmente resultava em um ajuste meramente “formal” e “superficial”.

No entanto, nos casos em que a parceria estava alinhada com os interesses dos atores envolvidos e era percebida como benéfica e útil, essa adoção racional do trabalho em parceria não excluiu a sua internalização ao longo do tempo. Além disso, a aprendizagem institucional produzida em torno dos instrumentos desse ciclo, parece ter-se mantido e aprofundado no ciclo 2014-2020 (Borkowska-Waszak e Ferry, 2018). Estes resultados mostraram que os efeitos da Europeização pela parceria/cooperação podem ser multifacetados. Por um lado, em territórios sem uma cultura política cooperativa, a parceria só pode se desenvolver de forma incremental e baseada na experiência crescente dos atores envolvidos. Por outro, as respostas às normas políticas impostas pela UE podem mudar com o tempo. Como consequência, o impacto das parcerias e, mais amplamente, da Política de Coesão da UE e dos seus requisitos, permanece desigual e diferenciado entre os atores subnacionais afetados.

Em Portugal, destaca-se o estudo realizado por Castro (2015) que analisou a evolução do modelo de governança multinível português através da atuação e a inter-relação entre os diversos atores envolvidos no processo de implementação da Política de Coesão ao longo dos vários ciclos comunitários. A autora concluiu a existência de uma “governança multinível assimétrica” entre a influência da UE, restrita à fase inicial (definições estratégicas e programáticas dos ciclos comunitários), e o governo português, com uma influência ampla em todas as etapas, desde a definição dos projetos (seleção, aprovação e monitoramento) à seleção dos parceiros. Neste quadro, refere haver problemas políticos persistentes relacionados com o baixo nível accountability e a falta de transparência do processo negocial; uma representação social limitada; um processo de empoderamento regional pobre; a existência de lógicas internas instituídas como a “fefização”; assim como a reduzida capacidade de visão estratégica dos municípios, que constrangem a influência da UE no modelo de governança multinível português.

3.2 Capacidade de governança: o multinível vs. o territorial

A secção anterior mostrou uma tensão entre Europeização e Regionalização, aos quais a adoção de arranjos de cooperação intermunicipal parece surgir como alternativa. Neste quadro, a literatura evidencia que os sistemas domésticos de governança multinível dos países da UE estão ainda muito centrados nas relações de coordenação vertical entre níveis de governo, em detrimento de uma dimensão horizontal (Banche e Flinders, 2004; Monteiro e Hora, 2018; Monteiro e Romão, 2018). Esse enfoque parece decorrer da dificuldade de se criarem estruturas subnacionais capacitadas em termos das suas responsabilidades, recursos e legitimidade, em que persistem diversas lacunas (Charbitt, 2011), sintetizadas no Quadro 2.

Quadro 2: Lacunas da governança multinível. Fonte: Charbitt (2011:16). 

Um outro problema parece estar na inadequação da noção de “nível” para captar a natureza territorial das novas práticas de governança (Romão e Monteiro, 2017). A ideia é que os limites político-administrativos fragmentam e, portanto, negligenciam, as continuidades espaciais e relacionais do território. Neste quadro, os “territórios/regiões funcionais”, ou seja, as unidades espaciais sub-regionais que, não se sobrepondo aos limites/níveis administrativos, apresentam graus relevantes de interdependência interna, real ou potencial (Mourato, 2013), têm-se afirmado como uma base mais adequada para pensar o processo das políticas públicas.

Atualmente, a UE defende que a melhor forma de articular um território/região funcional com a implementação de políticas e prestação de serviços públicos e respetivos instrumentos de governança é através das chamadas place-based policies (Barca, 2009). Esta abordagem implica que a tradicional fase de implementação do ciclo das políticas públicas se desdobre num novo ciclo ao nível local/regional em que a tomada de decisão dos níveis europeus e nacionais é traduzida e ajustada às prioridades do território, através da elaboração de uma estratégia integrada de desenvolvimento, baseada num diagnóstico territorial participado.

Em português, a abordagem place-based foi traduzida por “territorialização de políticas públicas” (TPP), referindo-se à “conceção e implementação de programas e projetos com impacto territorial relevante, cujas prioridades de intervenção são definidas em função de quadros estratégicos formulados para o território-alvo, com participação, formal ou informal, na sua elaboração de instituições e atores identificados com tal território” (IFDR, 2010: 11). A questão do que é entendido por “território pertinente” é especialmente decisiva para a escala e a incidência desta abordagem, sendo de considerar o quadro institucional existente, mas também a presença de atores relevantes para dar sequência ao processo participativo (Figueiredo, 2009).

Desse modo, esta abordagem deixa em aberto duas possibilidades de seleção do “território pertinente”: uma que vai mais de encontro ao quadro político-administrativo; e outra que vai de encontro a uma abordagem funcional de território. Tais possibilidades são apresentadas por Hooghe e Marks (2003) em dois tipos-ideais de organização da governança multinível: o Tipo I, remetendo para as interações e partilha de competências entre o governo central e os governos subnacionais não sobrepostos; e o Tipo II para um quadro de interação mais complexo e dinâmico entre jurisdições diversas, adquirindo geometrias territoriais variadas (Quadro 3).

Segundo os autores, a governança de Tipo II surge da necessidade da implementação de políticas específicas definidas nos quadros legais das jurisdições do Tipo I, principalmente quando estas não podem ser concretizadas de forma eficiente pelas estruturas governativas tradicionais. Estes dois tipos são complementares, normalmente acontecendo em simultâneo. No entanto, o processo de territorialização descendente apresenta-se, geralmente, mais sólido e tecnicamente fundamentado, e nem sempre a territorialização ascendente resulta de um processo participado e abrangente (Figueiredo, 2009).

Quadro 3: Ideais-tipo de governança multinível.Fonte: adaptadode Hooghe e Marks (2003) 

Neste contexto, tornou-se comum diferir entre os conceitos de governança multinível e governança territorial para diferenciar o enfoque na interação entre níveis de governo da articulação horizontal entre atores, públicos e não públicos. A este respeito, Faludi (2012, p. 198) evidencia três problemas: 1) a redundância da expressão “territorial” (que não acrescenta nada ao multinível, pois este deve ser entendido como tendo uma componente territorial agregada; 2) a ambiguidade da governança multinível (existente, quando se considera que esta apenas se referente às relações verticais entre órgãos de governo e não ao processo mais compreensivo chamado governança); e 3) as conceções de espaço e de território que lhe estão subjacentes.

Sobre este último ponto, o autor alerta que a literatura sobre governança multinível necessita de ser complementada por uma preocupação acerca do entendimento dos arranjos territoriais que estão a moldar a forma como se conceptualiza a Europa e como esta a ser organizada no território. Ora, dado o atual padrão europeu, isto significa que é necessário perceber até que ponto as novas experiências de cooperação intermunicipal geram novos espaços institucionais com capacidade de se constituírem como “centros de racionalidade estratégica”, isto é, como instituições capazes de territorializar políticas públicas (Figueiredo, 2009).

Assim, uma coisa são os sistema de governança multinível ou, melhor dizendo, de governação multinível (coordenação intergovernamental), outra coisa é a governança territorial, referindo-se à capacidade dos arranjos de cooperação intermunicipal em (Feio e Chorincas, 2009; Silva, Teles e Ferreira, 2017): i) construir um consenso organizacional, envolvendo diferentes atores de forma a definir objetivos e metas comuns; ii) coordenar a agregação de interesses divergentes, reunindo ferramentas políticas e organizacionais relevantes; iii) coordenar a tomada de decisão e uma visão comum para o futuro do território; iv) acordar a contribuição de cada ator para a realização dos objetivos previamente definidos; v) manter consenso ao longo do tempo; e vi) garantir o apoio, envolvimento e a participação dos cidadãos.

Ou seja, o que está em causa quando falamos de diferentes arranjos de cooperação intermunicipal num quadro multinível é a sua capacidade de governança numa nova escala territorial. No entanto, e como vimos, tal capacidade está, em primeiro lugar, dependente da persistência de uma série de lacunas relativas à coordenação intergovernamental entre níveis administrativos, sendo um forte constrangimento a ter em conta (Charbitt, 2011). Por outro lado, a institucionalização das experiências de cooperação intermunicipal tem levado à alteração destes sistemas, e também isso deve ser alvo de atenção (Monteiro e Romão, 2018). Estamos em crer que os diferentes mecanismos de Europeização podem aqui ajudar a explicar as opções domésticas entre diferentes instrumentos de cooperação intermunicipal e como estas se moldam ao longo do tempo como uma alternativa a um processo de regionalização.

3.3. Que síntese entre Europeização e Regionalização?

Se partimos da governança como parceria/cooperação e aprendizagem (MAC), esta metáfora diferencia-se à partida em função de quem a define e das regras que propõe (Radaelli, 2008): a) “aprendizagem do topo” ou “aprendizagem da UE”; b) “aprendizagem a partir do topo” ou “aprendizagem hierárquica” (nacional); e c) “aprendizagem a partir de baixo”, também chamado “aprendizagem social”. De forma breve, Radaelli refere que as evidências de aprendizagem diminuem à medida que passamos do topo para a base, atribuindo três causas principais: 1) a permanência de um modelo de participação mitigado; 2) os interesses dos políticos na manutenção do poder; e 3) o problema institucional da tradução que torna muito difícil aceitar a aprendizagem como comparação (benchmarking). Isto quer dizer a síntese da Europeização, entendida como da governação às redes, há de ser diferente da síntese entendida como Regionalização, ou das redes á governança.

Radaelli faz o que podemos chamar uma reflexividade subjetivista (dos problemas inerentes aos interesses dos atores) e uma reflexividade objetivista (dos problemas inerentes aos métodos). Em relação aos atores, aprende-se mais no topo do que a partir de baixo porque a mudança não é um resultado direto da aprendizagem mas sim da ‘política’. Há, assim, pelo menos três problemas inerentes aos atores. O primeiro deles é que a “aprendizagem política” implica esse desvio (o da experiência política e da ponderação entre mudança e manutenção do poder). Em segundo, a aprendizagem política é um jogo em que a competição económica se relaciona continuamente com a cooperação pela aprendizagem. Ou seja, há empresas que retiram ilações da aprendizagem (porque há atores que circulam) que está a ser feita para se colocarem em vantagem e, portanto, colocam-se como um viés à aprendizagem. Um terceiro viés é o da relação entre monitorização e aprendizagem: aquela é burocrática, controladora e preditiva, enquanto a aprendizagem é disruptiva e não é monitorizável, criando-se uma tensão em desfavor da segunda.

Em relação à reflexividade objetivista, há vários dos métodos que visam a aprendizagem da governança: peer reviewing; benchmarking, boas práticas e participação. No entanto, todos os processos implicam viés que podemos caraterizar em três tipos: a) tradução (a análise significa diferentes coisas em diferentes países, segundo diferentes interesses); b) ritualização burocrática (a comparação das boas práticas é muitas vezes entendida como um mero ritual burocrático); e 3) participação mitigada (os padrões de participação no processo político não mudaram).

A conclusão óbvia é que não é uma variável irrelevante quem propõe, controla e monitoriza o próprio processo de aprendizagem e o seu objetivo (convergência com os objetivos da UE): ou seja, o facto da aprendizagem da governança ser uma ‘Europeização proposta de cima’ implica os desvios subjetivistas e objetivistas; políticos, competitivos e burocráticos desse enfoque. A aprendizagem da governança ‘a partir de baixo’, enquanto experiência de ‘redes’ e de ’regionalização’ em ação, dará assim evidências de uma outra aprendizagem. Desde logo, é necessário perguntar se é possível essa aprendizagem sem uma metacognição sobre a aprendizagem de todos os atores (a partir de onde se aprende? como se aprende?), implicando para além da ‘Europeização como aprendizagem’, uma ‘Regionalização como aprendizagem’.

As evidências demonstram que a Europeização tem menos sucesso nos países com administrações mais centralizadas (sendo Portugal e Grécia dados como exemplos, assim como países do leste europeu) e mais sucesso em países com tradição de cooperação regional e baixa capacidade administrativa (capital social). Este insucesso talvez possa ser explicado pelas respostas domésticas à Europeização que se vão acumulando ao longo do tempo, podendo implicar ‘mecanismos racionalistas’ e ‘mecanismos sociológicos’ (Börzel e Risse, 2003). Os primeiros mudam a estrutura de oportunidades interna a cada país e os segundos criam processos de reflexividade e aprendizagem social.

Os Fundos Estruturais criam uma série de oportunidades, preferências e constrangimentos em que a cooperação, as parcerias, a subsidiariedade são critérios para aceder aos mesmos. Cria-se, assim, uma ‘Europeização por conformidade’ (Europeization by compliance). No entanto, a Europeização pela mera transferência de regras pode levar a um neo-institucionalismo, pela criação de novas instituições sem ‘substância’, como é revelado por Dabrowski (2013) para os países de leste e por Ferreira e Seixas (2017) para Portugal. Assim, a mera transferência de regras, associada à falta de capacidade de aprendizagem dos atores políticos locais/regionais e a administrações centralizadas e pouco flexíveis leva a uma Europeização ‘fraca’ ou ‘superficial nas margens’ (Quadro 4).

Quadro 4: Síntese entre Europeização e Regionalização. Fonte: elaboração dos autores 

O trabalho de Dabrowski (2013) sobre a Polónia é uma evidência deste quadro e, especificamente, na relação entre mecanismos sociológicos e estruturas centralizadas e pouco flexíveis, apresentando aspetos que parecem comparáveis com a experiência portuguesa. Dabrowski (2013) apresenta os seguintes fatores como ativadores de uma relação entre Regionalização e Europeização:

Relação entre as normas europeias e os interesses dos atores subnacionais;

A internalização de parcerias/redes requer tempo/aprendizagem própria;

Tal internalização é desigual por regiões, dependendo, assim, da capacidade administrativa e de recursos (pode estar aqui implícita uma desigualdade centro-periferia em que regiões mais perto da administração central internalizam mais rápido);

Influência da cultura política nos processos favorecendo: a) mais o controlo do que a distribuição e a transparência, por exemplo; ou b) falta continua de confiança entre parceiros pelo nível de corrupção, por exemplo; ou ainda c) competição forte por fundos que torna difícil as parcerias pois significam menos dinheiro para cada um dos parceiros.

Em suma, a Europeização em função de mecanismos sociológicos, implica a ativação da Regionalização: “These findings chime hit earlier research suggesting that in places lacking cooperative political culture, partnership can only develop incrementally and build upon the growing experience of the policy actors involved” (Dabrowski, 2013: 1371). Os mecanismos de Europeização surgem-nos, assim, como fundamentais para compreender, quer os arranjos/instrumentos de cooperação intermunicipal existentes, quer a sua capacidade de governança no quadro do sistema de governança multinível que se vai instituindo em cada país.

4. Conclusões

Neste texto foi apresentado um conjunto abrangente de fatores/dimensões que ajudam a explicar a opção por diferentes instrumentos de cooperação intermunicipal nos países europeus e a analisar a capacidade de governança dos diferentes mecanismos num quadro multinível. Como vimos, o grau de descentralização funcional e territorial é moldado pela tradição constitucional-legal de um país e reproduzido por meio de práticas político-administrativas. Ao mesmo tempo, a escolha dos instrumentos de cooperação intermunicipal reflete também os custos de transação associados aos objetivos e aos dilemas de ACI da cooperação entre municípios. Geralmente, esses objetivos são a provisão conjunta de serviços públicos e o planeamento e coordenação intermunicipal/regional.

Porém, a literatura específica sobre cooperação intermunicipal tem estado muito centrada no primeiro aspeto e pouco no segundo, onde a influência da UE se tem feito sentir mais fortemente. Neste quadro, é curioso notar que, embora a generalidade das pesquisas nesta área reconheçam o papel central que a UE tem desempenhado na institucionalização dos arranjos de cooperação intermunicipal como arenas políticas de âmbito regional, constatando inclusive, que muitas das experiências de prestação de serviços à escala supramunicipal só foram possíveis porque essas entidades foram criadas para dar resposta aos requisitos regulamentares impostos para aceder a fundos comunitários (ver, por exemplo, Silva, Teles e Ferreira, 2018, sobre o caso português), este pareça ser um tema em segundo plano.

Ora, este texto conclui defendendo que, num quadro de governança multinível, não é possível falar de institucionalização dos instrumentos de cooperação intermunicipal sem ter em conta a Europeização, através dos (10) “incentivos, financeiros e estratégicos, da Política de Coesão da UE”, como um fator central e primário dessas soluções, sobretudo ao nível do planeamento e coordenação de políticas à escala intermunicipal/regional. A norma, de que Portugal é um caso emblemático, é para que os arranjos de governança para aceder a fundos europeus tenham surgido fora da estrutura tradicional de governo, e, gradualmente, se tenham formalizado, com as aprendizagens introduzidas a cada ciclo comunitário, alterando essa mesma estrutura (Monteiro e Romão, 2018).

Mesmo ao nível das reformas territoriais, a recente consolidação das Comunidades Intermunicipais (Lei 75/2013, de 12 de setembro) foi realizada na sequência das orientações do Eurostat para a uniformização do sistema NUTS, para que fosse possível monitorizar os níveis de desenvolvimento regional e a distribuição dos fundos no âmbito da Política de Coesão. Só assim se pode explicar o elevado experimentalismo observado em termos de cooperação intermunicipal num país cuja estrutura administrativa se encontra fortemente polarizada entre as escalas nacional e municipal (Oliveira e Breda-Vázquez, 2016).

O que se está aqui argumentar é que, em muitos dos casos, foi mais a experiência no planeamento e coordenação regional promovida pela programação da UE que lançou as bases para que os Estados-membros adotassem soluções de cooperação intermunicipal do que a procura por ganhos de escala na prestação de serviços. Assim, o Esquema 3 apresenta uma síntese dos fatores identificados na revisão conceptual das relações entre cooperação intermunicipal e governança multinível, adicionando mais três como pano de fundo dos restantes, designadamente: as visões/estratégias europeias (agendas de desenvolvimento); os instrumentos para as concretizar em cada quadro comunitário; e as respostas institucionais para a implementação de tais instrumentos (essas sim, condicionadas pelas dimensões apresentadas). Estamos em crer que estes fatores podem ajudar a explicar melhor os arranjos de cooperação intermunicipal adotados, do que os contextos institucionais nacionais por si só (Ferreira e Seixas, 2017).

Esquema 3: Sistema de influências entre dimensões da cooperação intermunicipal e capacidade de governança multinível. Fonte: elaboração própria 

O que foi dito anteriormente não invalida as evidências da tendente institucionalização destes arranjos na estrutura formal e do seu alargamento (efeito de transbordamento) a outras áreas. Pelo contrário, serve para relançar o debate sobre cooperação intermunicipal em linha com o debate sobre governança multinível/ territorial e o papel que estes novos arranjos desempenham nesse contexto. Ou seja, a forma como cada país ao longo de cada quadro comunitário foi respondendo aos requisitos regulamentares para o acesso fundos europeus, e a forma como essas experiências foram selecionadas, aprendidas e acumuladas, dando origem a mudanças em que se institucionalizaram os novos arranjos de cooperação intermunicipal (path dependency), são questões que nos parecem centrais e que a pesquisa compara sobre cooperação intermunicipal deverá dar mais atenção no futuro

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1Bélgica, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Holanda, Espanha e Inglaterra.

Recebido: 20 de Junho de 2021; Aceito: 20 de Outubro de 2021

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