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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.42  Porto dez. 2021  Epub 15-Fev-2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soc42r1 

Recensão

BARBALHO, Alexandre (2019), Sistema Nacional de Cultura: campo, saber e poder, Fortaleza, EdUECE

Ana Cíntia Moreira Sales1 

1Faculdade de Letras da Universidade do Porto


O período que vai de 2003 a 2010 corresponde, no Brasil, ao governo Lula; enquanto os anos de 2011 a 2014 são demarcados pelo governo de Dilma Rousseff. Os dois governos foram fundamentais para a estruturação das políticas públicas de cultura no país, através de diversas articulações entre áreas e órgãos federais, estatais e municipais. Dentre os objetivos, havia o pensamento (não executado por governos anteriores) em alinhar os financiamentos e patrocínios na área da cultura por empresas estatais em linhas políticas propostas pelo Ministério da Cultura. Houve, também, o esforço em reaproximar a educação e a cultura como forma de ordenar certas ações do campo da educação com projetos de políticas públicas que estavam a ser desenvolvidos. Entre esses projetos, o Sistema Nacional de Cultura (SNC) surge com um papel estruturante e inovador. Ao SNC se estabeleceu uma função de instituir um sistema de políticas públicas culturais em conjunto com a sociedade, a integrar as políticas federais, estaduais e municipais. O diferencial desse projeto estava na exigência da criação de mecanismos que pudessem viabilizar seu funcionamento nos estados e municípios (através de órgão gestor, conselho, plano e fundo de cultura) e possibilitar algum grau de efetividade das políticas culturais, independentemente do governo vigente. Porém, o Sistema Nacional de Cultura não vingou.

Alexandre Barbalho (2019) procura em seu livro Sistema Nacional de Cultura: campo, saber e poder, descobrir o que o esforço de elaboração e implantação do Sistema Nacional de Cultura revela sobre seu movimento através das instituições, discursos e poderes envolvidos. Sua pesquisa partiu do pressuposto de que o SNC não foi aceito consensualmente no interior do Ministério da Cultura, uma vez que os agentes político-culturais disputavam o estabelecimento do papel do governo na cultura e por meio de quais programas e ações ele seria efetivado. Sua primeira hipótese se baseia na ideia de que para alcançar o reconhecimento dentro do Ministério da Cultura e do próprio governo, se julgou necessário construir um saber sobre o que seria o “sistema de cultura”; e esse saber implicou em um poder disposto aos seus defensores para a implantação do SNC. Outra hipótese que orientou a pesquisa foi a de que a compreensão e a necessidade do Sistema Nacional de Cultura tiveram que ser conquistadas também no âmbito estadual e municipal, junto a agentes e instituições do campo cultural, para estabelecer um processo de hegemonização em torno da proposta.

O pesquisador delineou como suporte teórico-metodológico três conceitos básicos: campo, saber e poder. A discussão referente ao campo é fundamentada pelos estudos de Pierre Bourdieu, em que Barbalho utiliza as reflexões acerca da estrutura do espaço onde se desenvolveram as políticas, as suas particularidades, propriedades e interseções entre os campos. Para entender a correlação entre o saber e o poder, o autor recorreu à perspectiva arqueológica de Michel Foucault, o que demandou a construção de um corpus documental a partir dos discursos referentes ao SNC, desde seu interior - esteve a identificar e agrupar um arranjo de elementos, como também a constituir relações e os reunir de acordo com níveis de relevância. A Teoria do Discurso, desenvolvida segundo Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, ofereceu suporte metodológico para a segunda hipótese, para trabalhar a ideia de um projeto político que se tornasse efetivo devido ao estabelecimento de um conjunto de distintos discursos com o objetivo de dominar ou organizar um campo de significados.

Destaca-se na investigação realizada por Alexandre Barbalho, em seus três capítulos, a atenção aos indícios que levaram às primeiras discussões sobre a importância, necessidade e a possibilidade de criação de políticas públicas para a cultura no Brasil. Para seu desenvolvimento, se nota como imprescindível a utilização de depoimentos prestados a outras teses e dissertações através de uma leitura sistemática e estruturada de materiais existentes, o que permitiu focar em demandas ainda não investigadas. Barbalho também utilizou outros operadores conceituais e construiu a investigação por meio de um corpus empírico diversificado - entre documentos, entrevistas, artigos, fontes hemerográficas e outros.

O pesquisador analisa as gestões dos ministros da cultura ao longo dos doze anos delimitados - Gilberto Gil, Juca Ferreira, Ana de Hollanda e Marta Suplicy -, com a finalidade de observar as estratégias práticas e discursivas realizadas pelos agentes ligados ao processo de institucionalização da cultura no governo federal, e consequentemente, nos estados e municípios. O pressuposto estabelecido na base da investigação se mostrou consistente. Ocorreram disputas no interior do metacampo estatal, no campo político e cultural sobre a compreensão do que seria o Sistema Nacional de Cultura, visto através da análise das tomadas de posição, valores e capitais legitimados pelos agentes arranjados no espaço. Porém, os antagonismos em relação à implantação do SNC colocaram em questão sua efetivação. Observa-se ainda a validade parcial da primeira hipótese apresentada. Assim, realmente foi construído um saber sobre o SNC com o objetivo de legitimá-lo pelos agentes dentro do Ministério da Cultura e implementá-lo, mas em um movimento de avanços e recuos que revela a fragilidade de tal saber. Por outro lado, a segunda hipótese de Barbalho apontou uma maior viabilidade, uma vez que alcançou um consenso razoável ao redor do Sistema Nacional de Cultura entre os gestores públicos das áreas estaduais e municipais, além dos agentes do campo cultural.

Barbalho mostra também que existiu um processo de hegemonização, isto é, de construção de uma ampla identidade social com a política cultural, sendo o Ministério da Cultura o agente principal na articulação de distintas posições. Tal valor hegemônico continuou até ao final do governo Dilma, em que ocorreu a adesão aos valores que o SNC reúne: a democracia, a institucionalização e o financiamento da cultura. O programa articulou ainda várias demandas históricas do campo cultural, mas em contraponto, encontrou o autoritarismo, a fragilidade institucional e a falta de recurso das políticas culturais. É interessante, no entanto, que a nível estadual e municipal ainda exista o esforço em continuar com o programa - mesmo com a crise instaurada e agravada nos governos seguintes -, como no caso do Rio de Janeiro. Por fim, o pesquisador reflete que o Sistema precisará empregar bastante esforço político e institucional para se tornar uma política relativamente estável e, consequentemente, ser implantado.

Alexandre Barbalho apresenta em seu livro uma pesquisa muito bem articulada, em que mostra a importância de discutir sobre a conjuntura política brasileira e as ações frente às políticas públicas culturais. As tomadas de posições, os discursos e as práticas dos agentes despendidos nos campos político e cultural evidenciam a dificuldade em dar a devida relevância à cultura no país e, principalmente, desenvolver um plano bem estruturado que consiga enfrentar os desafios que se encontram ao longo do caminho. Como o autor bem pontua, os agentes culturais externos são imprescindíveis para a reformulação e continuidade do projeto - além do modo em que a sociedade irá se apropriar ou não dele. Fica a preocupação com a conjuntura político-partidária que se estabeleceu desde o governo Temer e tornou ainda mais escassos os financiamentos para a área. Por outro lado, fica também a necessidade de se investigar mais e responder as diversas questões existentes acerca das políticas públicas culturais no Brasil

1Licenciado em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), bacharel em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Realizou estágio pós-doutoral em Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. É professor adjunto do curso de História e professor permanente dos Programas de Pós-graduação em Sociologia e em Políticas Públicas da UECE e em Comunicação da UFC, e colaborador do Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense

Recebido: 21 de Setembro de 2021; Aceito: 10 de Novembro de 2021

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