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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia  no.tematico11 Porto dez. 2021  Epub 25-Fev-2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soctem2021a4 

Artigos originais

A secularidade organizacional pública e o campo religioso português: reorientações e poderes entre Estado e religião (2001-2012)

Public organizational secularity and the Portuguese religious field: reorientations and power between State and religion (2001-2012)

La secularité organizationelle publique et le champ religieux portugais: réorientations et pouvoirs entre l’État et le réligion (2001-2012)

La secularidad organizacional pública y el campo religioso portugués: reorientaciones y poderes entre Estado y religión (2001-2012)

Luís Pais Bernardo

1Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

2Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento-Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa


RESUMO

Entre 2001 e 2009, o campo religioso português enfrentou uma sequência de reconfigurações que colocou a sua estrutura de poder em perspectiva. Duas décadas após a institucionalização da Comissão da Liberdade Religiosa, a redefinição da relação entre o religioso e o secular convocou uma reavaliação das relações entre Estado, tradições religiosas e secularidades organizacionais. Neste artigo, o caso da saúde, nomeadamente as políticas públicas de governo da religião em contexto hospitalar, constitui um ponto de partida para a interrogação do campo religioso a partir de um regime específico de secularidade: público e biomédico.

Palavras-chave: Secularidade; Campo; Relações Estado-religião

ABSTRACT

Between 2001 and 2009, the Portuguese religious field faced a sequenced reconfiguration which put its power structure in perspective. Two decades after the institutionalization of the Committee on Religious Freedom, the redefinition of the relationship between the secular and the religious summoned a debate on the relationship between the State, religious traditions and organizational secularities. In this article, the case of healthcare, namely the governance of religion in hospitals, interrogates the religious field from the standpoint of a public-biomedical secularity regime.

Keywords: Secularity; Field; State-religion relations

RÉSUMÉ

Entre 2001 et 2009, le champ religieux portugais a été confronté à une série de reconfigurations qui ont mis en perspective sa structure de pouvoir. Deux décennies après l'institutionnalisation de la Commission pour la liberté religieuse, la redéfinition de la relation entre le religieux et le séculier a nécessité une réévaluation des relations entre l'État, les traditions religieuses et les sécularités organisationnelles. Dans cet article, le cas de la santé, notamment les politiques publiques de gouvernance de la religion en milieu hospitalier, constitue un point de départ pour interroger le champ religieux à partir d'un régime spécifique de secularité : public et biomédical.

Mots-clés: Secularité; Champ; Relations État-religion

RESÚMEN

Entre 2001 y 2009, el campo religioso portugués se enfrentó a una secuencia de reconfiguraciones que pusieron en perspectiva su estructura de poder. Dos décadas después de la institucionalización de la Comisión de Libertad Religiosa, la redefinición de la relación entre lo religioso y lo secular exigió una reevaluación de las relaciones entre el Estado, las tradiciones religiosas y las secularidades organizacionales. En este artículo, el caso de la salud, es decir, las políticas públicas de gobierno de la religión en el ámbito hospitalario, constituye un punto de partida para interrogar el campo religioso desde un régimen específico de secularidad: el público y el biomédico.

Palavras-clave: Secularidad; Campo; Relaciones Estado-religion

O campo religioso e as secularidades organizacionais: introdução

Em 2001, a entrada em vigor da Lei da Liberdade Religiosa (LLR) inaugurou uma nova fase do campo religioso português. Após uma acesa discussão parlamentar, a LLR acabaria por rever as relações Estado-religião e reposicionar o Estado como construtor do secular e do religioso. O acendimento da questão, que nos permite revisitar a autonomia relativa do campo religioso, deveu-se, parcialmente, à abertura de uma estrutura de oportunidades, entretando limitada, explicável por elementos estruturais, nomeadamente a secularização e diversificação religiosa da sociedade portuguesa, e por elementos contingentes, como a emergência do Bloco de Esquerda, um partido político que deu expressão mediática e parlamentar a uma sensibilidade laicista radical. Apesar da importância reconhecida do momento, que transformou a estrutura de

poder do campo (embora não tenha reconfigurado a sua tendência centrípeta), a sua consideração, a vinte anos de distância, requer uma ponderação multiescalar. Se, por um lado, a questão da predominância sociodemográfica do catolicismo persiste enquanto argumento, a “diversidade religiosa” enquanto factor político passou a ser relevante. Deste ponto de vista, o carácter hierárquico do campo religioso conjuga-se com a sua feição centrípeta: no centro, a relação, ambivalente e poderosa, entre o Estado e a Igreja Católica Apostólica Romana; a distâncias variadas desse centro difusor de legitimidade, tradições religiosas com expressões sociodemográficas variadas ocupam posições cuja relação com o seu designado “peso” é extremamente ténue.

Neste texto, a teoria de campos, explanada por Fligstein e McAdam (2011, 2012), com uma importante reflexão adicional por Martin (2011), é aplicada no sentido de explorar a relação ambivalente entre o repertório político de regulação do campo religioso e as suas concretizações. Para isso, utiliza-se a regulamentação da LLR, em 2009, como ponto médio - temporal e estrutural -, de modo a considerar as formas organizacionais da secularidade enquanto componentes de campos. A posição das capelanias católicas mudou; no entanto, a magnitude desta mudança é questionável. Deste ponto de vista, a regulamentação da LLR constitui um estudo de caso sobre as relações Estado-religião, enquanto conjunto de arranjos institucionais, e o seu impacto na religião vivida em contexto organizacional.

Apesar de, em 2009, o hospital ter sido apenas um dos campos organizacionais de acção estratégica objecto de re-regulação (o mundo carceral e o mundo militar também o foram), trata- se de um espaço social e organizacional com duas especificidades: as categorias epistemológicas biomédicas e públicas conhecem uma convergência que reduz explicita ou implicitamente o espaço do religioso no mundo hospitalar. O regime de percepção e valoração do “público”, em contextos de saúde, adquire um lastro histórico adicional no contexto hospitalar. Esta presunção permite-nos explorar a noção de regime de secularidade organizacional e afirmar que, se os regimes de secularidade organizacional importam, o seu carácter público ou privado também é relevante. Isto é, a secularidade pública tem um projecto específico de controlo, regulação e legitimação da religião e do religioso.

O artigo organiza-se em seis secções. Na primeira secção, que se conclui com a descrição do artigo restante, introduz-se a temática. Na segunda secção, discuto a abordagem teórica. Na terceira secção, descrevo o campo religioso português com recurso aos instrumentos analíticos identificados na secção anterior. Na quarta secção, apresento um estudo de caso sobre o percurso complexo do Decreto-Lei 253/2009 e a emergência do Grupo de Trabalho Inter-Religioso Religiões-Saúde. Na quarta secção, exploro as potencialidades e limites de uma abordagem organizacional aos regimes de secularidade. Na quinta secção, elaboro algumas conclusões e sugiro um caminho de investigação.

Dos campos aos casos

De acordo com Fligstein e McAdam, um “campo de acção estratégica (CAE) é uma ordem social de nível médio em que os actores (que podem ser individuais ou colectivos) estão em sintonia e interagem uns com os outros na base de compreensões partilhadas (que podem não ser consensuais) acerca do propósito do campo, relações com outros no mesmo campo (incluindo quem tem poder e porquê), e as regras que governam a acção legítima no campo.” (Fligstein e McAdam, 2012, pp.1). Os CAE são, para esta abordagem, “as unidades fundamentais de acção colectiva na sociedade” (Fligstein e McAdam, 2012, pp.1) e “estão focados na emergência, estabilização/institucionalização e transformação de arenas socialmente construídas em que os actores incorporados competem por recompensas materiais e de estatuto” (Fligstein e McAdam,

2012, pp.1). A teoria de campos é uma abordagem relacional aos fenómenos sociais: a relevância da orientação dos actores para as relações é fundamental. Contudo, as relações não são necessariamente consensuais. Quando envolvem conflito, nomeadamente por recursos ou domínio sobre o quadro cognitivo dominante, também envolvem orientações estratégicas. No entanto, isto não significa que a abordagem ora proposta seja reducionista ou racionalista. Embora possam orientar-se estrategicamente para metas do seu interesse, a construção de sentido, a criação de significados partilhados e a manutenção da estabilidade do campo também são orientações potencialmente determinantes. O campo religioso pode incluir actores interessados no desenvolvimento ou melhoria da sua posição perante outros actores, mas os agentes no campo religioso também têm um interesse declarado na manutenção da saliência e autonomia do campo face a outros campos sociais. Os debates sobre laicismo, secularismo e secularização são relevantes para a definição de prioridades estratégicas por parte dos actores religiosos e para a sua preferência por construção de coligações com outros actores religiosos; além disso, estes actores e respectivos representantes podem acreditar que a saliência da religião é suficientemente importante para favorecer a construção de coligações em detrimento de diferenças simbólicas ou discursivas irredutíveis. Como sugerido abaixo, o debate em torno do Decreto-Lei 253/2009 é uma expressão desta escolha. Assim, o acordo dominante sobre o campo religioso e a posição do campo em relação aos campos próximos, nomeadamente o campo político, explica, do ponto de vista da abordagem dos CAE, as orientações do atores no perímetro do campo religioso.

Neste contexto, relevo dois aspetos fundamentais. O primeiro responde ao problema do conflito em campos estáveis, ao passo que o segundo constitui uma das inovações teóricas fundamentais da abordagem: as unidades de governo interno.

O problema do conflito periódico é fundamental para a teorização adequada da estabilidade dos campos. O campo religioso português é um caso relevante: permaneceu estável, com pouco conflito sobre os acordos dominantes (incluindo entre 1974 e 1976), até à discussão e entrada em vigor da LLR, em 2001. Nesse momento, forçou-se uma redefinição do eventual acordo dominante e das posições dos actores religiosos. O caso da categorização das tradições religiosas entre “radicadas” e não-radicadas é ilustrativo a este respeito. O período 2001-2012 caracterizou-se pela dinâmica de realinhamento entre actores religosos: no caso da saúde e, em particular, da assistência espiritual e religiosa em contexto hospitalar, não existiu conflito sobre ou contestação à posição dominante e excecional da Igreja Católica.

Tipicamente, um CAE relativamente complexo tende a incorporar uma unidade de governo interno. Esta inovação conceptual erode a dicotomia tradicional da teoria de campos, que prevê relações predominantemente duais entre atores dominantes e contestatários. De acordo com Fligstein e McAdam, “muitos CAE mantêm unidades de governo interno cujo mandato consiste na monitorização da conformidade com as regras do campo e, em geral, na facilitação do funcionamento e reprodução suaves do sistema” (Fligstein e McAdam, 2011, pp. 45). Centrada na função de reprodução, a unidade de governo interno tem um enviesamento particular para a protecção do acordo dominante no campo: “virtualmente todas estas unidades operam sob influência dos actores dominantes no campo e das suas ideias” (Fligstein e McAdam, 2011, pp.

45). No caso do campo religioso português, a criação da Comissão da Liberdade Religiosa (CLR) representa um momento de inovação institucional enquadrável nesta abordagem. Fligstein e McAdam, de forma controversa, concluem que, “apesar da retórica de legitimação que motiva a criação destas unidades, elas não servem, geralmente, para arbitrar, com neutralidade, os conflitos entre actores dominantes e contestatários, mas para reforçar a perspectiva dominante e proteger os interesses dos dominantes” (Fligstein e McAdam, 2011, pp. 45). No contexto da LLR, a emergência da CLR, na sua configuração coetânea, também parece justificar esta perceção. À contestação momentânea, após 2009, sobrepôs-se a necessidade de uma coligação.

O campo religioso português como campo de ação estratégica

Entre 1991 e 2011, o caso português era percebido como um dos mais homogéneos da Europa Ocidental/Meridional, no que diz respeito a padrões de diversidade étnica e religiosa. Além disto, a história política recente demonstra a imbricação mútua do campo político e do campo religioso, pelo menos até 1976 (i.e. Santos, 2005; Carvalho, 2013, Matos, 2011).

O campo religioso português definia-se, em primeira instância, pelo domínio católico. Embora se trate de uma evidência amplamente documentada (i.e.; Azevedo, 2000a, 2000b, 2002; Dix 2009, 2010, Teixeira et al., 2019; Vilaça, 2006), podemos alargar esta asserção a partir dos pressupostos inerentes aos CAE. O padrão de domínio católico associa-se à predominância cristã no campo religioso português: a geometria variável da compatibilidade doutrinária tende a produzir alinhamentos frequentes, embora ocorram excepções. A distância face a este actor dominante produz a distribuição topológica dos atores e a disposição para a criação de coligações sob liderança da Igreja Católica intensifica-a. A orientação estratégica dos atores restantes no campo religioso é, assim, um produto da relação mantida com o ator dominante (e, a partir de 2001, com a CLR). As tradições cristãs, em particular, assumem uma posição variável e demonstrativa do peso de um acordo dominante estabilizado em torno do predomínio católico: protestantes congregacionais e não-congregacionais, além de ortodoxos, tendiam a ser percebidos como aliados numa frente ecuménica no campo religioso. As tradições religiosas com radicação superior a 30 anos, nos termos da LLR, constituem um caso importante: o seu legado histórico e a sua posição social saliente, expressa, a partir de 2001, pela definição de um critério concreto para a aferição desse legado e posição social, contrastam com a posição das tradições com presença atestada em Portugal inferior ao limite estabelecido pelo mesmo diploma. Isto é, a dinâmica centrípeta do campo religioso português não era apenas um produto do acordo dominante ou da força católica: era um produto da orientação das tradições religiosas que procuram ocupar espaços concretos no campo.

Esta leitura deve, contudo, ser fortemente matizada. Apesar do reconhecimento de que a história política das relações entre Estado e religião opera sob o signo parcial da hegemonia, as formas de criação e transformação desta relação não podem ser reduzidas a uma condição de estabilidade absoluta. A predominância cristã, embora reconhecível, consolidou-se em interação com a construção do Estado português e respetivas consequências para a morfologia da sociedade portuguesa. Um amplo conjunto de estudos sugere que esta relação tem uma temporalidade longa e persistente (i.e. Branco, 2017; Fernandes, 2009; Glatzer e Manuel, 2019), ao passo que a importância das tradições religiosas (não apenas, mas predominantemente cristãs) na sociedade civil, nomeadamente na provisão de serviços sociais e na construção de um modelo de providência assente na relação subsidiária entre Estado e tradições religiosas, é um tema também amplamente discutido, com destaque para o papel de formas organizacionais como as Misericórdias ou as Instituições Particulares de Solidariedade Social (Ferreira, 2000, 2013; Franco et al., 2005; Giorgi e Accornero, 2018; Ruano et al., 2020). Em conclusão, o caráter centrípeto do campo religioso português não é uma expressão linear da hegemonia cristã: se existe, essa hegemonia, tal como expressa na estabilidade do campo, tem sido confrontada com momentos de conflito episódico, com destaque para o campo político (i.e. Fernandes, 2009; Santos, 2005). No entanto, sustento, neste trabalho, que a estrutura do campo religioso português pode ser interpretada com recurso à presunção de que uma coligação predominantemente cristã foi reforçada, em 2001, pela emergência da CLR enquanto unidade de governo interno.

As tradições expressivas das chamadas “religiões do mundo” eram percebidas como historicamente significativas e mantinham um estatuto e legitimidade significativos. As comunidades muçulmanas, judaica, hindu, budista e, em menor grau, baha’i, deriva vam a sua significância de argumentos que se afastam daqueles tipicamente usados para justificar a manutenção do predomínio católico: ao passo que o catolicismo mantém a sua condição de excecionalidade pelo peso sociológico e demográfico, as tradições anteriormente mencionadas têm uma estatura que deriva da sua importância civilizacional. A este título, o caso da comunidade ismaelita é ilustrativo. Os seus recursos e capacidades organizacionais ou políticas não são directamente proporcionais à sua expressão demográfica. Em 2010, o Estado português assinou uma quasi-Concordata com o actual Aga Khan, ilustrando a complexidade destas relações. O Islão sunita, em particular a liderança da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), também mantém recursos e capacidades desligadas do seu peso demográfico; no caso da CIL, o alinhamento tipicamente demonstrado com o acordo dominante no campo religioso explica a proximidade (com a exceção de momentos pouco significativos) com o núcleo central do campo religioso.

Um conjunto de atores aparentemente menos significativo coloca a importância do caráter centrípeto e da instituição de uma unidade de governo interno em perspetiva. Este conjunto compreende atores religiosos com um grau mais baixo de legitimidade conjugado com uma abordagem contestatária ao campo religioso, por um lado, ou com uma abordagem centrada na auto-exclusão, por outro. O caso das igrejas neopentecostais, integradas no conjunto dos novos movimentos religiosos é ilustrativo: no contexto de um novo regime migratório, resultante no incremento da diversidade religiosa, estes atores coletivos conhecem adesões importantes nas comunidades brasileira e africana lusófona; são, com frequência, enquadradas como ameaças à estabilidade do campo religioso e estiveram no centro de pânicos morais durante as últimas décadas. Integrada neste conjunto, apesar de isolada das outras constituintes, a tradição das Testemunhas de Jeová tendeu a optar pela auto-exclusão, embora essa orientação estratégica seja âmbigua. No caso do Decreto-Lei 253/2009, este padrão de auto-exclusão foi reforçado pela exclusão desta tradição pelos atores mais próximos do núcleo central do campo religioso: a conflitualidade associada à participação das Testemunhas de Jeová no campo religioso tem uma relação concreta e documentada com a saúde. Neste sentido, a orientação das tradições integradas neste conjunto revela uma dependência aparente mais forte da sua posição no campo que de preferências doutrinárias, uma vez que estas diferem amplamente e não demonstram uma orientação para a convergência na contestação. Este contingente tem uma relevância específica para a regulação da assistência espiritual e religiosa em contexto hospitalar, já que estes atores tendem a interessar-se por questões ligadas à saúde. As igrejas carismáticas reivindicam a legitimidade de práticas de cura pela fé e outras práticas irredutivelmente negadas pela classe profissional médica (em contraste com a prática tradicional da capelania católica, aceite com reservas e contrariada, tendencialmente, com base na figura controversa do capelão hospitalar). Noutros trabalhos, explorei o repertório dos capelães católicos face a estes atores e respetivas orientações (Bernardo, 2016, 2017); o argumento central é o de que a LLR cooptou a perceção da ameaça, tal como expressa pela Igreja Católica, e redefiniu a categoria de “confissão religiosa” em torno dessa avaliação. Nesse sentido, a CLR, como unidade de governo interno do campo religioso, opera tal como esperado pela abordagem CAE. Isto parece ser confirmado pela composição da CLR, que exclui tradições religiosas topologicamente distantes do núcleo central do campo religioso: embora demograficamente relevantes, as igrejas neopentecostais não têm lugar na CLR, ao passo que a Comunidade Israelita e a Comunidade Ismaelita, apesar da sua baixa relevância nos termos desse critério, mantêm um lugar na Comissão desde a sua institucionalização. Este dado suporta a percepção de que a CLR, sendo uma unidade de governo interno, também é um reflexo da preferência por representação corporativa - aliás tradicional na articulação de campos distintos como o das relações económicas ou da regulação do trabalho - no contexto português. O Registo Central de Pessoas Coletivas Religiosas impõe uma hierarquia diferente daquela que vigorou até 2001: o reconhecimento expresso da legitimidade, convertido em legibilidade social (Scott, 1998), é uma função da cooptação corporativa dos actores no campo religioso. Pode argumentar-se que, se a Igreja Católica categorizava, formal ou informalmente, uma tradição religiosa como inelegível, a representação desta tradição na CLR complicava-se; sem essa representação, a tradição inelegível não estabelecia um nível básico de legitimidade. O lastro histórico do catolicismo continuava a ter uma influência poderosa na configuração do campo religioso. A liderança da Igreja Católica na contenção desse avanço torna-se duplamente importante: por um lado, orienta estrategicamente a própria Igreja Católica para o reforço do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, mas também reforça a exclusão de tradições com baixos níveis de legitimidade; por outro, orienta estrategicamente as tradições religiosas próximas do núcleo central do campo religioso, nomeadamente aquelas que mantêm representação na CLR, para a aceitação do acordo dominante, embora os seus interesses e a sua representação normativa da diversidade religiosa possam não coincidir com a interpretação católica.

Para além disto, a predominância cristã, decorrente dos efeitos cumulativos do legado histórico do catolicismo, condiciona a forma e a topologia do campo religioso. As múltiplas expressões cristãs foram e são determinantes, provavelmente mais que qualquer outra tradição religiosa. A emergência de igrejas não-tradicionais, a partir da década de 1980 enquadra a emergência dos Novos Movimentos Religiosos (Vilaça, 2006, 2012, 2013) e conhece um importante reforço com a transição migratória em curso, pelo menos, até 2012 (Peixoto e Horta, 2012; Vilaça, 2013; Vilaça e Pace, 2010; Vilaça et al., 2015). Este incremento significativo na pluralidade de actores motivou algum conflito episódico num campo tradicionalmente estável (Vilaça, 2006, 2012, 2013). O diploma legal de regulação da assistência religiosa de 1980, antecessor do Decreto-Lei 253/2009, causou um desses episódios de conflito.

Em 2007, a Concordata de 2004 já exigia novas adições regulatórias. Tratava-se de uma exigência convergente entre a Igreja Católica e os representantes do Estado português, já que a LLR impunha um conjunto de provisões incompatíveis com a Concordata. Ao passo que a LLR não era agressivamente anti-religiosa, um traço potencialmente identificável no primeiro projecto-lei discutido na Assembleia da República, forçou, ainda assim, uma reconsideração das relações Estado-religião em Portugal. Depois da LLR, o quadro legal e institucional vigente, que incluia a Concordata de 1940, com a reconfiguração (limitada) de 1975, e o Decreto Regulamentar 58/80, que regulava o estatuto das capelanias e capelães hospitalares, continha incoerências concretas e não refletia a configuração percebida da sociedade portuguesa. Já não se tratava de uma sociedade plausivelmente caracterizada como monoconfessional. Em 2001, o Estado encarregava-se de determinar critérios gerais de legitimidade e legibilidade (Scott, 1998; Laurence, 2012).

O Decreto-Lei 253/2009 e o Grupo de Trabalho: um estudo de caso

Em 2009, já era claro que a utilização excecional de espaços para prática religiosa em hospitais pela Igreja Católica não estava adaptada à diversidade sócio-religiosa. A sensibilidade intercultural era um dado cada vez mais relevante e isto motivou um adaptação do Estado português e da Igreja Católica. Apesar do reconhecimento da legitimidade e necessidade de uma adaptação do regime vigente, a redação e aprovação do Decreto-Lei 253/2009 foi conflituosa: desde logo, uma comparação com os Decretos-Lei 251/2009 (relativo à regulação da assistência religiosa em contextos militares) e 252/2009 (relativo à regulação da assistência religiosa em contextos carcerais) mostra a saliência intensificada da assistência espiritual e religiosa em contexto hospitalar. De facto, a mobilização das tradições religiosas, independentemente da sua posição no campo religioso, incidiu especialmente na regulação do seu acesso aos hospitais. Deste ponto de vista, o repertório de mobilização utilizado pela Igreja Católica terá sido surpreendente para outros atores no campo religioso, já que reforçou a exigência de conformidade com o acordo dominante no campo religioso tal como estabilizado em 2001 e escalou um conflito episódico com o Ministério da Saúde. Ao passo que esse ministério, no seguimento da determinação política do ministro tutelar e do próprio primeiro-ministro incumbente à data, encarava a inserção de igualdade no acesso e provisão de assistência espiritual e religiosa como condição mínima do cumprimento da lei e como garantia básica da neutralidade imposta pela dimensão pública do Serviço Nacional de Saúde, a Igreja Católica encarou essa transformação como desmantelamento e enquadrou-a nos termos de uma agenda secularizante. Do ponto de vista católico, o objectivo básico do novo acordo deveria incidir na manutenção dos espaços para fruição do religioso em contexto hospitalar e, sendo a mais representativa das tradições, a continuidade dessa fruição nos termos previamente definidos era inegociável. A inserção de igualdade, também de acordo com a Igreja Católica, deveria partir da extensão de direitos e não da sua eliminação, tal como entendia o primeiro projecto de diploma. Esse primeiro projeto resultou num conjunto de críticas, nomeadamente católicas, que incidiram no Ministro da Saúde e na Secretária de Estado da Saúde, encarregue de gerir politicamente o processo. Com o prolongamento do processo de decisão acerca do diploma, o primeiro-ministro removeu a responsabilidade política da órbita do ministro da saúde e passou a gerir o processo. O diploma final reflete este conflito episódico. As reservas do então presidente interino da CLR (ex-presidente da AEP) são particularmente interessantes a este respeito: trata-se da única expressão pública de crítica ao diploma final; os representantes das tradições religiosas com assento na CLR não se pronunciaram. A partir de uma leitura deste processo centrada na abordagem proposta por este artigo, a orientação estratégica para a proteção ou conformidade com o acordo dominante no campo religioso foi determinante. A aceitação de duas premissas foi relevante: a perceção de que a redução da excecionalidade conferida à Igreja Católica acarretaria riscos extensíveis a todas as tradições religiosas e, além disso, a preferência pela manutenção de uma frente razoavelmente unificada contra o avanço da agenda secularista corporizada pela primeira versão do diploma.

Uma leitura do Decreto-Lei 253/2009 revela que três entidades estiveram envolvidas na redação do diploma. Em primeiro lugar, a Conferência Episcopal Portuguesa; em segundo, um comité de pares constituído por representantes do Vaticano e do Estado português, suportado e legitimado pela Concordata de 2004; e, finalmente, a CLR, como unidade de governo interno do campo religioso em que a Conferência Episcopal mantinha (e mantém) uma representação proporcional à representatividade social do catolicismo. De acordo com o pedido da CLR, a primeira versão foi redigida por elementos técnicos do Ministério da Saúde e era percebida como mantendo o aparato regulatório de 1980 intacto, preservando as exigências do regime de excecionalidade assente na Concordata; contudo, não era inteiramente compatível com a LLR. Por este motivo, foi requerida uma segunda versão, na qual se procurava eliminar a remuneração da assistência religiosa e impor um regime de assistência espiritual e religiosa suportado por voluntariado. Além disto, definia os termos da assistência espiritual e religiosa sem recurso à representatividade de tradições específicas como factor de legitimação ou excepção. A segunda versão gerou o conflito a que aludi acima; tratava-se de uma conversão regulatória que transformava profundamente os termos do acordo dominante no campo religioso.

A versão final, conducente ao Decreto-Lei 253/2009, foi lida e aprovada sequencialmente. A Conferência Episcopal Portuguesa acedeu ao documento antes da CLR, que protestou. Contudo, o processo de consensualização do diploma não teve a participação de tradições religiosas sem representação na própria CLR: tratou-se de um ajustamento coincidente com a função adstrita, por Fligstein e McAdam, à unidade de governo interno.

Este processo, de conflitualidade inusitada no campo religioso, mas regularmente observável na formulação de políticas públicas em campos onde a pluralidade de atores é muito mais alta e a legitimidade de regimes de exceção é mais contestada (como a economia), sugere que a estrutura do campo religioso operou, através de um conflito episódico, no sentido de condicionar o campo político. Ao sustentar e legitimar certos repertórios institucionais num contexto de excepionalidade que ganha uma força adicional pelo legado histórico da influência religiosa (como é o caso da saúde), a aprovação do Decreto-Lei 253/2009 mostra como o caráter centrípeto do campo religioso, apesar da transformação de 2001, se manteve razoavelmente intacto.

No seguimento da aprovação do Decreto-Lei 253/2009, o Grupo de Trabalho Inter- Religioso Religiões/Saúde (GTRS) ilustrava a continuidade aparente do acordo dominante no campo religioso. Se esse acordo persistiu em 2009, esse acordo passou a operar no campo da saúde e no campo organizacional hospitalar. Liderado pela Igreja Católica, o GTRS tem uma origem institucional relacionada com a CLR. O objetivo declarado, aquando da sua criação, era o de formar assistentes espirituais e religiosos em cooperação com unidades de formação médica, além de procurar estabilizar canais de comunicação que facilitassem o acesso dos serviços de assistência espiritual e religiosa a pacientes internados através de formulários de consentimento informado, contornando as limitações constitucionais ao acesso direto a pacientes e à sua informação clínica. Configurado como fórum da sociedade civil, foi formado por um capelão católico e a centralidade da Igreja Católica na sua promoção é inegável. O GTRS configurou-se como promotor de uma visão integrativa e holística do cuidado hospitalar, com destaque para a humanização: enquadrando o paciente como ser multidimensional, questionava a biomedicina sem confrontá-la (Cadge, 2013). Esta configuração foi apoiada pela participação exclusiva de representantes de tradições vistas como legítimas no campo religioso. As tradições vistas como prosélitas em contexto hospitalar (Bernardo, 2016) foram tacitamente excluídas, uma vez que, de acordo com mecanismos de partilha informal, não respeitavam o princípio do consentimento informado e violavam o consenso construído em torno da estrutura do campo religioso. Deste ponto de vista, a pertença ao GTRS é um reflexo paradoxal da orientação estratégica para a estabilidade do campo: sob a ameaça percebida do avanço secularista, aparentemente confirmado pelo processo turbulento do Decreto-Lei 253/2009, as tradições orientadas para a afirmação do acordo dominante reforçaram a sua unidade enquanto coligação. A assistência espiritual e religiosa, a partir de 2009, passou a ser promovida como componente legítima do discurso médico e, por extensão, do espaço hospitalar humanizado. Deste ponto de vista, a emergência da categoria “assistência espiritual e religiosa” assume um interesse adicional, já que assenta num paradoxo fértil: por um lado, a LLR não contém qualquer menção a assistência espiritual, isto é, a modos e funções de suporte dedicados a uma dimensão não-material e existencial relevante da vida social; por outro, o Decreto-Lei 253/2009 acopla o espiritual ao religioso, conferindo essas funções aos atores que, em contexto hospitalar, já aprovisionavam assistência religiosa. A emergência de Serviços de Assistência Espiritual e Religiosa como capelanias reconfiguradas sugere esta ligação. Contudo, esta categoria tem um interesse adicional: a emergência da humanização do espaço hospitalar como discurso e prática interage com o reconhecimento de que a função-cura não substitui ou elimina a função-cuidado nos hospitais; os atores e coletivos concentrados na função-cuidado, como assistentes religiosos, enfermeiros e médicos com especializações não estritamente biomédicas/focadas na função-cura (i.e. internistas ou psiquiatras) tendem a reconhecer uma sinergia entre ambas as funções. A assistência espiritual não colide, portanto, com a assistência religiosa; tal como mostrado pelas operações do GTRS, os dois modos assistenciais tendem a conviver e reforçar o potencial de coligações intra-hospitalares que consolidam o espaço da assistência espiritual e religiosa. No entanto, trata-se de um problema de investigação que extravasa amplamente este trabalho.

Os membros do GTRS procuraram contornar os constrangimentos da secularidade organizacional dos hospitais públicos; para isso, a exclusão de um contingente relevante de tradições religiosas foi um mecanismo de seleção eficaz. Uma análise breve das tradições religiosas participantes revela que esse mecanismo de seleção replica a distribuição de legitimidade no campo religioso: as tradições selecionadas enquadram-se no legado histórico conferente da etiqueta “religião do mundo”, como a comunidade Baha’i ou a comunidade hindu, ou numa legitimidade híbrida, assente em legados histórico-políticos e relevância social (como a CIL e a Comunidade Israelita). A influência da LLR era transparente: ao impor condições restritivas de reconhecimento, a LLR tem uma forte influência no GTRS pela constatação de que não existiam, nas suas fileiras, novos movimentos religiosos tal como inicialmente concetualizados, por exemplo, por Beckford (1985). Apesar da existência aparente de um mecanismo de exclusão operado pelos seus membros, torna-se evidente que a agência das tradições religiosas excluídas não deve ser relativizada. Em geral, o interesse dessas tradições no diálogo inter-religioso é percebido como baixo e, além disso, a sua orientação para o proselitismo, embora possa ser exagerada para reforçar a legitimidade da sua exclusão, tem alguma tração empírica. Os membros do GTRS mantiveram, no período considerado neste trabalho, que a adesão e pertença ao Grupo era inteiramente voluntária e aberta, com a exceção de novos movimentos religiosos. Contudo, esta versão é interrogada pela liderança visível da Igreja Católica, que conferiu uma saliência razoável ao GTRS em termos de acesso institucional e apoiou, em particular, a tradução de uma brochura dos Hospitais Universitários de Genebra centrada na promoção da sensibilidade religiosa no cuidado médico em contexto hospitalar.

Regimes de secularidade organizacional: o público-biomédico

Como podemos enquadrar as secularidades organizacionais num contexto altamente dinâmico como aquele que o campo religioso português observou entre 2001 e, sensivelmente, 2012? O caso da saúde e, em particular, dos hospitais públicos, é útil. O meu argumento incide no facto de podermos identificar um regime específico de secularidade hospitalar, com destaque para duas dimensões: a pública e a biomédica. A secularidade hospitalar pública é reforçada pelo discurso biomédico assente numa compreensão exclusivamente materialista e positiva do corpo, da saúde e da doença. Por esta razão, a assistência religiosa ou espiritual, apoiada em categorias muito diferentes para compreender os mesmos fenómenos e questões, tende a perder espaço no contexto hospitalar: o hospital não é um lugar de cura integral, mas uma organização produtora de saúde e concentrada na sua função de cura. Esta é a perspetiva dicotómica do binómio religioso-secular: a competição por supremacia epistémica é irredutível. Mas a religião vivida não é redutível a uma dicotomia simplista. A experiência dos capelães hospitalares e as suas atitudes, representações e comportamentos em torno do dever de salvaguarda (Bernardo, 2016, 2017) ilustra esta questão no caso do mundo hospitalar. Tal como mencionado por Ammerman, “interessa-nos, então, descrever os mundos sociais em que as ideias, práticas, grupos e experiências religiosas surgem” (2007: 6), desde que a investigação seja sensível à noção de que “as pessoas religiosas levam a vida religiosa consigo para os mais variados lugares “seculares”” (Bender et al., 2013: 9). Recentemente, a perspectiva do catolicismo banal trouxe uma nova perspetiva a esta questão: a ambivalência das formas católicas nos seus contextos concretos reivindica uma perspetiva sensível ao que é específico na mobilização das categorias religiosas e seculares em campos concretos (Griera et al., 2021). A abordagem da religião vivida questiona a relação mecânica entre instituições, textos e agência, ao mesmo tempo que força uma perspectiva contingente do impacto das relações Estado-religião na vida organizacional (Ammerman, 2007, 2013, 2020; Knibbe e Kupari, 2020). Isto é, os repertórios simbólicos, institucionais e políticos constroem as secularidades organizacionais e condicionam, embora não determinem, a agência dentro, por exemplo, do mundo hospitalar. Apesar disso, a religião vivida e o catolicismo banal, enquanto correções de trajetória a uma visão mecânica da secularidade e da secularização não resolvem a necessidade de prestar atenção aos processos políticos que determinam o contexto regulatório onde o secular e o religioso interagem e constrangem os processos cognitivos que surgem, por exemplo, nos hospitais.

Deste ponto de vista, o Decreto-Lei 253/2009 afetou particularmente os hospitais públicos pelo facto de serem formas organizacionais públicas mais que hospitalares. Isto é, se a secularidade organizacional hospitalar tem um impacto específico na religião vivida em hospitais, particularmente porque, como veremos, as categorias biomédicas mantêm uma supremacia epistémica inquestionável, a dimensão pública dessa secularidade justifica uma concentração específica nos contextos regulatórios. Isto é, os hospitais públicos têm a sua actividade mais condicionada e constrangida pelo contexto regulatório que os hospitais privados, pelo menos no que concerne à regulação da religião. Este argumento parte de uma abordagem integrativa à dimensão pública, a qual integra o conteúdo empírico e a expressão normativa dessa dimensão na análise organizacional (Bozeman, 1987; Moulton, 2009; Moulton e Bozeman, 2011). Anderson, por exemplo, descreve três componentes da dimensão pública das organizações: a propriedade e estatuto legal; a sujeição à autoridade política ou económica; e o regime normativo (2012). No caso da saúde, as garantias legais do acesso à vida religiosa, paradoxalmente, parecem garantir a persistência do religioso em contextos hospitalares visivelmente suportados pelas categorias biomédicas. Como argumentado pelo institucionalismo organizacional, “os quadros institucionais definem os fins e modulam os meios através dos quais os interesses são determinados e prossecutados” (Scott, 2007), sendo que esses quadros são constituídos por “influências ou pilares regulativos, normativos e culturais-cognitivos” (Scott, 2014). Deste ponto de vista, o exercício da e acesso à assistência espiritual e religiosa em contexto hospitalar difere entre organizações públicas e privadas, uma vez que os agentes e beneficiários dessa assistência, num hospital público, negoceiam a secularidade dentro dos constrangimentos inerentes à dimensão pública dessa secularidade. A LLR e o Decreto-Lei 253/2009, embora tenham afectado a organização hospitalar privada, tiveram um impacto destacado em hospitais públicos; a emergência de um consenso laicista pode ser percebido, por um capelão ou uma assistente espiritual, como uma ameaça imediata. Contudo, a saliência e intensidade dessa percepção depende do contexto organizacional mais vasto: é plausível afirmar que a necessidade de negociar a posição relativa do religioso e do secular é mais frequente e agressiva onde a secularidade organizacional é especificamente pública. No contexto português, isto ocorreu porque a percepção colectiva do Serviço Nacional de Saúde assenta na sua promessa de acesso e fruição universal/igualitária. O impacto do Decreto-Lei 253/2009 também decorreu da percepção, no campo religioso, de que concretizar a LLR por meio da retirada do regime de excepcionalidade à Igreja Católica, em hospitais públicos, poderia constituir uma janela de oportunidade para o avanço determinante da laicização total dos hospitais. Esta perceção é complicada pelo caráter público da produção e provisão de cuidados de saúde em Portugal: tal como noutros contextos europeus, a exclusão do acesso a cuidados de saúde com base na pertença religiosa é inconstitucional. Neste sentido, a dimensão pública da secularidade organizacional hospitalar cria uma tensão concreta: embora os hospitais públicos criem ou sustentem limites concretos à fruição da vida religiosa no seu perímetro, têm pouco interesse em evacuar a vida religiosa do seu funcionamento.

No entanto, a secularidade organizacional, nos hospitais portugueses, não opera exclusivamente nos termos da sua dimensão pública. A normatividade biomédica, a respeito da qual a LLR, a Concordata de 2004 e o Decreto-Lei 253/2009 não se pronunciam, impõe constrangimentos informais uma expressão completa do religioso. Procurei abordar esta questão em detalhe noutros trabalhos (Bernardo, 2016, 2018); a premissa básica é a de que a biomedicina (e a medicalização da saúde, do corpo, da doença e da cura) rejeita os postulados básicos que legitimam a presença e ação de categorias e agentes centrados na religião ou espiritualidade. O saber biomédico é, além de um corpo de conhecimento, uma reivindicação de verdade centrada, por um lado, na materialidade do corpo e da doença, e, por outro, na função-cura do exercício médico em contexto hospitalar (excluíndo a função-cuidado) (Good, 1994, 2010; Barker, 2010). O conhecimento (bio)médico, predominante em contexto hospitalar, é positivo e define a doença como efeito da presença de uma ou mais entidades biologicamente identificáveis no corpo. A religião e as categorias religiosas têm um estatuto secundário ou negativo em mundos organizacionais dominados pelo saber biomédico. Talvez mais relevante, do ponto de vista sociológico, é o caráter tido por certo das categorias biomédicas para a estabilização e hierarquização da cultura organizacional dos hospitais. Deste ponto de vista, a biomedicina não só define parâmetros de legitimidade, que importam para a análise da secularidade, mas também parâmetros de autoridade. Quanto mais especializada uma profissão médica, mais centrada nas categorias biomédicas se torna; uma neurocirurgiã ou uma cardiologista tendem a beneficiar de maior estatuto e reputação que uma especialista em medicina interna ou uma pediatra. Assim, estes profissionais tendem a dominar o núcleo operacional da burocracia profissional que controla o hospital, determinando a inscrição da biomedicina na estrutura funcional da organização e na sua cultura. Neste sentido, a ambivalência das capelanias hospitalares face à cultura hospitalar, tal como descrita, por exemplo, por Norwood (2006) ou Cadge e Sigalow (2013) adquire uma relevância adicional. A biomedicina é uma componente fundamental do acordo dominante no campo profissional da medicina e no campo organizacional do hospital. A posição da religião, com destaque para os serviços de assistência espiritual e/ou religosa, torna-se tanto mais precária e ambivalente quanto maior a prevalência dos valores biomédicos. Nos hospitais públicos portugueses, a biomedicina é uma descrição totalizante do comportamento humano e não concede espaço a explicações não-racionalistas ou não-materialistas.

Portanto, a secularidade organizacional nos hospitais públicos opera, entre outras relações, através do reforço mútuo da dimensão pública e da dimensão biomédica. A negociação quotidiana do religioso nos hospitais não é um compromisso ou uma cedência a agendas secularistas; é, pelo contrário, uma construção emergente, muitas vezes complicada, da pertença religiosa, da religiosidade e do ritual. Por outras palavras, o “ministério da presença”, tal como conceptualizado por Winnifred Sullivan (2014), é uma função desta construção: sem as exigências de conformidade e as estratégias de resistência que emergem no contexto hospitalar, a assistência espiritual hospitalar teria, provavelmente, uma forma mais aproximada a ortodoxias desadaptadas da realidade organizacional concreta. Tal como referido pela mesma autora, a capelania torna-se especialmente interessante porque “funciona na intersecção entre o sagrado e o secular, uma intermediária responsável pelo ministério às almas errantes numa economia globalizada e um público angustiado por uma política do medo - ao mesmo tempo que sacraliza as instituições do mundo contemporâneo” (Sullivan, 2014: 65-66).

Conclusão

Neste artigo, procurei explorar o impacto da Lei da Liberdade Religiosa de 2001 no campo religioso. Através de um estudo de caso sobre o processo de redação do Decreto-Lei 253/2009, que reconfigurou as capelanias hospitalares em serviços de assistência espiritual e religiosa, expus as vantagens de uma abordagem centrada no campo religioso enquanto campo de ação estratégica, uma inovação conceptual que oferece uma ferramenta particular para identificar unidades de governo interno do campo. A Comissão da Liberdade Religiosa é uma forma institucional deste tipo. Os regimes organizacionais de secularidade são parcialmente influenciados por arranjos regulatórios como o Decreto-Lei 253/2009. Mas, como procurei sugerir, a abordagem da religião vivida oferece uma alternativa à sobredeterminação da vida religiosa pela dimensão secular. Nos hospitais públicos, o binómio público-biomédico interage no sentido de constranger as opções dos agentes religiosos e o espaço do religioso. Essas opções e espaço são um efeito do campo religioso e das suas relações.

Que caminhos de investigação podem suplementar esta abordagem e enriquecer a compreensão de que dispomos acerca da complexa relação entre o secular e o religioso em organizações? Por um lado, no caso português, importa aferir o impacto concreto das relações Estado-religião em múltiplas organizações. Os três decretos-lei de 2009 são pontos de partida: uma análise histórico-comparativa do estatuto da religião e da secularidade organizacional nas prisões, nas instituições militares e nos hospitais interrogará as conclusões deste artigo e sugerirá novas interpretações acerca do impacto da estrutura organizacional na religião vivida. Esta comparação entre organizações pode ser frutífera se alargada a casos organizacionais noutros contextos regulatórios, tipicamente nacionais mas eventualmente locais ou regionais. Neste sentido, o caso português, pouco explorado na literatura comparativa sobre religião e organizações, é muito interessante. Além disto, um ângulo analítico centrado na comparação entre formas organizacionais públicas e privadas oferece possibilidades relevantes do ponto de vista sociológico. Como sugeri acima, os regimes de secularidade organizacional dos hospitais públicos portugueses têm uma componente relacionada com a dimensão do público. No entanto, se contrastados com casos de hospitais privados, será possível confirmar ou infirmar as conclusões apresentadas

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Recebido: 15 de Junho de 2021; Aceito: 11 de Outubro de 2021

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