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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.44  Porto dez. 2022  Epub 30-Mar-2023

 

OBITUÁRIO

António Teixeira Fernandes (1939-2022): um percurso singular na Sociologia

João Teixeira Lopes1  2 

Virgílio Borges Pereira1  2 

1Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

2Instituto de Sociologia da Universidade do Porto


Faleceu, na cidade do Porto, no passado dia 24 de agosto, dia com significado na história da cidade com reflexos marcantes na do país, o Professor Doutor António Teixeira Fernandes. Nascido em Arouca, a 2 de fevereiro de 1939, tendo cruzado, com a sua ação, vários pontos do país e do mundo, António Teixeira Fernandes, desde cedo, se identificou com os dinamismos sociais da cidade do Porto, nomeadamente e, desde logo, na sua juventude, através da Igreja católica, onde, como sacerdote, ordenado em 1962, desempenhou papel destacado na administração religiosa da diocese do Porto. De um modo que não foi alheio à sua atividade sacerdotal específica na diocese, António Teixeira Fernandes realizou um percurso formativo que se consumou, entretanto, entrecruzando-se com passagens por Paris, na obtenção, pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, da licenciatura e do doutoramento em Sociologia, este último em 1972. Figura cimeira da institucionalização da Sociologia na Universidade do Porto, António Teixeira Fernandes afirmar-se-á como um ator e autor de relevo na génese e consolidação do campo sociológico em Portugal. Uma vez doutorado em Sociologia, grau de que foi dos primeiros detentores a atuar no país, depois do exercício de atividade docente na Universidade de Lourenço Marques, em Moçambique, e, de regresso a Portugal, na Universidade de Aveiro, António Teixeira Fernandes ingressou no corpo docente da Universidade do Porto (UP), na Faculdade de Letras, em 1977, aqui obtendo a agregação, em 1983, e nesta permanecendo, até à sua jubilação, em 2009. Tendo iniciado a sua carreira na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) no grupo de Filosofia, ensinando Epistemologia e Ciências Sociais, António Teixeira Fernandes aqui desenvolveu, para além de relevante prática pedagógica, uma intensa atividade institucional, onde se inclui a presidência do Conselho Científico da FLUP, que lhe permite, enquanto Professor Catedrático, em 1985, fundar o curso de licenciatura em Sociologia, cuja direção assegurará durante longo tempo. Na sequência de um tal processo e nos anos seguintes, consolidará a autonomização desta área científica na FLUP e na UP, através da criação de cursos de mestrado em Sociologia (o primeiro, em 1994) e da organização de todo o processo que conduzirá à atribuição do grau de doutoramento na disciplina (1998, será a data da atribuição do primeiro título de doutor em Sociologia na FLUP, neste caso, sob a sua própria orientação). Sócio fundador da Associação Portuguesa de Sociologia, em 1985, bem inserido institucionalmente nas universidades portuguesas, assegurando colaborações letivas e de vária ordem essenciais ao funcionamento do campo científico nas ciências sociais, em geral, e do campo sociológico que se autonomiza, em particular, António Teixeira Fernandes será também o fundador e primeiro diretor do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, unidade de investigação e desenvolvimento, em 1989, o fundador e primeiro diretor de Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1991, chegando ainda a exercer o cargo de primeiro diretor do curso de doutoramento em Sociologia da FLUP, quando a atribuição deste grau, na primeira década deste século, se readaptou ao formato de curso decorrente da chamada reforma de Bolonha. Assegurará a direção de todos estes espaços institucionais rodeando-se de novos docentes e investigadores, cujo recrutamento e formação promoveu de modo ativo, e buscando colaborações eficazes na UP e no campo sociológico nacional, sempre norteado pela consolidação da autonomia da disciplina científica que abraçou e pela qualificação do olhar por esta promovido sobre a realidade social, com objetivos de desenvolvimento social e institucional. António Teixeira Fernandes aliou o esforço de construção dos espaços institucionais necessários ao desenvolvimento da Sociologia como disciplina na academia e na sua relação com a sociedade a um trabalho sistemático de escrita científica, que materializou num conjunto muito alargado de livros, de capítulos de livros e de artigos científicos. Alguns sociólogos marcam-nos pela sua capacidade de declinarem o saber sociológico a propósito de um amplo leque de fenómenos sociais, sem deixar de, entre eles, estabelecer conexões e construir um sistema de pensamento. António Teixeira Fernandes foi, a este nível, um dos mais relevantes, tendo desenvolvido uma obra multifacetada, avessa às especializações do trabalho sociológico que aprisionam o conhecimento em estritas barreiras alfandegárias, impedindo a circulação e o diálogo entre as várias dimensões da pesquisa. Encontramos, por isso, na sua vasta obra, essa preocupação de percorrer os domínios que, num dado momento da sua trajetória, mais lhe interessaram. Desde logo, interessou-lhe a centralidade dos fenómenos simbólicos na estruturação dos espaços e das relações sociais. Nas suas incursões no domínio da Sociologia da Cultura aborda quer as clássicas questões da ritualização da vida quotidiana, impregnada de representações e tessituras de sentido, quer as relações entre ética e estética quer, ainda, os processos identitários e as dinâmicas de mudança social na modernidade. Sendo verdade que a matriz do autor o levava primordialmente ao exercício ensaístico (numa escrita concisa, enxuta, atualizada por uma miríade de ecléticas referências que buscava incessantemente), várias vezes trilhou os caminhos da observação empírica. Relembramos o inquérito às práticas culturais dos estudantes do ensino superior no Porto, que coordenou a pedido da Porto 2001, Capital Europeia da Cultura. Marcantes são igualmente os seus estudos sobre Sociologia das Religiões, dando conta do papel das práticas e representações religiosas num mundo crescentemente secularizado, das recomposições na relação clero/laicado, dos processos de socialização religiosa, das relações entre Estado e Igreja, ou, ainda, em nova incursão empírica, indagando sobre os universos simbólicos da prática dominical, cujo levantamento exaustivo coordenou para a Diocese do Porto no início deste século. Especialmente originais seriam as suas incursões no estudo, através de lentes sociológicas, do fenómeno de Fátima e dos confrontos político-ideológicos construídos em torno deste. Particularmente influentes, desde logo, para sucessivas gerações de estudantes, foram os seus escritos sobre Sociologia Política, onde pôde circunscrever tanto aspetos fundadores do raciocínio sociológico sobre os fenómenos do poder na vida social como estabelecer coordenadas precisas para o desenvolvimento do conhecimento sociológico sobre a ação do Estado e das relações estabelecidas com este por partidos, sindicatos, movimentos sociais, classes sociais, etc. Tais incursões foram sendo complementadas por leituras específicas sobre as contradições vividas pelo funcionamento democrático das sociedades contemporâneas, ou por análises de pendor socio-histórico sobre os fundamentos do federalismo em Portugal. Ao interesse colocado no conhecimento dos fenómenos políticos, António Teixeira Fernandes, a partir de uma matriz racionalista, acrescentou também um esforço sistemático de definição das implicações epistemológicas da análise sociológica e de apuramento dos dispositivos conceptuais ao alcance da Teoria Sociológica, que foi acompanhando pela elaboração de pequenas biografias intelectuais de nomes maiores da disciplina, como Émile Durkheim, Max Weber ou Georg Simmel. Construtor de instituições científicas, docente, sociólogo empenhado, curioso e erudito, que soube combinar, de modo singular, interesses e saberes, António Teixeira Fernandes deixa- nos uma obra densa, com implicações que merecem a atenção da comunidade sociológica. Empenhado no presente e no futuro da instituição que o recebeu e que também soube construir, legou à Universidade do Porto a sua magnífica biblioteca. Aos lermos os seus livros e ao consultarmos a sua biblioteca, recuperaremos, seguramente, o seu espírito analítico incisivo e, nas entrelinhas e nas suas escolhas de leitura, quem sabe, o seu gosto pela vida e por uma boa conversa, ou o refinado sentido de humor. Em todo o caso, sentiremos, sempre, a sua falta.

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