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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.44  Porto dez. 2022  Epub 30-Mar-2023

https://doi.org/10.21747/08723419/soc44a2 

Artigos originais

Escola pública em Democracia. Para quê?

École publique en Démocratie. Pour quoi faire?

La escuela pública en democracia. ¿Para qué?

Public School in Democracy. What for?

Cristina Gomes da Silva11 

1Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal


RESUMO

Qual é o papel da escola pública na sociedade democrática? A discussão sobre a escola pública na atual sociedade democrática inscreve-se em várias frentes registando-se alguma dificuldade na atualização do seu perfil de acordo com as novas exigências a que tem sido submetida. A sua missão, que já não se resume à tríade ler, escrever e contar, nem a um conjunto de aprendizagens profissionais diretamente relacionadas com o mundo do trabalho, passa também por formar cidadãos participativos, informados, competentes, solidários e responsáveis individuais pelo interesse e bem coletivos.

Palavras-chave: Educação; Escola Pública; Democracia; Cidadania; Formação de Professores

RÉSUMÉ

Quelle est le rôle de l'école publique dans une société démocratique ? Le débat sur l'école publique dans la société démocratique actuelle s'inscrit sur plusieurs fronts et il est difficile d'actualiser son profil en fonction des nouvelles exigences auxquelles elle est soumise. Sa mission, qui ne se limite plus à la triade lire, écrire et compter, ni à un ensemble d'apprentissages professionnels directement liés au monde du travail, est aussi de former des citoyens participatifs, informés, compétents, solidaires et individuellement responsables de l'intérêt et du bien collectifs.

Mots-clés: École Publique; Démocratie; Citoyenneté; Formation d’Enseignants

RESUMEN

¿Cuál es el papel de la escuela pública en una sociedad democrática? La discusión sobre la escuela pública en la actual sociedad democrática se inscribe en varios frentes y existe cierta dificultad para actualizar su perfil en función de las nuevas exigencias a las que se ha visto sometida. Su misión, que ya no se limita a la tríada de leer, escribir y contar, ni a un conjunto de aprendizajes profesionales directamente relacionados con el mundo del trabajo, es también formar ciudadanos participativos, informados, competentes, solidarios e individualmente responsables del interés y el bien colectivos.

Palabras clave: Educación; Escuela Publica; Democracia; Ciudadania; Formación de Profesores

ABSTRACT

What is the place and the role of the public school in a democratic society? The discussion about the public school in the current democratic society is inscribed in several fronts and there is some difficulty in updating its profile according to the new demands to which it has been submitted. Its mission, which is no longer limited to the triad of reading, writing, and counting, nor to a set of professional learning directly related to the world of work, is also to train participatory citizens, informed, competent, supportive and individually responsible for the collective interest and good.

Keywords: Education; Public School; Democracy; Citizenship; Teachers Training

Introdução

Retomo, neste artigo, uma reflexão antiga sobre o papel e estatuto da escola pública na sociedade democrática. O ponto de partida foi o projeto Cidadania, Autoridade e Integração (Bettencourt et al., 2005)3 que consistiu num processo de investigação-ação desenvolvido num período (2002) marcado por diversas polémicas em torno da educação e da qualidade da escola pública, visíveis através de acesos debates nos media, onde a ideia prevalecente dizia respeito à propalada crise da escola pública revelada i) no seu falhanço na formação de cidadãos ativos; ii) na falta de rigor e qualidade das aprendizagens dos alunos; e iii) na perda de autoridade dos professores. O projeto tentou identificar caminhos, através da organização das escolas e da formação de professores, de modo a promover uma melhor integração dos alunos nas escolas situadas em meios sensíveis e, por isso, guetizadas. Entre 2009 e 2014 regressei formalmente a esta problemática num percurso de investigação individual, mas tributário do trabalho coletivo, conducente à obtenção do grau de doutoramento (Silva, 2014) e, depois de seis anos a desempenhar cargos de gestão institucional é tempo de retomar a reflexão e a intervenção educativa. As mudanças sociais e educativas dos últimos anos - no caso de Portugal após 25 de abril de 1974 - levaram a interrogações várias; à dúvida sobre a qualidade das aprendizagens em geral; ao questionamento sobre as competências mobilizáveis no mundo do trabalho; ao papel dos e das profissionais de educação; a afirmações desencantadas sobre a escola em democracia, subsistindo alguma nostalgia que mitifica e pode levar a uma excessiva valorização da escola do passado, a herança falsificada de que fala Tony Judt (2009). Neste artigo, procuro atualizar a discussão sobre a relação entre escola e democracia, trazendo contributos recentes para a reflexão, e revisito, alguns resultados obtidos no trabalho produzido na tese de doutoramento.

Embora a educação para a democracia e a cidadania se organize em torno de conteúdos precisos e constitua um conjunto de aprendizagens cujo contexto privilegiado é a Escola, numa aceção geral, o que aqui defendo é que, por ser da responsabilidade direta do Estado e por ser de acesso universal, em democracia, é a escola pública que deve garantir o desenvolvimento e afirmação destas aprendizagens.

A escola pública em democracia: entre desafios, exigências e incertezas

Cada regime político e cada sistema económico e social, quer uma escola que seja sua, sendo conhecida e reconhecida a importância atribuída à Escola, enquanto veículo, por excelência, de transmissão de valores que se querem a vigorar na sociedade. Dubet et al. (2020) sintetizam bem esta correspondência entre escola e sociedade: “A escola religiosa queria formar homens e mulheres de fé; a escola republicana queira produzir cidadãos autónomos, solidários, ligados à nação e à razão. A escola democrática de massa continua a querer produzir cidadãos virtuosos, mas que também sejam indivíduos singulares, democratas tolerantes, preocupados com os outros e com as suas liberdades pessoais, com vontade e capacidade para participar na vida coletiva” (Dubet et al., 2020:139)4, mas o desafio da escola em democracia é consideravelmente maior do que noutros regimes: tem de formar cidadãos livres, autónomos e responsáveis que, simultaneamente, devem mobilizar competências relativas à participação na vida coletiva e na construção do bem comum. O mais recente relatório da UNESCO (2021), traz um importante contributo para a reflexão sobre o papel da educação no reforço da democracia, propõe um novo contrato social alicerçado nos direitos humanos, nos princípios da não discriminação, da justiça social, do respeito pela vida, pela dignidade humana, pela diversidade cultural, encarando a educação como projeto público e um bem comum da humanidade, considerando a escola como a sua pedra angular. A natureza aberta e plural da democracia pode conduzir a entendimentos que dificultam a apropriação dos valores democráticos e que associam a escola democrática, diversa aberta e plural, a uma suposta falta de rigor quando comparada, com a rigidez da escola tradicional. A vivência democrática, porque munida de menos certezas tidas como absolutas e indiscutíveis, pode provocar um sentimento de insegurança e levar os indivíduos a procurar referências e soluções alicerçadas em seguranças e certezas, à custa do fechamento, em vez da liberdade e da incerteza. Dewey ((1929) (2014)) definiu bem este “sentimento de insegurança que desencadeia uma busca de certezas” (Dewey, 2014:270)5. Também Perrenoud (2002) refere esta dificuldade e identifica o paradoxo da democracia que nos priva “de certezas morais e filosóficas simples, que se poderiam considerar «evidentes». As sociedades integristas ou totalitárias têm menos hesitações quando se trata de se ensinarem, mas a que preço?” (Perrenoud, 2002: 33). Considero particularmente feliz esta ideia segundo a qual as sociedades podem ensinar-se. Por sua vez, Meirieu (2020), nas suas propostas pedagógicas, diz ser necessário garantir processos de aprendizagem que permitam às crianças e aos jovens pensar de maneira autónoma, despertando o interesse pela busca e descoberta e afastando-os da acomodação que uma educação mais doutrinária e fechada nas suas certezas pode induzir aprisionando-os na “maldição das certezas” (Meirieu, 2020: 42-43) 6. A escola tem um papel central nesta inquietação fértil e é o cenário da inovação e da inclusão das diferenças, mas exige-se-lhe alguns requisitos. Há convergências em torno de alguns deles e o desenvolvimento de uma cultura científica é um deles. Perrenoud (2002) defende “uma cultura científica e não a acumulação de conhecimentos parcelares e o desenvolvimento de uma ética da discussão, mais do que uma submissão à autoridade da ciência ou do mestre” e “(…) um trabalho mais intenso e constante sobre os valores, as representações e os conhecimentos que sustentam a democracia e qualquer contrato social”(2002: 15-16); Dubet et al. (2020) também apontam soluções neste sentido quando, a propósito das várias inseguranças vividas nas sociedades atuais, afirmam que a confiança que a escola pode transmitir em relação à ciência é extensível à vida democrática porque mobiliza argumentação racional na resolução de conflitos e consolida o reconhecimento e a partilha de factos objetivos e não apenas de opiniões. Para além disto Meirieu (2020) propõe que os professores disponham de condições para ajudarem os alunos a posicionarem-se no coletivo sem perderem identidade e a verem na incerteza uma inquietação positiva na busca do conhecimento, condição, segundo o autor, para passar de um pensamento cativo a um pensamento crítico. Talvez parte da desconfiança em relação à escola encontre algum fundamento nesta oposição entre certeza e incerteza, entre o conforto da opinião e o desconforto da procura, mas entre certezas totalitárias e incertezas democráticas a escola não pode ficar refém de um movimento que pode conduzir ao seu fechamento, contrário à sua missão de questionamento da realidade e de abertura ao mundo. A escola é o centro de desenvolvimento de competências que associam predisposições individuais e interesse coletivo através da criação de situações de aprendizagem colaborativa em que se revelam as dificuldades e os contributos de cada um. Meirieu (2020), revisitando alguns dos fundadores da pedagogia defende que a aprendizagem feita em sede escolar é transferível para a vida em sociedade e que em democracia é preciso contar com todos os cidadãos em plena igualdade de direitos, no respeito pela diversidade vivida na escola e na sociedade. Em momentos e contextos histórico-sociais diferentes, estes autores sugerem procedimentos baseados no desenvolvimento e apropriação de instrumentos que permitam o questionamento constante; a apropriação de uma cultura científica dentro da escola; e a discussão dentro das regras de convivência democrática, por oposição à escola tradicional, transmissiva, fechada, hierárquica e estática. Revejo-me nesta abordagem e acrescento que, por garantir o acesso universal, é na escola pública que essa aprendizagem se faz, num exercício quotidiano em que os professores estão conscientes do seu primordial papel de orientadores num processo contínuo de aprendizagem. Estas considerações colocam a escola pública no centro de uma discussão pouco ou nada apaziguada, mas reveladora da sua importância na sociedade democrática, justamente por ser o instrumento mais importante e necessário de democratização da educação.

Sucesso escolar e democracia

O grande movimento de democratização e massificação, iniciado nos anos 60’ em alguns países da Europa ocidental, questionou uma escola que não era para todos. Portugal não fugiu a esta regra tendo o processo de massificação coincidido com o processo de democratização da sociedade e das suas instituições no período pós-25 de abril de 1974. As exigências colocadas a uma escola fechada - em que o acesso não é universal e o insucesso escolar é elevado e determinado em parte pela origem social dos alunos; a ambição é limitada e a preocupação maior é fornecer conhecimentos instrumentais básicos e próximos das necessidades de uma economia pobre e sem grandes desafios coletivos ou individuais - são radicalmente diferentes das que se colocam a uma escola aberta ao mundo, cosmopolita, inclusiva e atenta à diversidade de públicos que a frequentam; promotora de estratégias pedagógicas que democratizem o sucesso escolar, emancipando os indivíduos através do saber; produtora de conhecimentos e competências necessários ao bom desempenho profissional de acordo com as exigências do mundo do trabalho atual e formadora de cidadãos capazes de participar de modo constante e consciente na construção e manutenção da sociedade democrática. Destaco nesta discussão a importância da escola pública enquanto promotora e garante da democratização da educação e, a mais longo termo, da sociedade, sabendo que nas sociedades escolarizadas continua a ser valioso e incontornável o veredicto da escola sobre o valor social e profissional dos indivíduos, não sendo negociável o aumento dos níveis de escolaridade das populações. Dubet et al. (2020) assinalaram mesmo a existência de uma relação forte entre nível de instrução, a adesão aos valores democráticos e confiança na ciência e nas instituições, mas alertam para um efeito distinto sobre os “vencedores da massificação e os vencidos da massificação” Dubet et al. (2020)7. Estes últimos aderem menos, ou rejeitam aos valores da escola e podem assumir idêntica postura em relação à democracia. Estes autores afirmam mesmo que o “separatismo escolar” pode vir a reforçar o que eles chamam “separatismo social, cultural e político” (Dubet et al., 2020:141)8, fazendo das desigualdades escolares uma peça importante no tabuleiro democrático. Ou seja, aquilo que se constitui como um elementar direito de justiça social - a igualdade perante a apropriação do conhecimento dentro da escola - ganha assim um papel fundamental na construção da democracia. Na linha de valorização do sucesso escolar está também o trabalho de Merle (2005) ao referir que, mesmo que os professores já não se socorram dos tradicionais métodos para castigar os “maus alunos” induzem sentimentos de humilhação entre aqueles que não conseguem atingir os objetivos fixados. As notas e a retenção são castigos não imediatos, mas indutores de humilhação para os alunos. Entretanto, a meritocracia fez o seu caminho e permitiu que se desenvolvesse e instalasse a convicção individualmente alimentada e socialmente partilhada de que a responsabilidade por um percurso escolar e profissional bem-sucedido repousa quase exclusivamente no esforço e capacidades individuais, dificultando durante muito tempo o questionamento sobre o funcionamento do sistema educativo e dos seus mecanismos (muitas vezes não explícitos) de seleção escolar com efeitos posteriores na seleção social e no mundo do trabalho. Na sua obra mais recente, Sandel (2020) aborda estas questões e é dele a ideia de que meritocracia premeia os vencedores e castiga os perdedores, sem que sejam inteiramente compreensíveis e apropriáveis os mecanismos que produzem uns e outros. Esta é uma questão clássica da sociologia da educação abordada por numerosos estudos e autores. Bourdieu e Passeron (1971; 1985) desenvolveram um trabalho paradigmático de identificação e denúncia dos efeitos perversos da democratização do acesso à escola, quando associados ao reforço da reprodução social, nomeadamente, através da ação continuada da educação massificada e igual para todos.

O igualitarismo ganhou à equidade

A “tentação igualitária”, a cedência excessiva ao igualitarismo e a assunção de que só com métodos e conteúdos iguais se promoveria a igualdade criaram o problema: a escola igual para todos e não equitativa. O combate à exclusão dentro da escola deve ser feito através de estratégias de diferenciação pedagógica; de percursos alternativos, mas igualmente valorizados e da requalificação dos professores. O abandono escolar precoce constitui a etapa final de um processo de insucessos repetidos e tidos como irremediáveis e irrecuperáveis. Para os alunos, antes de ser físico, visível e estatisticamente mensurável, o abandono escolar é psicológico e sinal de um processo de não apropriação dos códigos da escola, mas também é sinal de resistência, visto que só muito tempo depois de se revelarem as primeiras dificuldades se regista a quase “confissão”, abandonando, de que não se é capaz. Partindo do princípio de que a relação pedagógica é interativa até que ponto a escola não os abandonou primeiro? A mobilização de estratégias de ensino uniformes dirigidas a públicos diversos e em que só alguns aprendem, sem que durante muito tempo os resultados tenham provocado grandes sobressaltos, é tudo menos simples. A realidade complexificou-se pelo progressivo alargamento e inclusão da diversidade levando para a escola públicos que, num passado não muito distante, estavam afastados do contexto escolar. É necessário garantir condições de acesso à educação e respostas diferenciadas à diversidade social, étnica, linguística, de saúde física e mental, cumprindo o princípio de educabilidade universal através de uma educação inclusiva. Ou seja, para além de democratizar e massificar o acesso é necessário democratizar e massificar o sucesso, sob pena de uma parte significativa de jovens marcados pelo insucesso escolar vir a engrossar as fileiras dos descontentes com tudo, começando na escola e acabando na sociedade. Dito isto não podemos deixar de assinalar o que tem sido feito quer ao nível macro das políticas educativas, quer ao nível meso e micro do trabalho nas escolas e na sala de aula. A criação de instrumentos legais que facilitam a introdução de práticas diferenciadas nas escolas, a criação de planos nacionais de formação de professores em matérias específicas, a explicitação do problema do insucesso em termos sociais e já não meramente individuais, são ações que têm contribuído de forma decisiva para uma alteração do panorama, embora não possamos ignorar os números que ainda prevalecem.

Quadro 1 Fonte: Pordata https://www.pordata.pt/subtema/portugal/alunos+do+ensino+nao+superior-75 

Ao longo das últimas duas décadas os resultados visíveis através das taxas de retenção e desistência no ensino básico e no ensino secundário apresentam uma tendência decrescente que, embora com oscilações, se tem mantido constante.

Escola pública e formação de cidadãos

E como posicionar a escola na tarefa de formar cidadãos?

Não há unanimidade em torno desta dimensão do mandato da escola. Alguns autores, numa visão crítica, recusam a dimensão salvífica do papel da escola através da formação de cidadãos. Carvalho et al. (2005) consideram mesmo haver um risco de desilusão devido ao investimento feito na Educação para a Cidadania “como se da sua concretização dependesse a salvação da sociedade” Carvalho et al. (2005:5); Menezes (2005) considera que a própria escolarização constitui já um contexto de aprendizagem da cidadania, embora reconheça que num país como Portugal a existência da educação para a cidadania se justifica e assenta essencialmente na “fragilidade (do país) em termos de cultura política” (2005:19). Não partilho inteiramente desta posição, porque retirar esta responsabilidade à escola representaria uma atitude demissionária e pouco consentânea com o seu papel na construção da sociedade. É necessário discutir e consensualizar o entendimento/redefinição do seu mandato e criar condições para que seja efetiva a associação entre escola pública-democracia-formação de cidadãos-qualidade do ensino e das aprendizagens. Posição distinta, da qual estou mais próxima, é a de Schnapper ao defender que “A Escola deve dar a todos as capacidades necessárias para participar efetivamente na vida pública. A Escola é sem dúvida a instituição da cidadania por excelência. (…) a ideia de que cada cidadão deve poder exercer concretamente os seus direitos está ligada à democracia moderna” (Schnapper, 2000:154)9. Esta assunção coloca-nos perante uma proposta pedagógica, programática e ideológica. E poderá ser de outro modo? Não! Ser cidadão numa sociedade democrática exige competências diferentes das que são exigidas aos indivíduos que vivem em sociedades fechadas e autoritárias. A autonomia de pensamento e ação, a capacidade de reflexão, a disponibilidade para agir e participar, a capacidade para decifrar os códigos democráticos da participação na vida pública são dimensões da educação que fazem parte do “caderno de encargos” da escola pública democrática. Mas o atual desígnio da escola democrática não é assumido sem interrogações nem perplexidades: vivemos numa sociedade diversa e plural, constituída por indivíduos autónomos e cidadãos críticos, mas comprometidos com o bem comum e o interesse coletivo que fundam sociedades coesas e solidárias. A síntese entre liberdade individual e compromisso coletivo. Mas como? Do ponto de vista pedagógico são necessárias abordagens diferentes: maior flexibilidade de procedimentos e diversidade de práticas pedagógicas; transformação dos processos de ensino- aprendizagem em que se aprende fazendo e os alunos são corresponsáveis pelas suas aprendizagens; reconfiguração do paradigma de autoridade, que deixa de estar centrada no professor para ser exercida pela comunidade de aprendizagem de acordo com as responsabilidades e competências de cada um; mudança de paradigma das aprendizagens dos alunos, passando da simples aquisição de conhecimentos ao desenvolvimento de competências; assunção, por parte da escola, de um papel preponderante na formação de cidadãos capazes de intervir consciente e criticamente na sociedade em que vivem.

Educar para a cidadania ou desenvolver uma educação de cidadãos?

Nesta dupla vertente formação/informação, surge outra questão: deve a escola educar para a cidadania, como se se tratasse de mais um conteúdo curricular ou promover uma educação cidadã, na medida em que se socorre de métodos e estratégias que no quotidiano ajudam os alunos a assumir-se como cidadãos seja em que contexto for? Como se promove a apropriação, por parte dos alunos, de princípios gerais que regem e consolidam a vida coletiva onde se alicerça a democracia e, simultaneamente, respeita a diversidade e equivale diferentes formas de estar e outras mundivisões? Como formar cidadãos que contribuam para um mesmo coletivo carregando conceções, muitas vezes, muito distintas? Podemos apostar na boa convivência entre as diferenças considerando que a democracia vive novas formas e que a participação ativa dos cidadãos é o caminho para a democracia participativa em detrimento da representativa ou pensar que a democracia corre riscos quando valoriza do mesmo modo as diferenças em presença na sociedade. Esta polarização só reforça a ideia de que a aprendizagem da cidadania deve estar associada à democracia e quanto mais comuns forem os contextos onde acontece essa aprendizagem e a apropriação de significados partilhados, mais fácil será a promoção de condições favoráveis à disponibilidade dos cidadãos para a reflexão e ação comuns. Uma maior consciência sobre os papéis individuais na construção da sociedade democrática pode promover uma participação que garanta e proteja a democracia enquanto regime. Mas o que significa educar e promover a cidadania nas sociedades democráticas? Sabemos que, embora seja mais fácil alimentar aquilo a que Perrenoud chama “o sonho de uma cidadania livremente assumida, sem doutrinação” (2002:28), dificilmente os cidadãos conseguirão contribuir para um projeto social de forma constante e consciente sem lhe conhecerem os fundamentos. A adesão aos valores democráticos, ou outros, não se faz de modo espontâneo, nascer em democracia não implica ser-se democrata: a escola é indispensável neste processo por ser o contexto ideal para os aprender, através de conteúdos e práticas pedagógicas intencionalmente dirigidas, porque a escola pública em democracia é uma instituição comprometida com esse mesmo regime. A título de exemplo, no relatório da UNESCO de 2021, defende-se uma revalorização, nas opções curriculares, de disciplinas como a Filosofia, a História, a Literatura e as Artes enquanto instrumentos de pensamento e questionamento crítico, de empatia e de imaginação UNESCO (2021:87). Assim, para além das práticas pedagógicas favoráveis ao desenvolvimento de competências cidadãs, os curricula escolares são essenciais para estabelecer uma nova relação entre educação, conhecimentos, capacidades e valores democráticos UNESCO (2021). O trabalho de Nussbaum (2019) vai também neste sentido, ao defender a maior presença das áreas das Humanidades nos curricula educativos, de modo a fomentar o conhecimento das regras de vida em Democracia.

A aprendizagem da cidadania em Portugal: instrumentos de política educativa

A democratização do acesso ao ensino e o aumento do período de escolaridade obrigatória após o 25 de abril de 1974 tinham, entre outros, o objetivo de fornecer a todos os indivíduos um denominador cultural comum. O desenvolvimento de competências no domínio da cidadania e da cultura democrática tem sido, desde a transição para o regime democrático, uma preocupação manifestada quer ao nível político, quer ao nível educativo e teve, nas alterações curriculares introduzidas por Rui Grácio em 1975, conducentes à unificação do ensino fundindo liceus e escolas técnicas, um dos seus momentos maiores. De cariz marcadamente ideológico, esta medida política teve uma tradução curricular/pedagógica com a criação de três áreas: Educação Cívica e Politécnica, Ciências Sociais e Ciências do Ambiente. No entanto, o período de “normalização”, como lhe chamou Stoer (1986), iniciado com o 25 de novembro de 1975, trouxe a esta inovação curricular algumas alterações no edifício original do Ensino Unificado. Disso deu conta o próprio Grácio: “com o desvirtuamento de objectivos essenciais e o ostracismo, até a eliminação, de áreas curriculares como a Educação Cívica e Politécnica, as Ciências Sociais, as Ciências do Ambiente, refreou-se a abertura da escola à realidade social próxima, ou remota, (…) a submeter a uma análise e a uma problematização crítica que dela fizesse não apenas um objecto de conhecimento mas também de transformação; e refreou-se o conhecimento do trabalho dos homens e das técnicas na sua relação com relações sociais hierarquizadas” (Grácio, 1995:545). O objetivo era também “diferir o momento das opções escolares e profissionais; romper com uma dualidade na estrutura do Ensino, correlativa da dualidade trabalho intelectual/trabalho manual, da dualidade dominante/dominado; romper com a dualidade escola/comunidade, educação formal/educação não formal” (Grácio, 1995:545), formando cidadãos democratas que iam ajudar a construir a nova sociedade, numa intenção política explícita e dirigida à escola. Posteriormente encontramos esta preocupação em dois documentos estruturantes da vida nacional e da educação: a Constituição da República Portuguesa (1976), que institui o regime democrático no País e determina que “o Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para “(…) a participação democrática na vida coletiva” CRP (1976); e a Lei de Bases do Sistema Educativo (1986), que estrutura o edifício do sistema educativo português e determina que este se organiza de forma a: “contribuir para desenvolver o espírito e a prática democrática, através da adoção de estruturas e processos participativos na definição da política educativa, na administração e gestão do sistema escolar e na experiência pedagógica quotidiana, em que se integram todos os intervenientes no processo educativo, em especial os alunos, os docentes e as famílias” LBSE (1986, Artigo 3º). A Reforma do Sistema Educativo (1989), confirma estes objetivos tendo tido como resultado prático a área curricular de Formação Pessoal e Social e da disciplina Desenvolvimento Pessoal e Social. Com mais ou menos insistência nestas questões em sede curricular do ensino obrigatório chegamos à história recente com a criação, em 2017, do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PASEO) e da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC). Em 2018 as alterações curriculares dos ensinos básico e secundário são fixadas no Decreto-Lei n.º 55/2018 de 6 de julho. No centro do PASEO, que visa a criação de um quadro de referência e enuncia os princípios fundamentais em que assenta uma educação que se quer inclusiva, democrática, e alicerçada no conhecimento científico, estão cinco valores que, sendo valores educativos, são também valores sociais e democráticos: Responsabilidade e integridade; Excelência e padrões elevados; Curiosidade, reflexão e inovação; Cidadania e participação; Liberdade, (PASEO, 2017). A ENEC é um dos instrumentos de concretização destes valores, tendo como objetivo principal afirmar “um conjunto de direitos e deveres que devem estar presentes na formação cidadã das crianças e dos jovens portugueses, para que no futuro sejam adultos e adultas com uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos Direitos Humanos e a valorização de conceitos e valores de cidadania democrática, no quadro do sistema educativo, da autonomia das escolas e dos documentos curriculares em vigor.” (ENEC, 2017:1). A introdução da área curricular de Cidadania e Desenvolvimento operacionaliza os objetivos da ENEC e é assumida como um “como um espaço curricular privilegiado para o desenvolvimento de aprendizagens com impacto tridimensional na atitude cívica individual, no relacionamento interpessoal e no relacionamento social e intercultural (ENEC;2017:3), sendo desenvolvida nas escolas de modo diferenciado em cada ciclo de ensino: “transdisciplinar no 1.º ciclo do ensino básico; como disciplina autónoma nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e como componente do currículo desenvolvida transversalmente com o contributo de todas as disciplinas e componentes de formação no ensino secundário” (ENEC, 2017:3). Esta área curricular também está presente nas vias profissionalizantes. No entanto, parece-me ser de evitar o risco de uma acomodação excessiva à forma escolar, mais ou menos transmissiva, tornando-a mais uma disciplina curricular sem grande efeito real e pouco interessante para alunos e professores. A metodologia de trabalho de projeto poderá ter aqui um lugar importante e existem já vários projetos que tentam dar corpo a este desígnio10. Estes dois documentos constituem a referência atual para a orientação nacional relativa à formação para a cidadania e à aprendizagem dos valores inerentes a uma cultura democrática em sede escolar. Apesar das interrogações julgo poder afirmar que ensinar valores comuns, neste caso democráticos, e desenvolver estratégias de partilha e defesa desses mesmos valores fazem parte integrante do mandato da atual escola pública em Portugal e reforçam o estatuto da educação enquanto elemento de desenvolvimento e coesão social.

Formação inicial de professores e aprendizagem da democracia e da cidadania

Discuti até aqui a necessidade de aprender a cidadania e a democracia dentro da escola pública, mas, porque não nos tornamos cidadãos democratas de modo espontâneo, é necessário assegurar a socialização das gerações mais jovens na cultura política democrática. Para tal exige-se professores bem formados de acordo com os princípios democráticos, sendo necessário rever os curricula da formação inicial de professores e trazer para os contextos de formação estes conteúdos de modo a podermos contar com os professores enquanto agentes da Democracia e promotores da Cidadania. Em Portugal, os constrangimentos impostos pelos normativos legais que enquadram a formação inicial de professores e educadores e atribuem pesos específicos às várias componentes de formação tornam difícil esta inclusão. No trabalho desenvolvido para a tese de doutoramento, Sequeira (2017) demonstrou que no corpo legislativo que rege a formação inicial de educadores e professores não existe de maneira explícita uma preocupação com estas questões, deixando às instituições de formação a liberdade para o fazer ou não, mas é necessário o desenvolvimento de competências que façam dos professores exemplos de abertura ao mundo e à diversidade, que não se limitam aos saberes técnicos, mas que produzem conhecimentos partilhando-os ativamente com os seus alunos. Como é sublinhado em UNESCO (2021), ao atribuir aos professores um papel determinante, e não substituível por qualquer tecnologia, no novo contrato social para a educação: “o de coordenador, reunindo diferentes elementos e ambientes, no quadro de um trabalho colaborativo que permite a quem aprende desenvolver as suas competências e aptidões” UNESCO (2021:169).11 Recomendações de outras instituições internacionais vão também neste sentido, como é o caso do Conselho da Europa, onde na conferência realizada em junho de 2017 e subordinada ao tema Aprendendo a viver em conjunto: um compromisso partilhado com a Democracia, se recomendou a cada país membro que incluísse estas temáticas de modo claro e sistemático nos curricula de formação de nível superior, com um sublinhado particular na formação de professores e educadores (CE, 2017).

A escola pública e os seus agentes: dados de um estudo

Darei agora conta de alguns resultados do trabalho desenvolvido com vista à obtenção do Doutoramento. Nele pretendi destacar a importância das lideranças intermédias enquanto elementos fundamentais no estabelecimento de modelos organizacionais que respondam às necessidades dos contextos escolares e analisar de que forma estes agentes se apropriam e perspetivam a condição de serem professores em democracia e promotores de cidadania (Silva, 2014). Para isso entrevistei os Diretores de Turma de 7º e 9º anos de escolaridade (início e fim do 3º ciclo), em duas escolas das periferias de Lisboa e Setúbal, num total de 25 entrevistas. Assumi até aqui que a escola pública é o “centro de treino” e experimentação da cidadania democrática e que, para além de opções políticas, curriculares e pedagógicas, é necessário ter agentes que façam esse trabalho quotidianamente através de práticas de aquisição e desenvolvimento de competências cidadãs. Esses agentes são os professores! Condição necessária: que estejam conscientes do seu estatuto de especialistas, cujo trabalho dá sentido à instituição educativa, e que não se demitam do seu papel enquanto agentes da democracia. Sendo certo que o seu profissionalismo se tem construído mais em torno de conteúdos científicos e de didáticas do ensino das várias disciplinas, do que de estratégias de transmissão e vivência de valores e princípios democráticos, não tenho certezas relativamente à consciência que os professores têm da diferença entre ser professor em democracia e ser professor num regime autoritário, mas gostava de pensar que em democracia os professores perfilham uma ética humanista, democrática e inclusiva e que conscientemente se assumem como motores da inovação pedagógica, relativa a processos de aprendizagem mais participados; que valorizam o trabalho colaborativo; que a competição não é um valor; que os alunos se apropriam do conhecimento de modo mais perene e com mais sentido; que são agentes de transformação social. Mas, se os professores não se pensam, e ao seu papel na sociedade, de forma crítica, dificilmente estarão aptos a promover a mudança e a garantir que a escola pública é capaz de defender e manter os princípios, valores e práticas democráticas.

Democracia sim, mas…

Comecei por querer saber o que entendiam por Democracia e optei por uma questão aberta. Em ambas as escolas prevalecem respostas em torno da ideia de que a democracia é, para além de um princípio a defender, o melhor dos regimes políticos por ser aquele que permite liberdade, diversidade e respeito pelos outros, exigindo, para que tudo isto aconteça, o exercício da responsabilidade individual. Ainda que, outras posições, minoritárias, denotem reservas quando, por exemplo, é dito que “a ideia é boa, mas as práticas não e que o regime não importa desde que quem governa saiba fazê-lo”. São respostas que expressam a adesão ao regime, mas desconfiando dos partidos e dos políticos - ideia paradoxal porque a democracia, pelo menos a representativa, não vive sem partidos nem políticos. Estas respostas revelam também algum alinhamento dos discursos dos professores com a "voz social" do senso comum, quando seria esperado que, enquanto especialistas em educação divergissem desta conceção. Estaremos perante uma deficiente apropriação das regras e mecanismos da democracia representativa? Talvez! Daí que reforce a ideia da necessidade de apostar na formação nestes domínios.

Escola pública, igualdade de oportunidades, promoção da inclusão e formação de cidadãos

Um outro objetivo foi saber qual a importância atribuída à escola pública na sociedade democrática. Ela é vista, sobretudo, como um serviço universal que promove a igualdade de oportunidades e a inclusão social, associando um ensino de qualidade à promoção da inclusão - não deixar ninguém para trás sem abrandar o nível de exigência. A pertinência da ideia de que a qualidade das aprendizagens seria (não será sempre?) essencial na promoção da inclusão escolar e, posteriormente, elemento facilitador da inclusão social e profissional aumenta em contextos de educação massificada com públicos diferenciados que precisam de respostas igualmente diferenciadas. Elementos fundamentais da escola pública e da democracia, a pluralidade e a diversidade, são fatores de riqueza e valorização da vida coletiva. Uma outra ideia, que ganha aqui alguma evidência, associa o papel da escola pública ao reforço da democracia, através da aprendizagem de regras de convivência social que conduz os alunos para um patamar mais amplo tornando-a uma escola de vida. Em síntese, as aprendizagens realizadas na escola pública - por ser para todos - são um instrumento de construção e manutenção da democracia, sendo a formação obtida na escola indispensável à compreensão do lugar dos alunos na sociedade enquanto cidadãos. Há nestes testemunhos o reconhecimento do papel da escola enquanto contexto/instrumento de transformação social que passa pela formação de cidadãos capazes de darem continuidade ao projeto democrático.

Em ambas as escolas, é forte a consciência sobre o papel que a escola pública desempenha em democracia porque, enquanto sustentáculo do regime democrático, só poderá cumprir a sua função se incluir na sua atividade a promoção dos valores e práticas de democracia e participação cidadã.

Cidadania, condição da vida coletiva

Se a escola pública na sociedade democrática sustenta essa mesma sociedade e é constituída por cidadãos conscientes dos seus papéis, direitos e deveres, de que modo estes atores cujo palco profissional é a escola pública, entendem a cidadania? Os conteúdos dos discursos fixaram-se em torno de três categorias: Relacional/Sociabilidade - regras de comportamento e relação com os outros - Intelectual - o dever de estar informado - Prática - intervir e participar e a maioria das respostas remetem para uma cidadania que releva de uma ética comportamental na “boa” relação com os outros. Adjetivos como bondade, solidariedade, generosidade, honestidade e respeito, pautam o discurso destes entrevistados, fazendo da categoria relacional e de sociabilidade a mais frequente. Uma outra definição refere-se ao direito a ter voz, essencial em democracia, expressa não só nos momentos pré-definidos do sufrágio, mas também no quotidiano, nos movimentos sociais menos orgânicos que emergem cada vez com mais frequência na sociedade, nos contextos laborais ou no bairro. A aprendizagem da cidadania insere-se, assim, numa aceção mais ampla que não inclui só aprendizagens instrumentais individuais, mas também aprendizagens sociais. Resultados que podem ser interpretados à luz dos trabalhos de Schnapper (2000) e Vincent (2004) quando referem que um cidadão, nas modernas sociedades democráticas, tem de ter acesso ao conhecimento/informação, o que faz de si um cidadão consciente, ativo e interveniente na sociedade em que vive e que esse conhecimento (dos direitos e dos deveres) é transmitido em sede escolar, uma vez que a educação é nuclear na construção do projeto democrático. Assim, a cidadania ativa implica: busca de informação; consciência crítica; autonomia de pensamento; envolvimento na vida social e compromisso com o bem comum e o interesse coletivo.

Conclusão: a escola pública está no centro, mas não é suficiente

A escola pública é fulcral e um dos seus desafios passa por colocar-se ao serviço da democracia, ensinando as regras democráticas, sem doutrinamento, mas assumindo conscientemente que não há educação neutra nem apolítica.

Os diversos discursos dirigidos à escola geram uma sobrecarga de exigências relativamente ao que ela deve ser e fazer na e pela sociedade, mas a escola sozinha não pode fazer tudo, registando- se mesmo divergências entre alguns setores da sociedade e os valores e modos de ação da escola. Perrenoud (2002) assinalou esta dificuldade ao reconhecer que nem sempre a escola é compreendida nos seus propósitos: “(…) Um sistema educativo não pode ser mais virtuoso do que a sociedade que lhe confere a sua legitimidade e os seus recursos.” (2002:13). Não pode, nem é suficiente. Os outros agentes de socialização, nomeadamente as redes sociais e os media, têm um enorme poder sobre os mais jovens e deixam à escola uma bem delimitada margem de influência. Discutir o papel e o mandato da escola pública na atual sociedade democrática implica uma inscrição em várias frentes: políticas educativas inclusivas; opções pedagógicas que facilitem a relação com o Outro e a aprendizagem colaborativa; modelos organizacionais escolares que promovam a interação e a aprendizagem em conjunto; competências que possibilitem a troca de ideias diferentes; de mobilização de conhecimentos científicos; afirmação de valores democráticos e humanistas. Importa ainda realçar o seu papel na promoção e garantia da democratização da escolarização, e a mais longo termo da sociedade. Mas este trabalho não pode ser feito sem orientação e intencionalidade, daí que, tal como noutros regimes políticos, a escola pública em democracia tenha de ter um ‘roteiro’ pedagógico- ideológico da vida democrática, porque se não se ensinar, nomeadamente através da escola, a sociedade democrática enfraquece (Perrenoud, 2002). Em Portugal, os curricula da escolaridade obrigatória já contemplam estes conteúdos numa perspetiva pluridimensional: ideológica, política e pedagógica, mas o processo de ensino- aprendizagem da cidadania precisa que os professores tenham consciência do seu papel e da relação entre educação e democracia. A formação inicial e contínua de professores são instrumentos indispensáveis na apropriação de conhecimentos e competências nestes domínios

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Notas

3BETTENCOURT, Ana Maria (coord.) (2005), Cidadania, Autoridade e Integração. Análise de Discursos e de Práticas em Sede Escolar, ESE/IED/FCG, relatório policopiado. Projeto financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, realizado em colaboração entre a Universidade de Nanterre-Paris, a Escola Superior de Educação de Setúbal e o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento.

4L’école religieuse voulait faire des femmes et des hommes de foi, l’école républicaine voulait faire des citoyens autonomes, solidaires, attachés à la nation et à la raison. L’école démocratique de masse veut toujours faire des citoyens vertueux, mais elle veut aussi produire des individus singuliers, des démocrates tolérants, soucieux des autres et de leurs libertés personnelles, désireux et capables de participer à la vie collective.” (Dubet et al., 2020:139). Tradução da autora (TA)

5sentiment d’insécurité déclenche une quête de certitude Dewey (2014:270). (TA)

6malédiction des certitudes Meirieu (2020: 42-43). (TA)

7vainqueurs de la massification e os vaincus de la massification Dubet et al (2020). TA

8séparatisme scolaire; séparatisme social, culturel et politique Dubet et al (2020:141). TA

9L’école doit donner à tous les capacités nécessaires pour participer réellement à la vie publique. L’École est sans doute l’institution de la citoyenneté par excellence. (…) l’idée que chaque citoyen doit pouvoir exercer concrètement ses droits est liée à la démocratie moderne (Schnapper, 2000:154). (TA)

10Selo de Escola Intercultural (Consult. a 24.10.2022) Disponível em: - https://www.dge.mec.pt/selo- escola-intercultural; Parlamento dos jovens, Consult. a 24.10.2022 Disponível em: https://www.dge.mec.pt/programa-parlamento-dos-jovens; Orçamento participativo das escolas, Consult. a 24.10.2022 Disponível em: http://www.dgeste.mec.pt/ope/

11celui de coordinateur, en rassemblant différents éléments et environnements, dans le cadre d’un travail collaboratif qui permet aux apprenants de développer leurs connaissances et leurs aptitudes UNESCO (2021:169). (TA)

15Funcionando como indicador de crise, como também de resistência à disrupção introduzida, as “transgressões” cometidas simbolizaram uma espécie de contrapoder que se foi acumulando no quotidiano para se voltar a renegociar o seu sentido de ordenamento e reencontrar o equilíbrio.

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