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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.43  Porto June 2022  Epub July 31, 2022

https://doi.org/10.21747/08723419/soc43a5 

Artigos originais

Religião e média:o caso da reportagem “O Segredo dos Deuses” sobre a Igreja Universal do Reino de Deus

Religion and media:the case of the informative series “The Secret of the Gods” and the Universal Church of the Kingdom of God

Religion et médias:le cas du rapport “Le Secret des Dieux” sur l'Église Universelle du Royaume de Dieu

Religión y medios de comunicación:el caso del reportaje “El Secreto de los Dioses” sobre la Iglesia Universal del Reino de Dios

1Ana Maria Gonçalves dos Santos1 

11Faculdade de Letras da Universidade do Porto


RESUMO

Este artigo pretende explorar a relação entre os média e a Igreja Universal do Reino de Deus em Portugal a partir de um caso de estudo: a polémica reportagem da TVI, “O Segredo dos Deuses”, emitida entre 11 e 22 de dezembro de 2017. Para tal, analisa-se o conteúdo desta série informativa e outras notícias da TVI, assim como algumas publicações da imprensa nacional, das quais se destacam artigos e reportagens publicados pelos periódicos Observador, Expresso, Público, Sábado e Correio da Manhã. Por fim, far-se-á um breve percurso pelo posicionamento da instituição religiosa visada a partir do seu jornal Folha de Portugal.

Palavras-chave: Igreja Universal do Reino de Deus; minorias religiosas; média.

ABSTRACT

This article aims to explore the relationship between the media and the Universal Church of the Kingdom of God in Portugal, based on a case study: the controversial informative series broadcasted by TVI between December 11th and 22nd 2017, entitled “The Secret of the Gods”. For that end, this article analyses the content of this television piece and other news transmitted by TVI, as well as some publications from the national press, such as articles and reports by the periodicals Observador, Expresso, Público, Sábado and Correio da Manhã. Finally, this article will give a brief overview of the UCKG’s stance on this matter by using some material published in its newspaper Folha de Portugal.

Keywords: Universal Church of the Kingdom of God; religious minorities; media

RESUMÉ

Cet article vise à explorer la relation entre les médias et l'Église universelle du Royaume de Dieu au Portugal à partir d'une étude de cas: le reportage controversé de TVI, “Le Secret des Dieux”, transmis entre le 11 et le 22 décembre 2017. En plus du contenu de la pièce journalistique et d’autres nouvelles de TVI s'analise certaines publications de la presse nationale, dont se distinguent les articles et reportages publiés par les périodiques Observador, Expresso, Público, Sábado et Correio da Manhã. Enfin, un bref exposé sera fait à travers le positionnement de l'institution religieuse ciblée sur la base de son journal Folha de Portugal.

Mots-clés: Église universelle du Royaume de Dieu; minorités religieuses; médias

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo explorar la relación entre los medios de comunicación y la Iglesia Universal del Reino de Dios en Portugal a partir de un estudio de caso: el controvertido reportaje de TVI, “El Secreto de los Dioses”, emitido entre el 11 y el 22 de diciembre de 2017. Se analiza el contenido de esta pieza y otras publicaciones de TVI, así como algunas publicaciones de la prensa nacional, de las cuales se destacan artículos y reportajes publicados en los periódicos Observador, Expresso, Público, Sábado y Correio da Manhã. Finalmente, se hará un breve recorrido por el posicionamiento de la institución religiosa apuntada a partir de su diario Folha de Portugal.

Palabras-clave: Iglesia Universal del Reino de Dios; minorías religiosas; medios de comunicación

1. Introdução

Neste artigo pretende-se compreender a tensão mais ou menos contínua entre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e os meios de comunicação social portugueses. Embora esta questão esteja subexplorada, ela não é uma novidade na produção científica portuguesa. A presença desta denominação no território nacional esteve, praticamente desde a sua implantação, marcada por polémicas. Miguel Farias (1999) foi dos primeiros investigadores a notar o papel dos meios de comunicação social, enquanto informantes da opinião pública, na construção de uma imagem pública essencialmente negativa desta igreja junto da sociedade portuguesa. No universo religioso português, à eventual exceção das Testemunhas de Jeová, o escrutínio mediático experienciado pela Universal não tem comparação, mesmo entre grupos religiosos minoritários com práticas rituais e crenças semelhantes como, por exemplo, a Igreja Maná. Este grau e tipo de cobertura mediática terá ajudado a consolidar uma atitude de desconfiança por uma larga parte da sociedade portuguesa em relação à IURD.

Para as questões que serão aqui exploradas, é pertinente lembrar que, desde os anos 1980, o surgimento de Novos Movimentos Religiosos (NMRs) na Europa levantou acesos debates públicos em vários Estados-membro. A discussão relativamente a estes grupos religiosos esteve, quase sempre, voltada para a tentativa de estabelecer-se uma distinção entre comunidades religiosas e seitas. Entendia-se que as primeiras não levantavam qualquer problema, enquanto as segundas deveriam ser alvo de controlo e, se necessário, ter as suas atividades restringidas. Não obstante as tentativas de encontrar definições precisas que estabelecessem a diferença entre os dois conceitos e diferenciassem o “bom” do “mau” proselitismo, «nem historiadores nem sociólogos da religião conseguiram uma fronteira precisa entre os dois termos, em boa parte pela impossibilidade conceptual e consensual para o termo seita» (Vilaça, 2006: 51). Ainda assim, muitos destes grupos religiosos, ainda que não tenham sido oficialmente proscritos, enfrentaram sérias resistências e preconceito social. A desconfiança generalizada perante as seitas veio, segundo as autoras Françoise Champion e Martine Cohen (1999), em primeiro lugar, de associações e movimentos anti seitas, e em segundo lugar, dos média. O papel destes últimos na difusão do “pânico moral” (Cohen, 2002) tendo determinados grupos sociais como alvo, nomeadamente grupos religiosos minoritários, assumiu de facto importância em muitos países europeus. Em 1995, o sentido de ameaça que os NMRs poderiam representar levou, por exemplo, à elaboração de um relatório parlamentar em França. Este identificou 173 “movimentos sectários” (sendo a IURD um deles), mas gerou profundas críticas do mundo académico pela imprecisão científica das categorias e metodologia seguidas (Introvigne e Melton, 1996). O debate público em torno dos NMRs revelou como, de um modo geral, havia ainda limitações no quadro do pluralismo religioso na Europa, ainda que em diferentes graus dependendo do contexto nacional.

No caso português, a IURD foi dos grupos religiosos que mais estiveram no centro do debate público sobre pluralismo e liberdade religiosa no país. Também na sequência de uma opinião pública que tendia a identificá-la como uma seita religiosa e, por isso, tendencialmente desfavorável à sua presença no país, as autoridades políticas foram chamadas a intervir e endereçar o problema da reconfiguração do campo religioso português. Assim, em 2001, foi aprovada a nova Lei da Liberdade Religiosa. Embora então a IURD não tenha sido contemplada pela nova lei por não estar presente em Portugal há mais de trinta anos, «teve, assim, a virtualidade de interpelar, pela primeira vez, a sociedade portuguesa em termos do pluralismo de crenças, promovendo a sua discussão, quer nos círculos religiosos institucionalizados, políticos, intelectuais e científicos, quer na sociedade civil, fortemente mobilizada pelos meios de comunicação social» (Vilaça, 2006: 156).

O pressuposto deste artigo é que, em finais de 2017, a TVI exibiu uma reportagem de investigação intitulada “O Segredo dos Deuses” que viria a reforçar o sentimento de desconfiança e anti seita em relação à IURD. A pretexto de expor alegados crimes cometidos por membros da instituição religiosa, a reportagem jornalística adotou um viés sensacionalista que influenciou a mobilização popular contra esta denominação. Dada a gravidade das alegações aí feitas, é importante refletir-se sobre a responsabilidade dos média em informar o público e não em influenciar a opinião pública. Procurar-se-á mostrar como outros canais da imprensa nacional, pelo menos numa fase inicial, e antes de qualquer investigação por parte das autoridades competentes, reproduziram e tomaram como adquiridas as alegações feitas na reportagem da TVI. Por último, ver-se-á o posicionamento da IURD a propósito desta.

Opções metodológicas

Nesta investigação assumiu-se uma abordagem eminentemente histórica, dada a preferência pela consulta de fontes documentais. Optou-se por uma metodologia qualitativa designada crítica histórica, partindo da premissa de que os “documentos (...() são «testemunhas» que fornecem um «testemunho»” (Saint-Georges, 1997: 42). A imprensa, enquanto meio construtor da realidade social (Tuchman, 1978), constitui um recurso válido para o estudo de certos fenómenos sociais. No estudo presente, é justamente a produção escrita e audiovisual dos média nacionais e a construção da narrativa sobre um grupo religioso minoritário que importa analisar. Procura-se aqui reconstituir as ideias e opiniões que os média veicularam e, em larga medida, construíram sobre uma comunidade religiosa e o modo como a IURD recorreu aos seus próprios meios de comunicação para tecer uma narrativa alternativa.

Para tal, analisou-se qualitativamente os conteúdos da reportagem televisiva “O Segredo dos Deuses”, das publicações escritas no website da TVI e de outros canais da comunicação social portuguesa que versassem sobre o mesmo assunto. Além da empresa TVI, recolheu-se uma amostra em websites de diferentes canais da imprensa portuguesa - jornais e revistas -, dando preferência àqueles com maior circulação a nível nacional. A escolha recaiu sobre os periódicos Observador, Público, Expresso, Correio da Manhã e Sábado. Foi feita uma pesquisa usando as palavras-chave “IURD”, “adoções ilegais”, “Edir Macedo” e “Segredo dos Deuses” e recolheu-se uma amostra total de 51 entradas nas páginas destes cinco periódicos. Nestes 51 documentos fez-se, posteriormente, a análise de conteúdo e as suas linhas gerais serão sintetizadas neste artigo.

Além da imprensa generalista portuguesa, afigurou-se de igual modo importante fazer o levantamento da cobertura dada a este tópico na imprensa da igreja visada na reportagem da TVI. Assim, consultaram-se algumas publicações do jornal Folha de Portugal (propriedade da IURD em Portugal) disponíveis online. Em maio de 2019 foi lançada uma edição especial que versava unicamente o assunto em causa. Consultaram-se também as edições deste semanário entre dezembro de 2017 (exibição da reportagem) e maio de 2019 (lançamento da edição única onde se publica a tomada de posição da IURD sobre a reportagem), com o intuito de perceber se a igreja dera destaque a este tema através do seu jornal. A metodologia utilizada em todas as fontes consultadas foi a análise de conteúdo numa perspetiva qualitativa. Ou seja, a partir dos documentos observados, procurou-se interpretar os significados atribuídos aos objetos-alvo desses discursos e textos.

2. Contextualização histórica e sociológica da IURD em Portugal

A Igreja Universal do Reino de Deus foi fundada no Rio de Janeiro em 1977. Nos seus primórdios, constituiu um fenómeno religioso sectário (Campos, 2000) que, gradualmente, acabou por se tornar uma igreja institucionalizada e burocratizada no sentido weberiano. A transnacionalização da IURD iniciou-se em 1985, tendo sido o primeiro templo da IURD em Portugal inaugurado em Lisboa no ano de 1989. Ao longo da década de 1990 a instituição continuou a sua expansão internacional, conseguindo assegurar a sua presença - mesmo que, em alguns países, meramente simbólica - em quase todos os continentes (Corten, Dozon e Oro, 2003).

Em 1995, chegada a Portugal há apenas cinco anos, a Universal conseguiu assegurar o maior número de templos fora do Brasil. Nesse ano, a denominação já contava com 50 locais de culto no território português (Freston, 1999: 389). A questão do número de fiéis da IURD em Portugal é, não só nesta fase inicial, como na atualidade, um tanto ou quanto problemática. Paul Freston (1999) e Clara Mafra (2003) questionavam as estimativas feitas em 1995, quer pelos meios de comunicação social, quer pela própria igreja, de cerca de 200 mil fiéis em Portugal. Estes números carecem de fundamento e verificação fidedigna. Segundo estudos académicos mais recentes a Igreja Universal do Reino de Deus representa apenas 0,1% no contexto religioso português (Vilaça, 2013: 89). Porém, esta cifra, além de ser apontada com algumas reservas por parte dos próprios investigadores, não oferece mais do que uma percentagem. É um indicador comparativo útil, mas ao qual escapa o conhecimento do perfil sociodemográfico deste grupo religioso. Alguns autores (Freston, 1999; Ruuth e Rodrigues, 1999; Mafra, 2002; Rodrigues e Silva, 2014) avançaram algumas hipóteses neste sentido para os anos iniciais de implantação da IURD em Portugal. A membresia da igreja seria tipicamente composta por imigrantes de origem brasileira e africana, mulheres, pessoas com baixo nível de escolaridade, oriundas de meios sociais mais pobres, desempregados e idosos. É provável que este perfil se tenha alterado, tendo hoje mais indivíduos de classe média, jovens com formação universitária, mas não existem, de momento, dados recentes que possam dar pistas no conhecimento do perfil sociodemográfico desta comunidade religiosa em Portugal.

Regressemos aos anos iniciais da implantação da Universal em território português. É necessário recuar à década de 1990 para compreender as origens da tensão mais ou menos contínua entre esta instituição religiosa e os meios de comunicação social nacionais. É útil lembrar que este era um contexto de forte expansão do pentecostalismo a nível mundial, com uma significativa aposta neste sentido por parte das igrejas neopentecostais. No caso da Igreja Universal, foi a década em que mais investiu na abertura de templos noutros países e, como tal, constitui um período de grande crescimento em número de fiéis por todo o mundo. Também numa perspetiva de crescimento de recursos, foi nos anos de 1990 que a igreja adquiriu no Brasil a estação televisiva Rede Record. Existe, portanto, uma coincidência temporal entre a chegada a Portugal desta igreja e o seu auge de crescimento, e o acentuar de polémicas e problemas enfrentados pela Universal no Brasil.

Desde o início da década de 1990, a imprensa brasileira reportava alegadas atividades ilegais ou, no mínimo, suspeitas por parte da hierarquia da igreja, nomeadamente por parte de um dos seus fundadores e responsável máximo, Edir Macedo. Começavam então a surgir as acusações de fraude fiscal, charlatanismo, curandeirismo, entre outras, na imprensa brasileira. Em 1992 o bispo Edir Macedo foi detido na cidade de São Paulo no Brasil, e esteve preso durante 11 dias, sendo então libertado. Porém, os relatos de alegadas ilegalidades por parte de líderes eclesiásticos mantiveram-se nos meios de comunicação social brasileiros. Um caso altamente polémico foi o de Carlos Magno, ex-pastor da Universal, que em 1995 denunciou publicamente aquilo que defendia ser uma viragem da hierarquia da IURD de uma vivência espiritual para uma orientação mercantilista e para a construção de um poder financeiro.

Este tipo de cobertura alimentava a dialética da perseguição (nós versus os outros, os “de fora” da igreja) de que nos fala Clara Mafra (2002). Em particular entre os anos de 1994 e 1996, tanto no Brasil, como em Portugal, ao polarizar eventuais sentimentos de ataque-perseguição, a igreja afirmava estar a crescer mais do que nunca. Este era o “efeito omelete”, como lhe chamou o próprio bispo Edir Macedo, isto é, «quanto mais bate, mais ela (a igreja() cresce» (Macedo apud Mafra, 2002:198). Paradoxalmente - ou talvez por isso mesmo - a IURD reclamava o maior aumento de fiéis que já tivera num momento em que estava na ordem do dia nos noticiários portugueses e brasileiros. Quase sempre essa cobertura mediática reportava, no caso brasileiro, ou mimetizava, no caso português, acusações e alegações de atividades criminosas. Ainda que a Universal tenha, numa fase inicial, fomentado a dialética da perseguição, em Portugal esta estratégia parece ter causado mais danos do que benefícios (Swatowiski, 2020).

A desconfiança quase imediata lançada pelos meios de comunicação social sobre a IURD focou-se, logo em 1992, na estranheza dos seus rituais (prática de exorcismos, a “histeria” e “espetacularidade” dos cultos) e na questão da arrecadação de dízimos e ofertas pecuniárias (Farias, 1999). Em 1995, quando a Universal estava numa fase de significativo aumento de lugares de culto, a tentativa de compra do Coliseu do Porto por parte da igreja suscitou uma mobilização popular inédita. O movimento “Todos pelo Coliseu” teve, inclusive, o apoio de várias figuras públicas, incluindo políticos e artistas nacionais. Em 1996 foi publicado um “livro-denúncia” sobre a IURD (Rosa e Martins, 1996). Os autores afirmavam expor as práticas clandestinas e, assim, provar que a IURD não era uma confissão religiosa, mas «uma organização comercial que ludibria o Estado Português» (1996: 14).

Os artigos de jornal e reportagens televisivas sobre a igreja terão tido um papel crucial (Farias, 1999) na construção de um sentimento de desconfiança quanto às motivações por detrás da instituição religiosa, numa atitude de preconceito relativamente às seitas brasileiras na sociedade portuguesa no geral e, inclusive, num breve “pânico social” relativamente a este grupo religioso (Vilaça e Oliveira, 2019). Este posicionamento terá sido reforçado pelo aumento da imigração brasileira num contexto de abertura da economia nacional à globalização (Junior, 2016). Alguns episódios de confronto entre a população local e membros da igreja revelam como, por vezes, sentimentos xenófobos instigaram o sentimento anti IURD. É particularmente elucidativo o incidente onde membros da igreja foram cercados na cidade de Matosinhos em 1995, tendo de ser escoltados pela polícia, mas não escapando ao arremesso de «uma chuva de ovos e tomates e aos sons dos gritos de “fora brasileiros, voltem para o seu país, não os queremos aqui”» (Junior, 2011: 437).

Claudia Swatowiski (2020) denota como a Universal teve, a partir de 2003, de encontrar estratégias para transformar a sua imagem e projeção e (re)conquistar legitimidade junto da opinião pública portuguesa. A estratégia passou por uma renovação interna, mudando lideranças eclesiásticas, alterando as igrejas da Universal para Centros de Ajuda Espiritual, procurando manter relações mais cordiais com outros atores religiosos, adotando um posicionamento público da instituição menos mediatizado e focando-se na sua vertente assistencial. Não obstante esse esforço da Universal, parece prevalecer, entre uma boa parte da opinião pública portuguesa, a ideia de que as igrejas neopentecostais são «uma espécie de praga que capta os mais incautos e incultos e que tem como único propósito ludibriar e extorquir dinheiro» (Vilaça e Oliveira, 2019: 191). A esse propósito, vários anos depois das polémicas da década de 1990, a IURD voltou a estar em destaque na televisão e imprensa portuguesa.

3. “O Segredo dos Deuses”: as suspeitas renovadas pelos meios de comunicação social

Entre 11 e 22 de dezembro de 2017 a TVI emitiu em horário nobre a reportagem “O Segredo dos Deuses”, a sua primeira “série informativa”, constituída por 10 episódios cuja duração tinha entre 20 e 26 minutos. Esta investigação foi conduzida pelas jornalistas Alexandra Borges e Judite França. Além da série informativa, após a transmissão de cada episódio, seguiu-se um debate-análise de cada peça em estúdio, contando com as duas jornalistas, o pivot do noticiário e convidados, entre eles algumas das testemunhas que apareciam no respetivo episódio, assim como juristas, juízes, advogados e assistentes sociais.

Como já analisado por Carla Baptista (2018), através de relatos de alegadas vítimas, esta reportagem jornalística acusava a IURD de ter dado ilegalmente para adoção, através de um lar de acolhimento que geria em Lisboa, várias crianças a pastores e bispos da igreja. Afirmava-se que a instituição seria responsável por uma rede internacional de adoções ilegais. Seguindo um formato narrativo de serialização, a reportagem apresentava um elevado nível de redundância nas informações reportadas (2018: 97), dando ênfase às reações emocionais dos entrevistados. Estas opções de formato e exposição de conteúdo informativo permitiram criar um efeito de suspense ao longo da série, que pretendia captar os espectadores, e que, de um modo geral, resultou numa estratégia jornalística onde não é evidente a separação entre ficção e informação (2018: 97). Consistiu numa reportagem focada nos alegados crimes de dirigentes eclesiásticos, mas quase sempre implicando toda a instituição religiosa, e quase não questionando os procedimentos administrativos e judiciais do Estado português que teriam permitido a realização dos atos relatados.

A reportagem exibe declarações de testemunhas que diziam que «isto foi um roubo, foi roubar crianças» (TVI, 2017a). Acusava-se vários membros da hierarquia da IURD de terem sido partes ativas e promotoras de adoções ilegais ao longo dos anos 1990. Algumas destas crianças, albergadas na instituição de acolhimento financiada pela igreja, teriam sido “escolhidas a dedo” pela filha e genro de Macedo, Viviane e Renato Freitas, numa visita ao lar em Lisboa, e o processo teria sido formalizado pela secretária pessoal de Edir Macedo, Alice Andrade, cidadã portuguesa que reunia condições para ser adotante de duas crianças. Segundo o que foi avançado na reportagem, o destino dessas crianças seria ir para o estrangeiro para viver com Viviane e Renato (TVI, 2017b). A reportagem deu um enorme destaque aos testemunhos das mães biológicas das crianças adotadas. Salientava-se como também estas mulheres haviam sido vítimas da IURD, ao verem os seus filhos retirados da sua tutela, a quem terá sido sistematicamente negado visitar os filhos no lar, cujas assinaturas haviam sido, por meio de fraude, utilizadas para viabilizar os processos de adoção e, assim, a quem os filhos haviam sido “roubados” por membros da igreja.

A linguagem causa perplexidade: a acusação de estarmos perante “roubo” e “tráfico internacional” de crianças perpetrados por uma organização religiosa. É importante salientar como, ao longo da série, não havia grande preocupação em separar os membros da igreja ou associados envolvidos nos atos reportados do conjunto da instituição religiosa em si. Durante meses foi a IURD que apareceu nos títulos dos jornais, nos episódios da reportagem, o que, naturalmente, põe em causa não apenas as pessoas que estariam alegadamente envolvidas nesses crimes, mas a imagem de toda a comunidade religiosa. Afigura-se problemática a tónica da série estar na responsabilidade da instituição e não exclusivamente nas pessoas que faziam parte da igreja e que teriam estado envolvidas nessas adoções, evitando assim a veiculação de uma certa ideia de culpa por associação. Em “O Segredo dos Deuses”, a caraterização dos agentes da IURD envolvidos segue quase sempre a linha de pessoas maquiavélicas, com poderes e influência “invisíveis” e tentaculares. Contudo, a generalidade dos agentes públicos envolvidos nessas adoções (assistentes sociais, magistrados públicos, juízes, etc.) é nomeada com menor frequência e com uma caraterização menos agressiva. A investigação assumiu uma acusação criminosa à IURD, que teria conseguido ludibriar os tribunais portugueses com sucesso durante anos, e não versou sobre a questão da mediação do Estado em casos de menores em situações de risco. Esta narrativa negligenciava a evolução da legislação e do funcionamento dos órgãos estatais competentes em matéria de proteção social a menores. De facto, teria sido relevante contextualizar o quadro legal das adoções em Portugal na década de 1990. Desde então houve evoluções positivas no campo, e teria sido elucidativo expor as alterações em matéria de proteção social conferida pelo Estado português a menores inseridos em famílias desfavorecidas e em risco.

As alegações de rapto, tráfico internacional de menores e fraude feitas na reportagem eram, de facto, de um teor gravíssimo e muito sério. Por isso mesmo, a reportagem da TVI surtiu uma reação imediata de choque e repúdio pela atuação da instituição religiosa. Perante relatos de adoções ilegais, pais a quem foi negada de forma infundada a visita aos seus filhos biológicos, houve novamente uma mobilização popular. Destaca-se o movimento #Nãoadotoestesilêncio, que terá começado por iniciativa da própria TVI, e este daria origem a pelo menos um outro, o Movimento Verdade, uma iniciativa da sociedade civil para “exigir respostas” sobre o problema trazido a público pela TVI (Público, 2018). À semelhança do que aconteceu em 1995 com o movimento “Todos pelo Coliseu”, também o movimento #Nãoadotoestesilêncio contou com o apoio de figuras públicas: músicos, escritores, comediantes, jornalistas, políticos, entre outros (TVI, 2018). Desta mobilização popular e visibilidade mediática causada pela reportagem resultaram uma petição para que fosse aberto um inquérito parlamentar para apurar responsabilidades e, se necessário, levar o caso à justiça portuguesa. Ainda em dezembro de 2017 o Ministério Público instaurou um inquérito-crime para investigar as alegações feitas na reportagem. Este veio a ser arquivado em maio de 2019 por motivo de prescrição dos alegados crimes descritos. O despacho da Procuradoria-Geral da República avançou também que algumas das alegações feitas por testemunhas na reportagem foram desmentidas pelas mesmas à Polícia Judiciária (Público, 2019).

Não obstante a afirmação de se tratar de uma investigação sobre uma rede de adoções ilegais, meramente orientada pelas pistas e factos documentais e testemunhos de alegadas vítimas, surgem amiúde acusações de práticas questionáveis no plano económico e financeiro (TVI, 2017cFp). Não obstante esta instituição, ou líderes eclesiásticos da mesma, nunca terem sido formalmente acusados de crimes em Portugal, e não há sequer informação de terem sido investigados pelas autoridades nacionais, a reportagem da TVI trouxe renovadas suspeições nesse sentido.

De resto, a demais imprensa portuguesa amplificou esta(s) polémica(s) durante vários meses. As notícias de alguns jornais portugueses alimentavam a indignação geral, com títulos sensacionalistas como “IURD exporta crianças com o aval do Estado” (Laranjo, Carvalho e Faria, 2017). Em abril de 2018, no Observador, afirmava-se: «o advogado de uma das mães cujos filhos lhe foram retirados pela IURD para adoção» (Observador, 2018). A escolha de palavras é questionável, uma vez que a IURD não detinha poder para retirar crianças aos pais biológicos. O lar da igreja apenas poderia receber crianças encaminhadas pela Segurança Social e pelos tribunais, como parece ter sido o caso.

Após a reportagem surgiram várias notícias na imprensa sobre a IURD e a sua liderança eclesiástica. Algumas não constituíam matéria informativa nova, mas um oportuno resgate de peças antigas que pretendiam relembrar e elucidar os leitores sobre os “negócios” da IURD (Lito, 2017). Relativamente ausente da atenção mediática durante anos, após a reportagem da TVI proliferaram notícias e reportagens sobre as atividades e funcionamento da igreja. Logo em 2017, notícias do Observador revisitaram as polémicas envolvendo Macedo, entre elas as alegações de aproveitamento ilícito dos dízimos dos fiéis (Porto e Gomes, 2017; Gomes, 2017).1 Nalgumas passagens faziam-se afirmações sensacionalistas e pouco rigorosas. Dizia-se numa notícia (Porto e Gomes, 2017) que a Constituição brasileira proíbe as confissões religiosas de serem proprietárias de jornais ou rádios. Várias confissões religiosas no Brasil, não apenas a IURD, possuem órgãos mediáticos, como é o caso da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil com o seu jornal Mensageiro da Paz.

Em janeiro de 2018 o Observador relatava que a «IURD decreta “jejum de notícias” aos fiéis» (Gomes, 2018). No epicentro da polémica envolvendo a igreja, o jornal tomava a oportunidade para destacar que os fiéis da igreja “não poderão” ler ou ouvir notícias, justamente numa altura em que a IURD estava sob fogo mediático. Nesta notícia parece haver uma relação de causa-efeito entre os dois acontecimentos, o que revela alguma ignorância quanto às práticas desta denominação. O “jejum de Daniel” é um desafio lançado aos fiéis com alguma frequência no sentido de incitá-los à introspeção, à reflexão sobre matérias espirituais. De resto, esta não é uma prática exclusiva da IURD. Outras denominações evangélicas, como a Congregação Cristã, também o recomendam aos seus fiéis.

Dois artigos do Expresso (Guerreiro, 2017; Monteiro, 2017), entretanto removidos do respetivo website, são elucidativos do sentimento anti IURD suscitado pela reportagem “O Segredo dos Deuses”. No primeiro, Pedro Santos Guerreiro escrevia: «Tráfico de crianças. Talvez seja preciso ir repetindo esta expressão. (…() Isto não foi só lá atrás, o Estado pode, deve, agir. Começando pela organização IURD. E acabando com aquilo que, nela, medra de mal. E se ela for o mal, acabando com ela». Este posicionamento do autor sugere que, caso se viesse a verificar a veracidade do que foi reportado pela reportagem da TVI, o Estado deveria agir e, provando-se terem os membros da Universal agido contra a lei, deveriam ser punidos. A sugestão que, no nosso entender, levanta questões melindrosas é de que “se ela (a IURD() for o mal”, deve “acabar-se” com ela. É importante considerar que «uma sociedade democrática não pode prescrever uma associação religiosa, mesmo que tenha de punir os seus membros pelas suas acções» (Vilaça, 2006: 48). A liberdade religiosa não confere impunidade de atividade criminosa. Porém, salientamos a necessidade de distinguir entre comportamento de indivíduos pertencentes a uma instituição religiosa e o conjunto da comunidade de fé que nada tem a ver com a atuação dos demais.

No segundo artigo do Expresso, Henrique Monteiro tecia o seguinte comentário: «Trata-se de crianças eventualmente raptadas e de uma suposta igreja que há 30 anos anda a ser denunciada como uma espécie de fraude para enganar incautos. (…() Em Portugal há quase 30 anos que é denunciada como um ‘caso estranho’ (…(). A IURD é um objeto estranho, toda a gente o soube sempre. E, naturalmente, a um estado laico, como deve ser, não cabe discriminar qualquer religião, por muito estranha que nos pareça. Mas há um corpo de leis gerais abstratas que essas seitas ou religiões têm necessariamente de acatar» (itálico nosso).

Estes dois artigos, tomando como adquiridas as informações veiculadas na reportagem televisiva da TVI, exibem a compreensível revolta perante alegações terríveis, mas também transparecem uma série de preconceitos e, em particular no último artigo, ignorância sobre grupos e práticas religiosas. No artigo de Henrique Monteiro fica claro o desprezo por “essas seitas” e pela IURD em particular que, como o próprio afirma, há décadas que estaria a ser denunciada como sendo uma fraude, embora não apresente dados concretos sobre as denúncias a que se refere.

A exibição da reportagem “O Segredo dos Deuses” conseguiu uma amplificação enorme noutros meios mediáticos nacionais, sendo que a generalidade da imprensa assumiu a veracidade das alegações aí feitas e mimetizou as acusações de rapto, ilegalidades e crimes que teriam sido cometidos por membros da IURD. Ademais, alguns jornais aproveitaram o momento para trazer de novo para a discussão pública as polémicas antigas envolvendo a hierarquia da igreja, reforçando a credibilidade do que era alegado na reportagem da TVI junto da opinião pública portuguesa. Tudo isto reforça a necessidade de se alargar o debate público sobre religiões, no sentido de melhor compreender as múltiplas confissões presentes em Portugal, as suas diferentes práticas e crenças, combatendo o preconceito e estigmatização de certos grupos religiosos.

4. A IURD riposta

Logo após a transmissão da reportagem da TVI, a Universal adotou uma postura discreta, negando as acusações feitas por intermédio de uma equipa legal. Numa fase inicial, esta questão não recebeu cobertura no jornal da igreja, Folha de Portugal. A igreja justificou o seu silêncio prolongado por querer aguardar pela decisão da Justiça portuguesa.

Porém, em maio de 2019, após a decisão do Ministério Público de arquivar o processo, o assunto teve ampla discussão na imprensa iurdiana. A instituição lançou, inclusive, uma edição especial de 150 mil exemplares, uma tiragem largamente superior ao habitual que não excedia, em 2018, os 78 mil exemplares, e que abordava unicamente este tópico. O jornal alegava ainda que fora a própria jornalista Alexandra Borges, e não as mães biológicas das crianças adotadas ou a Procuradoria-Geral da República, a abrir a queixa-crime que levara ao inquérito-crime (Folha de Portugal, 2019: 2).

A IURD sublinhava a “reposição da verdade”, reclamando estar a desconstruir uma “falsa investigação”, “sensacionalista” e à qual atribuía “falta de isenção e rigor”. Abordava nesta edição as repercussões danosas da reportagem da TVI, incluindo para os fiéis da IURD. Deste modo, a dialética da perseguição parece ter ganho renovada força. Abundam nesta edição especial as afirmações de que, desde 1989, a IURD e os seus fiéis são alvo de preconceito e perseguição (Folha de Portugal, 2019: 2), acusando os média de serem os principais instigadores. É cristalino que a IURD entendia “O Segredo dos Deuses” como uma “campanha difamatória” deliberada contra si por parte do canal televisivo. Falava-se mesmo numa “caça às bruxas” (Folha de Portugal, 2019: 5) que teve repercussões muito graves para os membros da igreja. O jornal reportava situações de agressões verbais e físicas aos seus membros, templos vandalizados, e, não menos danoso, o preconceito e suspeitas que muitos fiéis enfrentaram nos seus núcleos familiares e até profissionais. Alguns exemplos do estigma social que a igreja enfrentou como resultado da reportagem são: em campanhas de evangelização, alguns fiéis terão sido fisicamente agredidos; muitos terão sentido a pressão familiar para abandonar a “seita que enganava as pessoas”; o prejuízo profissional e pessoal quando amigos, familiares e colegas de membros da igreja assistiram à reportagem e acusaram-nos pertencerem a uma “rede de tráfico de crianças”; relatos de membros da IURD cujos ex - companheiros/cônjuges impediram os filhos de ambos de frequentarem a igreja.

A Universal propunha então um “contramovimento”, que designava #nãoadotoestamentira.

Acusava as jornalistas responsáveis pela reportagem de terem sido as próprias a criar o movimento #Nãoadotoestesilêncio como forma de amplificar o sentimento de revolta contra a IURD. Nesta ocasião aproveitava-se também para fazer uma contra-acusação a uma das jornalistas responsáveis pela reportagem, Alexandra Borges. A direção do jornal entrevistou o advogado da IURD, Martim Menezes (Alves, 2020), para a edição especial sobre o caso das adoções, e questionou-o sobre o processo-crime de que a igreja fora alvo. Asseverando ter sido Alexandra Borges a abrir uma queixa- crime junto da PGR em 7 de dezembro de 2017, o advogado afirmava: «no fundo, é uma jornalista a criar factos e uma história para noticiar» (Folha de Portugal, 2019: 10). A igreja usou também os seus canais televisivos para transmitir a sua resposta à reportagem da TVI, para «repor toda a verdade que foi deturpada, ocultada e escamoteada ao longo de dois anos» (Igreja Universal, 2019). Em meados de 2019, a direção da IURD em Portugal organizou um debate que pretendia expor as “falsidades” da reportagem da TVI (Igreja Universal Portugal, 2019). O apresentador do programa foi o bispo Domingos Siqueira e, entre os convidados, estavam Francisco Lucena, consultor de comunicação, Martim Menezes, advogado, César Ribeiro, professor universitário2, e José Branco, membro do departamento de Compliance da Igreja Universal. Na abertura do programa, em rodapé, constava a alegação e “contra-acusação” da IURD: «afinal, as assinaturas (dos pais biológicos() que constam nos processos de adoção são verdadeiras».

Embora não relacionado com o estudo de caso de que trata este artigo, pode analisar-se a relação entre os média e a Universal a partir de um outro objeto, o filme “Nada a Perder” (Avancini, 2018). Trata-se de uma adaptação de uma autobiografia de Edir Macedo, num registo narrativo quase hagiográfico, que estreou no Brasil em 2018. Quando este foi noticiado no Folha de Portugal, mencionava-se que muitas pessoas já teriam ouvido falar dele «por causa das notícias que os media veiculam sobre ele (...() a maioria delas negativas e difamatórias. Mas, a partir de março, a verdade será revelada» (Folha de Portugal, 2018a: 11). A imagem de Edir Macedo que o filme cria é a de um homem perseguido pelos poderes públicos e pela Igreja Católica no Brasil, mas que teve a coragem de enfrentá-los. É evidente o recurso à dialética da perseguição no filme. O discurso da liderança eclesiástica ainda bebe desta estratégia. Citando Renato Cardoso, bispo da Universal, a maioria das pessoas «só ouviu falar do bispo Macedo pela boca dos que o odeiam e dos que temem o crescimento da Igreja Universal. Ao longo de boa parte dos 40 anos, a Igreja sofreu esse ataque implacável» (Folha de Portugal, 2018b: 3).

Portanto, a estratégia de defesa da igreja perante a reportagem da TVI voltou, uma vez mais, à dialética da perseguição. Apresentou-se como vítima de preconceito, uma comunidade consecutivamente alvo de perseguições por parte de quem não percebe a sua mensagem e que receia o seu crescimento. Contudo, na sua dialética da perseguição relativa a este episódio de 2017-2019, a IURD circunscreveu os seus ataques. Na década de 1990, ela procurou atrair fiéis criticando outros grupos religiosos e os poderes públicos que ignoravam os mais pobres e marginalizados da sociedade. Em 2017 a igreja procurou capitalizar as acusações da TVI para reforçar a sua posição de vítima e alvo de sucessivas campanhas difamatórias por parte dos média, vistos por ela como promotores do preconceito e ódio em relação a si.

5. Conclusão

O caso da reportagem da TVI “O Segredo dos Deuses” ilustra bem o potencial dos média em influenciarem a opinião pública, seja favorável ou negativamente. A relação dos média com a IURD em Portugal tem sido pautada por tensão desde a implantação desta no país em 1989. Acreditamos que esta relação problemática radica no início controverso da IURD em Portugal. Esta ficou quase de imediato marcada por uma cobertura mediática que importou as polémicas já existentes no Brasil, e assumiu com frequência uma atitude de desconfiança. No centro destas polémicas surgiam questões financeiras e alegações de fraude fiscal, nomeadamente no que concerne o suposto uso indevido dos dízimos e das ofertas dos membros da igreja. Uma parte da desconfiança suscitada por estas práticas terá resultado, em parte, de uma literacia religiosa relativamente pobre dos média, mais evidente em relação às minorias religiosas.

Apesar de nunca ter havido uma acusação oficial das autoridades judiciais portuguesas, a Universal enfrentou desde a década de 1990 uma opinião pública desfavorável e suspeitas em relação à atuação dos seus líderes. Em relação aos restantes membros, parece ter-se consolidado a ideia de serem pessoas ingénuas que “se deixam enganar”, e estudos académicos já haviam salientado o papel dos média na construção deste preconceito. No nosso entender, as acusações desta reportagem vieram reforçar essa perceção. O enorme mediatismo que esta polémica teve noutros canais da imprensa nacional conferiu credibilidade acrescida à reportagem da TVI, polarizando ainda mais a opinião pública.

Assim, a reportagem da TVI, alegando expor uma rede internacional de tráfico de crianças dirigida pela igreja, renovou e agravou na sociedade portuguesa um sentimento anti IURD que estava desde os anos 2000 relativamente dormente. A imprensa nacional acompanhou esse registo de desconfiança e apostou em reviver polémicas da década de 1990, destacando aquelas que envolviam o património financeiro da igreja, arrecadado através de ofertas e dízimos. As insinuações de que esta terá práticas fraudulentas, que a sua relação com o dinheiro não lhe confere credibilidade no plano espiritual, a sua caraterização como uma seita, deixa implícita a noção de tratar-se de algo mau, uma religião não-autêntica. De um modo geral, os média nacionais têm visto a IURD como uma instituição religiosa não-idónea.

Resta dizer que não tecemos considerações sobre as alegações feitas na reportagem da TVI. Cumpre ao Estado fiscalizar e intervir em situações de ilegalidade, mas sempre consagrando o respeito pela liberdade e pluralismo religioso. É ainda importante que se fomente a literacia religiosa e, acima de tudo, o debate público sobre religião em Portugal.

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Notas

1Não sendo oportuno explorar este tópico neste artigo, entendemos que esta questão merece uma reflexão aprofundada. Em primeiro lugar, porque a prática do dízimo e de ofertas à respetiva congregação tem um fundamento bíblico e é comum a várias comunidades cristãs. No entanto, apenas a IURD parece ser interpelada pelos média a esse respeito. Em segundo lugar, a aparente perplexidade causada por esta prática parece ter origem na incapacidade de se compreender um comportamento que, para quem não faz parte da comunidade, afigura-se irracional. Em particular no que concerne as igrejas neopentecostais, que perfilham a Teologia da Prosperidade e onde a dimensão ritual do sacrifício material (inclusive monetário) desempenha um papel importante, é útil consultar a reflexão do antropólogo Simon Coleman (2011). Ele questiona justamente as interpretações que têm debatido esta questão em termos de racionalidade vs. irracionalidade. O autor entende que estas categorias não são suficientes, nem úteis, para entender uma dimensão simbólica bastante complexa.

2Não é dada indicação sobre a sua área de especialização deste, o que poderia explicar a pertinência do convite para o debate, nem a instituição de ensino onde seria docente. O convidado fez uma declaração de interesse, revelando ter funções administrativas na IURD em Portugal

Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 15 de Abril de 2022

Ana Maria Gonçalves dos Santos. Doutoranda em Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Porto, Portugal). Endereço de correspondência: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto (Portugal). Email: up201004454@edu.letras.up.pt

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