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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.42  Porto dez. 2021  Epub 20-Fev-2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soc42r2 

Recensão

DAVIS, Angela (2018),. Estarão as prisões obsoletas?, Rio de Janeiro, Brasil: Difel

Paula Calainho Teixeira1 

1Faculdade de Letras Universidade do Porto


O livro de Angela Davis (2018) foi originalmente publicado nos Estados Unidos da América com o título “Are prisons obsolete?” e traduzido para o português no ano de 2018 por Marina Vargas. A obra traz uma análise histórica sobre o processo de encarceramento em massa norte-americano, numa perspectiva crítica sobre um sistema industrial-prisional firmado no lucro e estruturalmente baseado em ideologias punitivas opressoras e discriminatórias de classe, gênero, etnia e raça.

Fundamentada em dados estatísticos, fatos e processos históricos, a obra está dividida em seis capítulos, nos temas: 1. Reforma e abolição do sistema prisional; 2. Escravidão, direitos civis e abolicionistas; 3. Aprisionamento e reforma; 4. Gênero e estrutura prisional; 5. Complexo industrial-prisional e 6. Alternativas abolicionistas.

O primeiro capítulo fomenta a reflexão sobre as certezas da necessidade e eficácia de um sistema punitivo e prisional e a possibilidade de um mundo sem o cárcere. Estimula-se a desvinculação dos conceitos de crime e castigo e a idealização de uma nova ordem social sem a busca pela falsa tríade: punição, arrependimento e ressocialização. Diferente dos reformistas, Davis defende a abolição do encarceramento por considerar o sistema penal e prisional formas de controle social que, além de não questionarem as origens sociais dos fatos ditos “indesejáveis”, atuam com violência e forte discriminação de classe, raça e gênero. Para Ruth Gilmore as prisões são “uma solução geográfica para problemas socioeconômicos” (Gilmore, 1998: 174 as cited in Davis, 2018: 12).

Apesar de reconhecer a necessidade de reformas em questões urgentes como o abuso sexual, a violência e a negligência médica, a autora defende que discussões reformistas impedem a compreensão de outros tipos de justiça que não a punitiva, assim como alternativas ao encarceramento. “O desafio mais difícil e urgente hoje é explorar de maneira criativa novos terrenos para a justiça nos quais a prisão não seja mais nossa principal âncora” (Davis, 2018: 18).

Segundo Davis, a mídia e o senso comum naturalizam as prisões. A partir de um discurso de segurança da sociedade pelo aprisionamento dos “indesejáveis”, a prisão ganha status de garantia de direitos e torna-se algo incontestável, mesmo quando baseada em práticas de segregação e banimento com fortes tendências racistas. Desta forma, impede-se a consideração de uma ordem social não fundamentada na imposição do medo do aprisionamento em local desumano, extirpado da presença da família e da comunidade. Desde a escola, principalmente as presentes em comunidades pobres e negras, a filosofia do castigo e do cárcere vai sendo incutida paulatinamente em conceitos de disciplina e segurança.

A autora descreve que o pensamento abolicionista é frequentemente visto como “impensável e implausível” e seus defensores, “idealistas e utópicos” (Davis, 2018: 7). Mesmo aqueles considerados “ativistas antiprisionais” acabam por defender e se contentar com profundas reformas no sistema e melhorias nas condições prisionais. Segundo Davis, a realidade prisional e as alternativas ao encarceramento são raramente discutidas, afinal, a proporção de aprisionados é fortemente desigual, sendo maioritariamente comunidades pobres negras, latinas e asiático-americanas. Para estas a prisão faz parte da vida, sendo praticamente inevitável. Questiona, porém: “Estamos dispostos a relegar um número cada vez maior de pessoas de comunidades racialmente oprimidas a uma existência isolada, marcada por regimes autoritários, violência, doenças e tecnologias de reclusão que produzem severa instabilidade mental?” (Davis, 2018: 8).

O quarto capítulo traz uma análise fundamentada nas questões de gênero do sistema prisional, agravadas nos mesmos grupos oprimidos masculinos. Destacam-se temas como: a estrutura originalmente pensada para os homens; as práticas ressocializadoras baseadas nos estereótipos femininos, como culinária e atividades domésticas; a vivência das mulheres negras, além da grave realidade de abuso sexual das prisões femininas. Para a autora a escassa discussão política e o raro combate pelos agentes públicos das más condições e das práticas racistas e misóginas do cárcere feminino só potencializam a violência.

Em uma realidade em que mais de 2 milhões de pessoas vivem encarceradas nos EUA, vê-se a ineficácia do discurso da Era Reagan em 1980 sobre a relação direta entre o aumento do encarceramento e a redução da criminalidade para a paz social. Os aumentos da violência e da reincidência induzem a conclusão sobre a ineficácia do sistema carcerário e seu propósito ressocializador.

A obra expõe uma política norte-americana de prestação mínima de direitos fundamentais e de poder punitivo estatal máximo, criando um “complexo industrial-prisional”. Proliferam-se prisões e uma estrutura privada altamente lucrativa, seja na sua administração, construção, fornecimento de bens e serviços ou na utilização de mão de obra encarcerada. Davis defende que o lucro gerado pelo encarceramento em massa é movido pelos interesses capitalistas e cria um círculo vicioso que traz destruição social e estimula a reprodução das condições que geraram a punição.

A autora compara o sistema de arrendamento de condenados com a escravidão, sendo aquele ainda mais terrível. Enquanto a morte de um escravo significava uma perda de investimento, os condenados eram forçados a trabalhar até a morte, sendo fácil e rapidamente repostos. O sistema passa a negar as penas mínimas, já que as longas representam maior lucro. Apesar de inexistir atualmente o sistema de arrendamento de condenados, o trabalho no cárcere persiste, perfazendo-se mais uma forma lucrativa de exploração.

A historiadora Mary Ellen Curtin aponta que “Depois da emancipação, os tribunais se tornaram o lugar ideal para exercer a retaliação racial” (Curtin, 2000: 44, as cited inDavis, 2018: 31). Para Davis a política de repressão e encarceramento em massa reflete o racismo pós-abolicionismo. Apresenta-se uma visão perspectivada da prisão considerando o processo histórico de escravidão, linchamento e segregação de comunidades negras, atualmente reproduzidas nas classes pobres, latinas e asiáticas. Uma política punitiva e de segregação que espelha a incapacidade da comunidade branca hegemônica de aceitar a existência de grupos minoritários em situação de igualdade. Sem maiores dificuldades em admitir a prática ideológica, o crime é imputado à cor, sendo reconhecido que nos EUA a “raça sempre desempenhou um papel central na construção de presunções de criminalidade” (Davis, 2018: 26). Os Códigos Negros, o uso da 13ª Emenda Constitucional como brecha para políticas racistas e os procedimentos formais de certos Departamentos de Polícia - que mesmo sem causa prevêem o aumento da detenção de negros e latinos - comprovam.

Ao final o texto apresenta perspectivas abolicionistas e - contrariamente a uma solução única para as políticas de punição, repressão e encarceramento com base na classe, raça, etnia e género - defende a implantação de inúmeras mudanças radicais em diferentes aspectos da sociedade. A obra de Davis defende a politização das discussões sobre o sistema punitivo e prisional a fim de encontrar alternativas ao cárcere, assim como garantir a todos, sem discriminação, o acesso aos direitos fundamentais. Consagra-se como uma relevante obra reflexiva sobre questões complexas e urgentes de direitos humanos.

Bibliografia

CURTIN, Ellen Curtin, 2000. Black prisoners and their world: Alabama, 1865-1900. Charlottesville, University Press of Virginia. [ Links ]

DAVIS, Angela (2018), Estarão as prisões obsoletas?. Rio de Janeiro: Difel. [ Links ]

GILMORE, Rute Wilson (1998), “Globalisation and U.S. prison growth: from military Keynesianism to Post-Keynesian militarism”. Race and Class, 40(2/3) [ Links ]

1Angela Yvonne Davis nasceu nos EUA, é filósofa marxista, pesquisadora e docente na Universidade da Califórnia. Militante desde a sua juventude, integrou o Movimento dos Panteras Negras e esteve dezesseis meses na prisão aguardando julgamento, sendo posteriormente absolvida. Atuou em diferentes organizações de proteção aos direitos humanos, especialmente com lutas ligadas ao racismo, gênero e o aprisionamento. Autora de vários livros, entre eles: “Mulheres, raça e classe”; “Mulheres, cultura e política” e “A liberdade é uma luta constante”

Recebido: 21 de Agosto de 2021; Aceito: 10 de Novembro de 2021

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