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Sociologia

versión impresa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.43  Porto jun. 2022  Epub 31-Jul-2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soc43a4 

Artigos originais

Por uma nova textualidade performativa: voguing como lugar de memória

For a new performative textuality:voguing as a place of memory

Pour une nouvelle textualité performative:voguing comme lieu de mémoire

Por una nueva textualidad performativa:voguing como lugar de memoria

Roney Gusmão1 

1Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas Universidade Federal do Recôncavo da Bahia


RESUMO

Desde o início dos anos 1990 que temos observado uma ampla midiatização do voguing como expressão cultural underground da comunidade LGBT estadunidense. Ao transbordar fronteiras do Harlem, vogar se tornou um ato de resistência que imprime no corpo subjetividades represadas pelo racionalismo moderno. Hoje, ocupando diferentes espaços, voguers nos ensinam que novas textualidades performativas podem ser reconfiguradas na memória gestual, oportunizando a desconstrução de essencialismos de gênero.

Palavras-chave: Voguing; memória; espaço urbano

ABSTRACT

Since the early 1990s we have observed a wide media coverage of voguing as an underground cultural expression of the American LGBT community. When overflowing Hallem’s borders, voguing became an act of resistance that impresses on the body subjectivities held back by modern rationalism. Today, occupying different spaces, voguers teach us that new performative textualities can be reconfigured in the gestural memory, allowing the deconstruction of gender essentialisms.

Keywords: Voguing; memory; urban space

RÉSUMÉ

Depuis le début des années 1990, nous avons observé une large couverture médiatique du voguing en tant qu'expression culturelle clandestine de la communauté LGBT américaine. En traversant les frontières de Harlem, le voguing est devenu un acte de résistance qui imprime sur le corps des subjectivités endiguées par le rationalisme moderne. Aujourd'hui, occupant des espaces différents, les voguers nous apprennent que de nouvelles textualités performatives peuvent être reconfigurées dans la mémoire gestuelle, déconstruisant les essentialismes de genre.

Mots-clés: Voguing; mémoire; espace urbain

RESUMEN

Desde principios de la década de 1990, hemos observado una amplia mediatización del voguing como expresión cultural underground de la comunidad LGBT estadounidense. Al desbordar las fronteras del Harlem, vogar se convierte en un acto de resistencia que imprime en el cuerpo subjetividades frenadas por el racionalismo moderno. Hoy, ocupando diferentes espacios públicos y virtuales, los voguers nos enseñan que las nuevas textualidades performativas pueden reconfigurarse en la memoria gestual, permitiendo la deconstrucción de los esencialismos de género.

Palabras clave: Voguing; memoria; espacio urbano

1. Introdução

Foi no ball scene do Harlem na Nova York pós-Segunda Guerra que nasceu o estilo de dança denominado voguing1, com forte influência da House Music e da estética superlativa do Camp. Foi folheando a Revista Vogue, que frequentadores da cena underground nova iorquina encontraram inspiração para sobrepor poses em referência à imagem das divas impressa na revista. Originalmente, os voguers2 não se pretendiam sósias, nem covers das divas retratadas, mas era suficiente utilizá-las como um referencial simbólico para a expressão performativa de gênero, tendo em vista confrontar demarcações binárias e escrever novas textualidades gestuais. Movimentos como cat walk, dig ou floor performance representam formas superlativas de performar o gênero feminino, fato que permite ao performer gravar no seu corpo uma versão própria da feminilidade que o inspira. Assim sendo, pelos movimentos sinuosos e angulares, voguers desessencializam e revisitam a feminilidade por intermédio de sua memória corporal, revelando a reiteração discursiva de gênero como um produto transitivo do jogo de forças sociais.

Desse modo, a potência política do voguing está no fato de que a linguagem corporal, que lhe é própria, se inspira na memória para manejar o corpo nas fronteiras das dicotomias (de gênero, de classe e de etnia), servindo como anúncio da alteridade de minorias. A memória, portanto, é corporizada em voguers porque oferta ao corpo um léxico comum e inteligível, mas ao mesmo tempo, esta mesma memória funciona como vetor de reinvenção dos mesmos padrões gestuais que serviram de inspiração.

Assim, semelhante ao conceito de performance em Cohen (2002), o voguing ocorre na confluência ato-espaço-tempo, isto é, opera pela visibilização do corpo em espaços (físicos ou virtuais), pondo em questão os critérios de legibilidade fabricados em esquemas de poder e conduzidos no tempo pela memória. Além disso, é pertinente o acréscimo de que o voguing nos ajuda a observar o corpo como território que resiste aos sistemas reguladores historicamente engendrados nas civilizações ocidentalizadas. Haesbaert (2021) já havia destacado que grupos de resistência precisam ter o corpo como premissa das mobilizações, até mesmo porque esta materialidade corpórea é território que, atravessado por relações de poder, se abre a novas formas de identidade. Assim, os corpos dançantes de voguers congregados no ball culture se apresentam como uma fração de movimentos de resistências contemporâneos, que persistem em ter o corpo como marcador discursivo de alteridade.

Diante do exposto, salientamos que o voguing foi a motivação para a construção deste texto, permitindo inserir variáveis teóricas, como memória, pós-modernidade e espaço urbano. Para estruturar esta reflexão, inicialmente contextualizamos o voguing ao tempo histórico que, por hora, chamamos de pós-moderno; em seguida, tratamos do conceito de memória corporal para entendê-la como reiteração e reconstrução de linguagens corporais de gênero; por fim, posicionamos o voguing como uma expressão cultural articulada à territorialidade urbana. Neste texto interessa-nos consolidar um conjunto de perspectivas histórias, sociais e mnemônicas sobre o voguing que, pelo atravessamento de outras variáveis teóricas, nos permite ancorá-lo ao movimento dialético de um tempo recente.

2. O contexto temporal e espacial

Como mencionado no início deste texto, entendemos ser importante mencionar que o voguing nasceu na segunda metade do século XX no bairro do Harlem em Nova York. Esta informação se faz fundamental para entender como especificidades temporais e espaciais atravessam experiências estéticas, dando sentido coletivo a movimentos culturais. Assim sendo, acreditamos não ser necessário buscar datações ou creditações tão rigorosas sobre o nascimento do voguing e, por esta razão, optamos trata-lo como parte de um movimento cultural da cena gay underground com forte influência do contexto histórico que envolve a Nova York no capitalismo pós-industrial.

Insistimos neste contexto novaiorquino posterior à Segunda Guerra devido à geopolítica bipolar da Guerra Fria, quando a ostensiva política estadunidense recorreu a dispositivos ideológicos para propagação do capitalismo no rótulo do “American way of life”. Também neste cenário, é possível notar o incremento das tecnologias informacionais que integraram a veiculação de modos de vida alinhados à lógica do capital. Assim, consumir foi deixando de ser uma mera aquisição de mercadorias estandardizadas para se tornar uma experiência estética progressivamente singularizada.

Essa ação expansionista do capital não mais se restringia à mera docilização do corpo, como outrora nítido na fábrica fordista do início do século XX. Agora a disciplinarização capitalista se voltava mais claramente ao campo da subjetividade, do afeto, do desejo, da experiência sensória. Obviamente, não defendemos aqui a morte da resistência, mas apenas destacamos o fato de que essa força de captura exercida pela “axiomática do capital”, segundo os termos de Deleuze e Guattari (2011), nos exige considerar os processos de subjetivação como parte dos próprios discursos de poder que movimentos de resistência pretendem se opor. Portanto, no contexto pós-moderno, pensar em mobilizações contra-hegemônicas requer levar em conta especificidades fora dos velhos critérios revolucionários do século XIX, época em que se creditava às metanarrativas um poder redentor universalizante. Lazzarato (2006) nos lembra que depois de 1968, os movimentos políticos romperam radicalmente com a visão unificadora de política ocidental. Segundo o autor, é por isso que mobilizações são incompreensíveis para politicólogos, partidos políticos ou sindicatos, cujas acusações de desmobilização ou individualismo são frequentemente desmentidas pela emergência de formas múltiplas de resistência.

Ao se infiltrar na subjetividade, o capitalismo pós-industrial estimulou um fracionamento tão grande de possibilidades de composição do “eu-social”, que hoje é improvável pensar num movimento onde caibam tantas minorias sob o teto de uma metanarrativa universal fora do capitalismo. Por isso, entendemos não ser contraditório falar de resistência no capitalismo e contra o capitalismo, considerando que o sistema produz decodificações generalizadas dos fluxos, ao ponto de o aparelho anti-produção não mais se opor à produção (Deleuze e Guattari, 2011).

A contextualização e o debate teórico que tratamos até esta etapa do texto são importantes para entendermos que o voguing se constituiu como parte de um movimento contra-hegemônico e, também, como parte do capitalismo pós-moderno. Tal condição não é contraditória, mas apenas sintomática dessa força axiomatizante de que tratamos acima. Para persistir neste argumento, basta lembrar que o voguing reside nas zonas fronteiriças de classe, de gênero e de etnia e, por esta razão, não se amolda nem ao sistema hegemônico e nem aos movimentos contestatórios autenticados por metanarrativas. Isso faz do voguing um movimento dissidente, isto é, parte de um coletivo destituído de um padrão de pureza, desprovido de filiações identitária fixas e, ainda, desenraizado de metanarrativas que o legitime como movimento social. A história do voguing nos mostra que sua estética foi nutrida pelo incremento das tecnologias na segunda metade do século XX, quando ocorreu um excepcional adensamento de imagens, retratando a associação do corpo de homens e mulheres a mercadorias e comportamentos equalizados ao perfil hedônico e narcísico pós-moderno. Foi no desenrolar deste contexto que, no cinema, nasceram as celebridades3 e o star system (Morin, 1989), integrando um complexo jogo imagético imbuído da função de atrair pessoas comuns para um “modelo de vida” mítico carregado de afeto.

Paulatinamente, essas celebridades foram sendo mergulhadas numa ampla rede do mercado, dispondo seus corpos para um circuito complexo de consumo, o que envolvia desde a alta costura4, maquiagem e assessórios; até comportamentos que ligavam o corpo célebre a perfis específicos de sociabilidade, como shopping-centers, restaurantes, esportes, viagens... Neste contexto de tamanha significação política da indústria do entretenimento, celebridades, que vão de Monroe a Madonna, de Brando a Jackson, corporificavam, não somente o fruto de sua arte, mas “perspectivas de vida”.

Uma das marcas do tempo pós-moderno, segundo Featherstone (1995), é a dificuldade de discernir ficção e realidade, uma vez que o complexo sistema de difusão de imagem embaralha estes limites e aproxima as formas míticas da realidade de pessoas comuns. Este processo ocorre em direção dupla: tanto porque a vida ordinária se torna saturada de apelos sensórios e imagens fictícias, como também porque a própria vida banal das celebridades (seus trejeitos, hábitos, estilos...) se torna objeto de admiração e desejo. Esta situação é o resultado da própria profusão de imagens no capitalismo pós- industrial, fato este que replicou na vida comum das pessoas um volume tão extraordinário de fotografias, corpos e logomarcas, que dificilmente um sujeito consegue elaborar suas representações e memórias pessoais fora deste panteão de imagens.

Num olhar marxista tradicional, esses simulacros inventados pelo mercado são puramente fetichizados e, portanto, alienam os sujeitos de tal modo que liquidariam a pretendida revolução. Aqui optamos por afastar de radicalismos semelhantes, pois entendemos que os processos de subjetivação articulados pelo mercado possuem porosidades que podem contribuir para a composição de singularidades rebeldes. A própria multiplicação de artigos de moda no pós-guerra contribuiu para a composição visual de alteridades pelo corpo, servindo para anunciar posturas subversivas, mas, também, servindo para movimentar nichos específicos do mercado. Também é útil lembrar que os sujeitos contemporâneos articulam táticas de resistência no interior deste mundo adensado de imagens, logo, não se deixa de existir socialmente, para depois acionar a consciência crítica. Butler (2019b) já nos alertava sobre o fato de que o sujeito não escolhe as identificações que usa, ao contrário, segundo ela, o sujeito está inscrito incoerentemente nestas referências e, por efeito, elas podem ser agenciadas como ato político. Ao mesmo tempo que os sujeitos estão imbricados nesse trânsito de significados, eles também atualizam seus usos na medida que aderem novas representações e desestabilizam seus padrões. Certeau (1998) também compartilha ideia semelhante, ao entender que a circulação de uma representação pelos veículos de mídia não basta para compreender os significados que ela pode ganhar para os usuários. Segundo o autor, é fundamental esquadrinhar a manipulação pelos praticantes que não fabricam as representações “originais”, pois, segundo Certeau, é neste exercício analítico que o pesquisador pode vislumbrar diferenças e semelhanças entre a produção da imagem “original” e a produção da imagem secundária, camuflada nos processos de sua utilização.

É precisamente isso que ocorre no voguing. Quando, motivados pelas divas fotografadas pela revista, performers utilizaram poses como marcadores pessoais de identidade, anunciando a emancipação de subjetividades pela linguagem corpórea. A performance não replica Greta Garbo ou Darlene Dietrich, mas, sim, hiperboliza caricaturas de uma feminilidade desessencializada, tornando-a performável em qualquer corpo. Com isso, voguers realizam uma dupla subversão: primeiro, satirizam a estética aristocrática que lhe foi negada, principalmente quando impõe a sua própria versão de glamour; segundo, denunciam a inexistência de um ideal regulador de gênero, ou seja, apresentam uma imitação de gênero transponível em qualquer corpo que assim queira. Ao vogar, performers resgatam poses das divas, invocam a estética hegemônica sugerida pela Revista Vogue, mas, antes de tudo, apresentam a sua individualidade corpórea, como ocasião para visibilizar subjetividades.

A moda, para voguers, consiste na oportunidade de fazer uso da mimese como tática pessoal de diferenciação; isto é, vogar permite reiterar uma cadeia preexistente de códigos estéticos, sem perder de vista os modos individuais de transmut ação. Desse modo, os artefatos e os discursos aderidos aos corpos das celebridades para veicular representações alinhadas ao capitalismo pós-moderno, como tratamos anteriormente, pareceriam se impor como força uniformizadora. Contudo, voguers se apropriam destas imagens como propulsão da representatividade, já que a estética que lhes foi negada é aqui politicamente reapropriada como signo de rebeldia.

Acerca do contexto espacial, o voguing se traduziu como resposta a um processo politicamente induzido de exclusão social, racial e de gênero, na égide do conservadorismo higienista. O pensamento eugenista legado pelo racionalismo positivista adentrou o século XX, inspirando intervenções urbanas que recrudesceram a segregação espacial dos grupos marginalizados. Em Nova York, enquanto a classe média conseguia crédito imobiliário para migrar para os suburbs, a população negra e pobre se aglomerava nos guetos de Manhattan, fato que intensificou a marginalidade, a violência urbana e o tráfico (Harvey, 2012).

Neste contexto de exclusão, foram insurgindo cenas culturais alternativas nas periferias, inspiradas numa revolta contra o regime político excludente e contra os efeitos cruéis do capital especulativo. Bairros como Harlem, Bronx e Brooklyn eram majoritariamente compostos por negros e latinos excluídos do sistema e, por convierem com dilemas comuns, tinham expressões como o rap ou o hip-hop como formas de representatividade da causa social. Entretanto, embora cenas underground nestes espaços de exclusão tivessem causas raciais e étnicas como intersecção, elas não tinham como questão as identidades de gênero e, muito menos, dilemas associados à orientação sexual. A partir disso, torna-se possível observar por que gays hispano-afrodescendentes residentes nas periferias de Nova York daquele contexto eram excluídos em três marcadores sociais: classe, etnia e gênero (Gusmão, 2021).

Como agravante é também preciso lembrar que muitos dos espaços gays de Manhattan demonstravam hostis para a condição negra, afeminada e de subúrbio. Portanto, sem espaços de sociabilidade fora dos ciclos underground, a comunidade gay periférica começou a organizar as houses. As houses funcionavam como families, isto é, serviam de amparo para membros da comunidade gay expulsos do convívio com a família biológica, destacando-se como importantes espaços de sociabilidade e expressão artística. Nesta ocasião surgem os balls, quando houses se encontram para rivalizar entre si, tendo o voguing como uma das categorias de competição (Lawrence, 2011).

Ora, como já mencionamos, expressões culturais contra-hegemônicas, como o voguing, são permeáveis aos códigos estéticos que circulam na sociedade, até mesmo porque lidam com os signos de poder que lhe atravessam. Isso ajuda a compreender como os padrões de feminilidade hiperbolicamente performatizados no voguing carregam o sistema de valores massificados pelos veículos de mídia da época. Não é qualquer feminilidade, é a feminilidade hipertrófica e caricatural de um status desejado, mas também transmutado. A Revista Vogue, então, aparece como inspiração para caricaturar a notoriedade que foi removida do horizonte de possibilidades de gays hispano- afrodescendentes da periferia novaiorquina. Como resposta, o voguing insurge para preencher as lacunas deixadas pelas poses estáticas que a revista publicou, dotando-lhe de movimento. De igual modo, este preenchimento de arestas também serve como ocasião para performar uma feminilidade aberta à recriação.

Voguers acentuam a afeminação que serviram para aviltamento do corpo gay periférico e, por operar na zona de fronteiras (de gênero, de classe e de etnia), performers arrebentam as amarras do comedimento e amplificam o poder de afecção do corpo performático sobre outros corpos numa ação coletiva de empoderamento. Entendemos que o fato de o voguing existir como performance dissidente abre possibilidades para que o exagero se torne favorável ao empoderamento de minorias sexuais. Por isso, chamamos atenção para as proximidades do voguing com a estética camp, sobretudo porque ambos demonstram predileção pelo extravagante e pelo pastiche, que produzem duplos sentidos. Segundo Sontag (2020) o camp põe tudo entre aspas e, por efeito, transtorna dicotomias como homem/mulher, elegante/vulgar, bonito/feio, eles/nós... É somente o comedimento que respeita os binários, o exagero, por outro lado, os extrapola e se abre como novas possibilidades discursivas. Ao também recorrerem às aspas, voguers reativam ludicamente a dimensão política do seu corpo, porque coletivamente performam na zona fronteiriça dessas dicotomias tratadas por Sontag.

3. O corpo, a memória e a performance

Como observado na seção anterior, a performance superlativa do voguing incorpora os padrões estéticos estabelecidos hegemonicamente, mas, simultaneamente, os subverte quando permite uma revisão satírica destes mesmos padrões. Toda esta dinâmica de incorporação/subversão ocorre pelo discurso sedimentado no corpo, até mesmo porque a linguagem nos ballrooms é, acima de tudo, corporal, e, como tal, depende de gestos, indumentárias e performances para anunciar subjetividades e potencializar sinergias.

O corpo, portanto, funciona como lugar privilegiado de discursos e memórias, possibilitando, por aderir novas textualidades aos significados atualizados na memória. Também interessado em compreender esta relação simbiótica entre corpo e memória, Connerton (1999) observa que as relações reiteradas do corpo com os objetos circundantes ocorrem graças à existência de uma memória corporal, fato este que nos permite entender gestos e movimentos como partes de um arcabouço mnemônicos reificado no ato. Assim sendo, os padrões gestuais funcionam como linguagem, devido ao fato de que a repetição e a regularidade produzem linguagens específicas que, por sua vez, comunicam. Ora, se a reiteração põe a linguagem corporal dentro de um padrão de normalidade comunicacional, logo, o rompimento deste padrão gera desconfortos por conta da ilegibilidade resultante da infração de normas reiteradas. De igual modo, a hipérbole caricatural destes padrões também assusta porque infringe as fronteiras do razoável, subvertendo, tanto pela saturação, como pela ridicularização do ideal. Como aponta Connerton (1999), a caricatura ridiculariza a autoridade corporizada, pois, tão logo a paródia revisita e agudiza os estereótipos, ela denuncia a artificialidade do ideal regulador, desnaturalizando-o.

Como já mencionamos, o voguing se apresenta como a performance satírica sobre uma feminilidade desessencializada, isto é, uma feminilidade inexistente como substância, mas performatizável em corpos que escapam padrões socialmente convencionados. É exatamente neste mecanismo que reside a reviravolta dos padrões: ao passo que a Revista Vogue oferece um cardápio de comportamentos e indumentárias inacessíveis para grupos marginalizados, estes sujeitos reapropriaram superlativamente destes mesmos padrões e, dele se munem, para expressar subjetividades represadas. A hiperfeminilidade imobilizada nas poses da Revista adquire movimento, adquire singularidade e, também, adquire sentido para os grupos banidos dos padrões hipernormativos que a mídia tradicional sugeriria.

É também útil lembrar que o corpo exibido na Revista Vogue é o corpo-produto que, segundo Ribeiro (2007), ofusca o sujeito histórico corporificado porque é meramente corpo-mercadoria inventado nos meandros da economia capitalista. Originalmente, o voguing lida com essas mesmas imagens do corpo-produto, tendo a Revista Vogue como matéria-prima para representar os corpos espetacularizados sob um novo discurso. Ao se apropriarem da superfície imagética do discurso aristocrático da revista, performers impõem um outro discurso, agora elegível em corpos banidos dos padrões originalmente dispostos na Revista Vogue. Não estamos sugerindo que, ao relerem os corpos das divas, os voguers sejam capazes de abstrair a sua materialidade sem a mediação discursiva; ao contrário, queremos aqui afirmar que voguers são capazes de sobrepor signos discursivos e borrar textualidades, fato que escancara o poder transitivo das representações de gênero, classe e cor.

A reviravolta discursiva do e sobre o corpo corre porque voguers emolduram seus corpos dentro de padrões gestuais roteirizados em seus arquivos mnemônicos, usando o pulso do “agora” como oportunidade para desenhar uma nova versão performativa. É pertinente acrescentar que, por meio de Halbwachs (2003), podemos tratar a memória como releitura do passado através de interesses do presente. Isto nos permite entender, então, que a memória edita representações pretéritas, a partir de desejos conscientes ou inconscientes que compõem o ser social no presente. Esta ideia sobre memória é útil para tratarmos o voguing dentro de duas perspetivas: Primeiramente, porque performers fazem uso da força performativa de gênero que as poses das divas contêm. Voguers resgatam as regularidades gestuais do sexo feminino e apresentam-nas pela mediação seletiva da memória, ou seja, performers retratam, não a Marilyn, mas, sim, a uma versão de feminilidade e a ela impõe uma assinatura própria, que singulariza a gestualidade. Portanto, vogar significa interpretar signos de feminilidade conforme os interesses do performer, que finca nos seus gestos uma versão peculiar da performatividade de gênero. Desta maneira, não é demasiado lembrar, que, assim como a reprodução do passado pela memória apresenta falhas porque está sujeita a inferências dos interesses presentes, a performance de gênero também contém estas mesmas instabilidades porque existe apenas na ação transitiva e não como substância. Nesta direção, Bergson (2010) nos lembra que o corpo orienta a memória para o presente e, portanto, ajuda a torna-la uma eterna recriação, um eterno devir situado entre reprodução e recriação.

Além disso, é válido acrescentar que tratamos o corpo como um “lugar de memória”, cuja gestualidade opera pela regularidade comunicativa e cuja materialidade apresenta referenciais estéticos reiterados no discurso. Ademais, como “lugar de memória”, o corpo até pode ser traduzido como referencial empírico do passado, mas isso ocorre pela sobreposição de camadas discursivas que, inscritas nas relações de poder, geram coerência na decodificação do corpo segundo experiências pessoais. Isso justifica o fato de entendermos o corpo de voguers como “lugar de memória” porque, na sua materialidade, são transcritas representações pretéritas de gênero, e, ao mesmo tempo, são feitas recodificações por modos pessoais de experienciar e performar identidades numa lógica ambígua de autenticidade e teatralidade.

Segundo motivo pelo qual aproximamos o voguing do campo da memória social, é porque sua arte permite sublimar dores inerentes à trajetória do ball culture num passado nebuloso. É válido lembrar que a cena voguing deve ser originalmente entendida como uma reação às forças regulatórias engendradas por classes hegemônicas. A estética excludente impressa na mídia do pós-guerra, a espetacularização do corpo-produto sob padrões raciais, sociais e de gênero e, não menos importante, a ação política segregadora encorajada pela tragédia da AIDS no final do século XX, são alguns dos motivos de dor que aqui elencamos. As mágoas às quais nos referimos são decorrentes de discursos sobre o corpo e sobre a subjetividade de minorias sexuais, que, tão incisivamente, foram estigmatizadas e repugnadas nos espaços urbanos. Como herança, o voguing resgata os mesmos gestos dos corpos execrados e os ressignifica na arte corporal coletiva, na catarse dos afetos potencializados no grupo, sublimando o passado, não para uma amnésia coletiva, mas para manter suas reminiscências sem o amargor residual que lhe é inerente.

Diante da necessidade de manter memórias sobre as identidades dos grupos minoritários, Assmann (2011: 26) lembra que a arte começa a ocupar mais fortemente a memória porque “a memória artística não funciona como armazenador, mas estimula os armazenadores, ao tematizar os processos de lembrar e esquecer”. Para ela, os artistas buscam um “glossário de sentimentos” como inspiração, que, ao nosso ver, precisamente no voguing, dão vida e paixão às poses. Fazer uma pose, para voguers, é mais que emoldurar uma imagem estática, é, sobretudo, performatizar subjetividades.

4. Lugares e corpos de resistência

Concebemos aqui as cidades como produtos da interação entre corpos e espacialidades, cujas simbioses também se encontram inseridas em complexas articulação de poder. A partir disso, compreendemos que estudos sobre o espaço jamais podem prescindir de análises sobre as temporalidades que nele interpõem camadas e, por efeito, participam das representações cotidianamente elaboradas pelos sujeitos. Para entender as relações sociais historicamente sobrepostas na cidade, bem como as relações de poder que as agencia, recorreremos a teóricos como Sennett (2003) e Foucault (1987; 1988) para perceber o modo como diversas cidades ocidentais espacializaram o ethos modernista.

Foi na transição do século XVIII para o XIX, que o rápido crescimento urbano europeu evidenciou novos desafios para o ordenamento político e econômico das cidades. A eclosão de epidemias, tais como a cólera e a sífilis também serviu de motivação para implementar uma política sanitária e higienista rigorosa nos grandes centros urbanos, tendo como foco principal as camadas sociais mais baixas. Por conseguinte, consolidaram-se discursos e práticas de assepsia espacial, que mesclavam saberes da engenharia, urbanismo e medicina, tendo por fim higienizar e moralizar os espaços e seus habitantes.

Conforme salienta Foucault (1995), a partir do século XVIII, o saber médico se aliou ao judiciário com intuito de aumentar a vigilância e controle dos sujeitos, fato este que ampliou a capacidade de penetração do poder. Este biopoder, como definiu Foucault, foi dotado de uma capacidade tentacular de adentrar a intimidade dos sujeitos, tanto pelo discurso, como por práticas médicas e judiciais, sob a retórica do higienismo. A ideologia sanitarista repercutiu na produção espacial e, também, na produção de corpos e suas subjetividades, convergindo saberes da medicina e do urbanismo na função de limpar o espaço urbano e readaptá-lo às prerrogativas moralizantes da burguesia.

Foi nesse cenário que as cidades foram reurbanizadas pela métrica racionalista, tendo como fim último o controle e a coerção de comportamentos que escapassem as fronteiras de “normalidade” estipuladas pela moral burguesa. Foram também estes mesmos pressupostos que orientaram o reordenamento de Paris no século XIX, quando os espaços labirínticos foram substituídos por bulevares retos e largos, que permitissem a eficiência da vigilância pela cavalaria policial (Sennett, 2003). De igual modo, a cidade modernista passou a ser mais iluminada e dotada com equipamentos para exercício de controle e coerção de comportamentos impróprios.

É também no século XIX que os europeus e os norte-americanos lidavam com os efeitos mais nefastos do rápido e desigual crescimento urbano. Cortiços e favelas eram habitados por indigentes e prostitutas, entendidos como preguiçosos e imorais (Taylor, 2018). Esta situação inspirou a suspeita da burguesia de uma degeneração da raça humana, produzindo um medo na classe média sobre o rápido crescimento da população marginalizada. Com efeito, inspirada no darwinismo social e no pensamento positivista, o século XX inicia com a fermentação de ideias eugenistas, que paulatinamente foram se transfigurando em regimes fascistas e na disseminação de intervenções urbanas de cunho higienista. Assim, no transcurso do século XX é possível observar a implementação de políticas urbanas voltadas à acentuação da segregação espacial dos sujeitos que seriam considerados uma ameaça ao núcleo familiar burguês tradicional.

Já na segunda metade do século XX, os impactos da Segunda Guerra estimularam os governos europeus e norte-americanos a regularem os papéis de gênero sob o prisma binário heterossexual com o objetivo de contribuir para o reordenamento econômico dos países atingidos (Preciado, 2020). Agora, o alvo do patrulhamento moralizante nas cidades passou a ser mais detidamente as sexualidades entendidas como desviantes. Sobre o caso específico dos Estados Unidos, Harvey (2012) lembra que entre os anos 1940 e 1950 houve uma forte suburbanização5 de cidades, como Nova York, criando bairros nobres destinados a famílias de classe média que desejassem residir em locais distantes dos centros. A Manhattan de Robert Moses, como lembra Sennett (2003), foi sendo reorganizada pelo nexo do urbanismo rodoviarista, que priorizava a circulação carros pela desobstrução e alargamento das vias e progressiva marginalização de grupos segregados.

Na égide do “American dream”, o tensionamento de forças era bastante presente no espaço urbano novaiorquino, uma vez que, no decorrer da segunda metade do século, projetos de intervenção foram implantados para favorecer o capital corporativo, aprofundando a desigualdade social e a marginalização espacial. Não obstante, foi nos anos 1960 que, descontentes com o modelo de vida entranhado na cidade capitalista, a comunidade negra e jovens estudantes de classe média saíram às ruas para protestar (Sennett, 2003). Logo em seguida outras vozes preencheram as ruas, exigindo o direito de participar na dinâmica social que se construía num cenário de mudanças. A segunda onda do feminismo e movimento LGBT (com destaque para a rebelião de Stonewall em 1969) tornaram-se fundamentais para denunciar a opressão decorrente do racionalismo moderno e o fracasso deste modelo de sociedade.

Além da relevância desses movimentos sociais é útil destacar as novas variáveis que a eles se articulam. Lazzarato (2006), por exemplo, entende que, desde 1968, os movimentos sociais têm mostrado que as velhas dicotomias (oprimido/opressor, explorado/explorador) se tornaram obsoletas para se entender a multiplicidade de relações que aportaram nos movimentos de resistência. Chama-nos atenção que, para o autor, 1968 é apontado “ponto de ruptura e a linha de fuga da lógica de classe e da norma heterossexual” (Lazzarato, 2006: 92). Não que tais lógicas tenham desaparecido, mas o que o autor nos sugere é entender os movimentos de resistência como parte integrante de modos de subjetivação múltiplos que escapam os velhos dualismos.

Como mencionado, as cidades são produtos do tensionamento de forças que disputam pelo direito de participar do jogo de significados que integram a textualidade urbana. Nova York, à medida que se tornou num vetor econômico e cultural dentro da lógica do capitalismo pós-moderno, passou a materializar claramente os efeitos paradoxais da especulação imobiliária e do capital financeiro. Ao mesmo tempo que estudantes, feministas, gays e ambientalistas aliançaram seus corpos nas ruas com o intuito de problematizar a sociedade que se tinha; paralelamente, o governo se empenhava em propagar o espaço urbano capitalista como o epicentro da liberdade de expressão e da diversidade, forjando o lado mais cruel do elitismo imobiliário.

Foi para propagação da ideologia hedônico-consumista, que a espacialidade urbana foi adquirindo relevo sob o jogo de seduções midiáticas que sustentou o discurso sectário da Nova York como terra da liberdade no ápice da Guerra Fria. Nos anos 1980, por exemplo, quando Reagan mobilizou o cinema como dispositivo midiático fundamental para disseminação ideológica, o espaço urbano ianque se tornou ambiência para um proselitismo neoliberal adocicado (Gusmão, 2019). Este fato se justificou porque a divulgação do espaço urbano de grandes cidades, a exemplo de Nova York, funcionava como sedução pela lógica da cidade-empresa, pois, neste discurso, os espaços e suas dinâmicas são plastificadas pelo enquadramento televisivo para atração de investimentos e turistas. É assim que muitas cidades foram intencionalmente capturadas por discursos que objetivam singularizá-las, como experiência sensória e mercadológica irrepetível. Nesse processo, à medida que o capital foi garimpando novos nichos, as cidades também foram sendo transpassadas por discursos para atração espetacularizada de múltiplos segmentos de consumo. Para tal, tornou-se necessário propagar a singularidade urbana como experiência estética atrativa para gradientes específicos do mercado turístico, fato este que impulsionaria uma apropriação de territórios da contracultura underground com o fim de pacificá-los e integrá-los à exploração turística.

Foi nesse clima de cenarização dos espaços urbanos, que alguns territórios já utilizados para sociabilidade gay foram agenciados para a cena capitalista. Lentamente, a comunidade LGBT foi sendo desenhada como um segmento do mercado à medida que despertou atenção de empreendedores. Com o intuito de maximizar o poder sedutor do selo “gay friendly”, o empreendedorismo do ramo LGBT valeu-se do processo em curso de divulgação da cidade-empresa, reendereçando o marketing a uma mídia especializada em lidar com o público gay. Para garantir a eficácia, o discurso do empreendedorismo direcionado ao “mercado arco-íris” foi se espacializando em zonas específicas do território urbano: hotéis, saunas, lojas e bares criaram uma ambientação fracionada do espaço urbano.

Quando definido como segmento pelas estratégias de publicidade, o mercado gay já se materializava em algumas territorialidades urbanas, criando uma ambiência ilusória de tolerância e aceitação. Se por um lado a homossexualidade se tornava admitida como prática nestes espaços, por outro, os territórios gays também estavam imbricados em diversos marcadores sociais que reataram formas de exclusão. Ao reproduzir as mesmas regras do jogo excludente e seletivo do mercado, os espaços “gay friendly” criaram novas trincheiras, na medida que admitiram um tipo específico de homossexualidade, do qual gays afeminados, negros, pobres ou pessoas transgêneras não puderam participar. Esta departamentalização do mercado LGBT integra a força da axiomática do capital, ou seja, trata-se da produção de subjetividades pelo sistema capitalista, que confere naturalidade, legitimidade e inteligibilidade aos processos de individualização por intermédio da lógica do capital.

Assim, é útil lembrar que, se um determinado território gay admite apenas a performatividade heteronormativa de gênero, é porque espaços como estes são produtos de sistemas de poder que replicam esquemas regulatórios dentro de novos códigos de normalidade. Isto nos permite lembrar que os espaços urbanos, em si, não podem ser entendidos como dotados de identidades de gênero, pois, trata-se muito mais de uma produção discursiva resultante dos usos que dele se faz (Cortés, 2008). Se um salão de beleza for entendido como espaço feminino, um estádio de futebol como espaço masculino, ou uma sauna como ambiência gay, é porque tais significados são construídos discursivamente e, de tão reiterados na memória, dotam os espaços de significados e representações. Dito isto, os espaços gay friendly precisam ser entendidos como produtos de forças sociais que ali são condensadas e, por efeito, redundam na combinação de variáveis que, ora integram, ora separam; ora incluem, ora excluem. Afinal, o espaço urbano é produto destas relações desiguais de poder que agenciam assimetricamente marcadores sociais, como raça, gênero ou classe social.

É também necessário ponderar o fato de que estamos tratando do contexto urbano estadunidense no pós-guerra e, portanto, reportando a um contexto fortemente permeado por um adensamento de apelos sensórios (sob tensionamentos geopolíticos), que emolduraram discursos sobre um ideal de corpo e um ideal de sujeito. Obviamente, a construção de subjetividades no imaginário da cultura gay não ocorreu fora dos efeitos subjetivantes de corpos hipergenerificados da cultura estadunidense pós-guerra e é por isso que se pode falar de uma absorção da hipernormatividade de gênero, nítida, tanto na estética hiperviril, como também na gestualidade heteronormativa. Por conta disso, é possível afirmar que, ao integrar o campo do desejo e os usos dos corpos, referências estéticas não podem ser pensadas fora dos regimes de poder e, portanto, não podem ser experienciadas sem quaisquer critérios de legibilidade.

Como lembra Preciado (2018), a estrutura econômica mundial que se montou no pós-guerra depende de uma gestão biomidiática da subjetividade, que, operando pela interconexão de sistemas virtuais e audiovisuais, estruturou padrões performativos de gênero, fincando-os na materialidade corpórea. Essa regulação ainda hoje provoca uma dualidade frustração-excitação, que abastece uma ampla rede “psicofarmacológica” e, por conseguinte, aprofunda o controle do corpo como representação. Para comprovar o que afirma o autor, não são poucos os filmes hollywoodianos que, no final do século XX, retrataram homens viris de comportamento hedônico e individualista sob uma armadura de músculos hipertrofiados. Não que Hollywood tenha sido a causa, mas, sim, expressão do ideal de macho pós-moderno que se montava no imaginário estadunidense, cooperando para a propagação de referenciais morais e estéticos consubstanciado em corpos midiatizados.

Esse conjunto idealizações estéticas e políticas adentraram com força tão arrebatadora nos territórios gays de classe média, que escassamente os espaços de representatividade da causa LGBT dos anos 1960/1970 consideravam outras variações da homossexualidade como parte das pautas de contestação. É assim que gays afeminados, transsexuais, negros, periféricos, travestis e outras tantas multidões começaram, aos poucos, a contestar visibilidade fora da atmosfera pseudotolerante dos espaços selados pelo rótulo “gay friendly”. Não podemos aqui esquecer que ao início dos anos 1990 atribui-se a terceira onda do feminismo, impulsionada por situações análogas as críticas ao movimento feminista unitário de que trata Butler (2020). A grande importância desta terceira onda se deve ao fato de problematizar a singularidade do movimento feminista e incorporar outros tantos modos de contestar direitos, levando em conta as muitas pautas de luta que precisaram também ser incorporadas.

O advento do pensamento queer veio, então, como uma pertinente resposta para necessidade de mobilização de todas possibilidades de subjetivação e generificação. O que este movimento trouxe de revolucionário se assemelha ao que o voguing promove discursivamente no corpo, ou seja, a ideia de que a linguagem, como lugar de disputa, pode apontar meios eficientes de contestação e rebeldia contra discursos depreciativos. É assim que a condição de “anormalidade” foi revisitada como catapulta para militância pelo desejo de reconhecimento, inspirando as multidões queer a recorrerem aos mesmos discursos que lhes serviram de degradação, como modo de anunciar alteridade6.

De fato, podemos afirmar que aquele discurso hegemônico disposto nos corpos amplamente midiatizados exerceu sua força de exclusão territorial e estigmatização social; mas, ao mesmo tempo, redundou em modos plurais de confrontamento. Inspirados numa ideia foucaultiana, lembramos que o poder não deve ser visto como força ativa que opera contra corpos passivos; ao contrário, o exercício do poder somente ocorre quando se pressupõe a resistência ativa que vem em sentido inverso; assim, de igual modo, a massificação de um modelo de vida no pós-guerra redundou numa multiplicação exponencial do desejo de resistir.

Outra ponderação que se faz necessária é o fato de que os novos modos de dominação exigiram a construção de novos modos de resistência, isto é, de formas muito peculiares de confrontamento, que, não raramente, são mal interpretadas pela militância tradicional. Tal situação ocorre porque as mobilizações tradicionais nasceram num contexto de crença ingênua na “identidade individual coerente” e naquilo que Lyotard (1988) chamou de metanarrativas de legitimação do saber; fato que motiva estes grupos a exigirem padrões unitários de rebeldia e a vislumbrarem uma revolução singular sob valores pretensamente universais. Quando hoje deparam com microresistências que se munem dos códigos culturais hegemônicos para formulação de antagonismos, militantes tradicionais atacam com os mesmos argumentos universalistas que claramente caducaram. Neste contexto, o que o voguing e o movimento queer têm a nos ensinar é o fato de que as possibilidades resistências são muito maiores do que podemos supor e, além disso, a multiplicidade de peles, trejeitos e narrativas é muito maior do que julgava a militância de outrora. O vogar revela este caleidoscópio de ressignificações do corpo, celebrando sua potência subversiva, por vezes, ilegível para a militância convencional.

Ademais, entender o voguing como expressão performática do pensamento queer, amplia o debate e nos impede de esquecer o corpo como lugar privilegiado de disputa e empoderamento. Nesta oportunidade também reside o combate à hiperterritorialização sectária de uma identidade gay singular, convocando todas as outras variáveis, até então marginalizadas, à desguetização da diversidade e disposição dos corpos em aliança nas ruas. Do ponto de vista espacial, ambos, voguing e o pensamento queer, desde os anos 1990, têm transbordado fronteiras territoriais, produzindo “uma fenda na esfera de aparecimento, expondo a contradição por meio da qual a sua reivindicação de universalidade é proposta e anulada” (Butler, 2019a: 57-58).

Esse transbordamento aponta para uma possibilidade rica: a de levar para as ruas corpos que criem cenas de dissenso, que, pelo desconforto que produzem, anunciam o direito à visibilidade. A memória que tratamos anteriormente muito mais aponta para o presente do que para o passado, visto que os repertórios de reiteração sedimentados em nossa materialidade corpórea, nos lembra que, para além da repetição, existe a atualização de identidades, inclusive, de gênero. Estilizar o gênero nas ruas é meio de reescrevê-las a partir de idiossincrasias que, exatamente por teatralizar subjetividades, tornam-se em ato político. Assim, a memória nos serve de apoio para repetir os moldes de gênero que nos antecede, mas, também, a memória cria fissuras que desnaturalizam o gênero e trazem à tona o caráter construído das subjetividades que impregnam os corpos.

Considerações finais

Mediante a contextualização histórica e espacial que nos esforçamos para tratar neste texto, reconhecemos o voguing como resultado de uma linha difusa no limiar entre ser um sujeito individual e tornar-se pelos códigos estéticos já existentes. É por este motivo que justificamos a necessidade de uma abordagem contextualizada e multi-situada sobre o voguing e sobre qualquer movimento de resistência contemporâneo, de modo que velhas dicotomias não turvem a percepção das novas variáveis que integram as relações de poder na contemporaneidade.

Por fim, defendemos que não faz sentido recuperar pretensões universalistas da militância de outrora para avaliar a legitimidade do voguing como ato de contestação e resistência, uma vez que a dimensão do corpo não pode ser tratada fora do seu contexto espaço-temporal de onde brotam mobilização. Daí, insistimos em tratar o voguing como expressão de resistência de grupos dissidentes, que, em suas práticas ordinárias de vida, encontraram mecanismos de insubordinação aos padrões estéticos hegemônicos, transfigurando-os em vetores de alteridade. A beleza desta resistência situa na transmutação do código, que, ao rasurá-lo pela desobediência, traz os corpos precários à cena de negociação de significados.

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Notas

1O estilo também é comumente designado de vogue, entretanto optamos pelo termo voguing, tanto para realçar os movimentos de natureza performática e subjetiva que contornam a cena, como também para diferenciar da Revista Vogue, que inspirou o termo.

2Termo oriundo do inglês que designa performers do estilo voguing.

3O nascimento das celebridades é anterior ao tempo que designamos de pós-moderno, no entanto, desejamos destacar a intensificação da midiatização e estetização da vida cotidiana integrados ao star system no cenário posterior à Segunda Guerra.

4Cidreira (2005) nos lembra que a produção industrial em larga escala a partir de 1963 permitiu a popularização de peças do vestuário em lojas de departamento (prêt-à-porter), o que abriu a possibilidade de consumo em massa de roupas muito semelhantes a estética da alta costura.

5O termo “suburb” diz respeito a bairros de classe média afastados dos centros urbanos. Durante a Guerra Fria, tais bairros adquiriram uma forte conotação higienista e moralista, alinhada ao interesse político de resguardar a família tradicional de uma guerra iminente e dos efeitos degradantes da desigualdade social.

66 O termo queer foi semanticamente reapropriado para representatividade da comunidade gay. Analogamente o voguing cria uma dobra semântica no glamour, pois reapropria dos marcadores de exclusão como reviravolta ao dispor do empoderamento.

Recebido: 01 de Novembro de 2021; Aceito: 12 de Março de 2022

Roney Gusmão. Professor adjunto do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas - CECULT da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB. Endereço: R. Gen. Argôlo - Centro, Santo Amaro - BA, 44200-000, Brasil. E-mail: roney@ufrb.edu.br

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