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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.44  Porto dez. 2022  Epub 30-Mar-2023

https://doi.org/10.21747/08723419/soc44a3 

Artigos originais

Narrativas de experiência de vida sobre “a guerra do Ultramar”:práticas discursivas de construção da memória e da representação do corpo

Narratives of life experience about the Portuguese Overseas War:discursive practices of memory construction and the representation of the body

Les récits d'expérience de vie sur la Guerre Portugaise en Outre-Mer :pratiques discursives de la construction de la mémoire et de la représentation du corps

Narrativas de experiencia de vida en torno a la Guerra de Ultramar portuguesa: las prácticas discursivas de construcción de la memoria y de la representación del cuerpo

Maria Inês Coelho22 

Carla Aurélia de Almeida1, 2 1  2 

1Departamento de Humanidades da Universidade Aberta

2Instituto de Sociologia da Universidade do Porto


RESUMO

Partindo-se da análise de um corpus oral de narrativas de vida de soldados portugueses mobilizados para as campanhas militares do “Ultramar” durante os anos de 1969 e de 1974, o presente artigo visa constituir-se como um exercício reflexivo sobre a experiência de guerra, encarada como uma construção coletivamente partilhada. Procura-se perceber, mais em detalhe, não só o lugar do corpo na forma como se apropriou a experiência militar e de guerra, como também verificar quais os efeitos das tensões e deslocações de tais experiências nos antigos combatentes da Guerra Colonial Portuguesa.

Palavras-chave: narrativas de guerra; corpo; práticas discursivas

ABSTRACT

Starting from the analysis of an oral corpus of life narratives of Portuguese soldiers mobilized for the Overseas military campaigns during 1969 and 1974, this article aims to constitute itself as a reflective exercise on the experience of war, seen as a collectively shared construct. We seek to understand not only the place of the body in the way the military and war experience is appropriated, but also to verify the effects of the tensions and displacements of such experiences in the former combatants of the Portuguese Colonial War.

Keywords: war narratives; body; discursive practices

RÉSUMÉ

Partant de l'analyse d'un corpus oral de récits de vie de soldats portugais mobilisés pour les campagnes militaires en Outre-Mer entre 1969 et 1974, cet article vise à se constituer comme un exercice de réflexion sur l'expérience de la guerre, vue comme une construction collectivement partagée. Nous cherchons non seulement à comprendre, plus en détail, la place du corps dans l'appropriation de l'expérience militaire et de guerre, mais aussi à vérifier les effets des tensions et des déplacements de telles expériences chez les anciens combattants de la Guerre Coloniale Portugaise.

Mots-clés : récits de guerre; corps; pratiques discursives

RESUMEN

A partir del análisis de un corpus oral de relatos de vida de soldados portugueses movilizados para las campañas militares en Ultramar durante los años de 1969 y 1974, este artículo pretende constituirse como un ejercicio reflexivo sobre la experiencia de la guerra, vista como un constructo compartido colectivamente. Buscamos comprender, con más detalle, no sólo el lugar del cuerpo en la forma de apropiación de la experiencia militar y bélica, sino también verificar los efectos de las tensiones y desplazamientos de tales experiencias en los excombatientes de la Guerra Colonial Portuguesa.

Palabras claves: narrativas de guerra; cuerpo; prácticas discursivas

Introdução

Em situações de rutura, como é o caso da guerra, onde as confirmações da realidade se tornam mais intensas, coube a um grupo de agentes - produto e produtor de uma parte da história portuguesa contemporânea - a realização de uma das mais decisivas mudanças sociais e políticas jamais registadas em Portugal num espaço de tempo curto. Mobilizados para “a Guerra do Ultramar”, e servindo de alimento à fantasia propagandeada pelo regime do Estado Novo na construção de uma nação pluricontinental e plurirracial, os antigos combatentes viram-se, na verdade, a braços com a negociação de uma transição entre um Império destroçado e frágil e um novo caminho a percorrer de aproximação à Europa (Carrilho, 1985; Castelo, 1998; Ribeiro, 2004; Rosas, 1999). A descrença na resolução dos conflitos fez emergir uma plataforma política de anticolonialismo, antifascismo e antiguerra cada vez mais sonante na sociedade portuguesa, aumentando o questionamento e a contestação à sustentabilidade de uma guerra que era, cada vez mais, um símbolo de maiores despesas económicas e humanas (Guerra, 1994; Loff, 2006). Num esforço reflexivo de diálogo entre a Sociologia e a Sociolinguística e visando estabelecer, nesse sentido, uma relação estreita entre identidade, memória, corpo e experiência de guerra, dificilmente podemos ficar alheios às potencialidades do uso das narrativas no estudo sobre esse grupo social, em especial, na análise das marcas profundas (inclusivamente discursivas) que resultaram da sua participação nas campanhas militares realizadas entre os anos de 1960 e de 1970. Inevitavelmente, existe ou existiu um destes homens em muitas das nossas redes familiares e afetivas. Cientes do carácter altamente disruptor destas vivências, capazes de gerar contradições complexas e de difícil gestão, o presente artigo irá incidir, mais especificamente, na objetivação das disposições e das práticas discursivas de construção da memória e da representação do corpo dos locutores destas narrativas, reconstituindo-se linguisticamente os processos de acumulação ativa das suas experiências em matéria de domesticação e as marcas linguísticas que denotam o “envolvimento conversacional” (Gumperz, 1982) através da análise linguístico-discursiva dos intensificadores e mitigadores do discurso e do uso de lexemas que expressam a emoção na interação.

Narrativas de experiência de vida sobre a guerra: uma perspetiva teórico-metodológica fundada na análise de um corpus oral

Num quadro de pesquisa que tentou aferir o impacto da Guerra Colonial Portuguesa no processo de construção da identidade pessoal, social e cultural dos antigos combatentes12, tomando as suas narrativas como objeto de estudo e considerando as marcas deixadas por uma experiência social que é tida como única, foi possível reavaliar analiticamente a relevância da utilização da narrativa enquanto estratégia metodológica de análise sociológica e sociolinguística, tendo como enfoque a construção dos rumos discursivos realizados em narrativas de experiência de vida (Ochs; Capps, 2001; Schiffrin, 2006), ampliando-se a capacidade de leitura deste fenómeno tendo por base a articulação entre uma perspetiva sociológica e sociopragmática de análise. Aceita-se, em primeiro lugar, o contributo destas perspetivas para o destaque das representações e formas de classificação e categorização dos agentes, dispositivos que, como é sabido, não podem ser independentes das posições ocupadas e das oportunidades encontradas ao longo do tempo e da trajetória. O acesso a um “modelo oficial da apresentação oficial de si” (Bourdieu, 1986: 71) - apresentação pública cuja dimensão de representação impõe determinados constrangimentos e contribui para a criação de um discurso recolhido com implicações na sua forma e no conteúdo - torna revelador o papel de atuação das narrativas de guerra a dois níveis. O primeiro, na estruturação da realidade (revelada e objetivada pelo discurso) e, o segundo, no jogo com determinadas imagens (de si e dos outros). Na construção dos sentidos expressos na narrativa, a descrição sobre si é efetuada pela relação com os outros e, neste caso em concreto, a invocação dos outros, com os quais se detém uma forte identificação em contexto de guerra, tendo uma grande relevância na definição dos papéis a assumir. Com efeito, do ponto de vista linguístico-discursivo, é de notar que, na linha de De Fina (2020), as narrativas constituem práticas discursivas que, em contextos de entrevistas de investigação, resultam de uma co-construção do sentido entre entrevistador e entrevistado (De Fina e Perrino, 2011; Almeida, 2019) e de um modo particular de referenciação, salientando-se a constante referência ao “eu” que constitui o locutor da enunciação e aos diferentes modos de referenciar o Outro que constitui o objeto do discurso narrado (Schiffrin, 2006). Nestes contextos, emergem identidades expressas através da forma como é feita a representação da memória e da experiência vivida (Coelho, 2013). Com efeito, ancorado num contexto social e linguístico particular, o discurso das narrativas conversacionais (Norrick, 2000; Schiffrin, 2006) e, dentro destas, o discurso presente nas narrativas de experiência de vida (Ochs e Capps, 2001) sobre a vivência da guerra (Coelho, 2009, 2011, 2013) permitem demonstrar de que modo é construído um discurso testemunhal através do desenvolvimento de tópicos específicos sobre a experiência da guerra como constructo coletivamente partilhado pelos entrevistados. As narrativas permitem o aumento, em grande medida, da nossa capacidade de localizar os ciclos ou trajetórias de vida dos agentes, tendo presente a necessidade e a importância de analisar a fase da guerra (os seus antecedentes) em correlação com as noções de espaço e de tempo. Estas fazem parte de um contexto e de um quadro de interação/(re)construção relevantes, assegurando a formulação de diferentes tipos de memória e consequentes linguagens. De facto, a restituição das modalidades de (sobre)vivência e de representação acerca da guerra acarreta a (re)construção das respetivas memórias e linguagens. A construção do sentido realizado em narrativas de experiência de vida que irrompem em entrevistas de investigação sobre a experiência da guerra destaca, assim, a dimensão intersubjetiva do discurso, demonstrando as intersecções entre o linguístico e o social e revelando a ancoragem dos fenómenos linguísticos nos contextos de uso, demonstrando-se que estes discursos são fenómenos interativos que resultam da “troca interacional” (Goffman, 1987) realizada entre entrevistador e entrevistado. A perspetiva de análise semântico-pragmática de fenómenos linguístico-discursivos que ocorrem em narrativas de experiência de vida sobre a guerra permite o estudo do “alinhamento dos participantes” (e/ou projeção de segmentos discursivos) e a análise dos “estilos conversacionais” (Tannen, 2005) e das estratégias discursivas específicas (Gumperz, 1982) desenvolvidas pelos interactantes. Com efeito, os participantes acionam um sistema de práticas, de convenções sociais e de regras de procedimento discursivo que não só organizam sequencialmente as interações conversacionais, mas também permitem, como veremos mais adiante, a construção da representação do corpo do combatente “como alvo de domesticação do risco” (Coelho, 2009: 133). Problematizar o lugar das crises e das emoções nos discursos que os antigos combatentes têm acerca da guerra passa, na realidade, por atender também às disposições corporais presentes nos seus enunciados que não são mais do que o resultado (parcial) do significado atribuído às suas experiências do cumprimento do serviço militar e de combate. Suporte privilegiado na constituição identitária (Ruano-Borbalan, 1998: 239), o corpo - e, em especial, o “corpo vivido”, simultaneamente, unidade dinâmica das nossas perceções e emoções e comportamento gestual e linguístico (Foucart, 2003: 182) - constitui, enquanto capital em constante risco (ainda que regularmente domado pela máquina militar), um verdadeiro mediador na relação entre a experiência da guerra e a memória produzida.

O enfoque na descrição-explicação das dimensões centrais da estruturação das narrativas de experiência de vida sobre a guerra permite que se proceda ao levantamento das regularidades discursivas com a própria análise das práticas discursivas de rememoração do corpo realizadas em contexto: podemos detetar, assim, as pistas de contextualização (Gumperz, 1982: 7) que, constituindo-se em instruções de uso, transmitidas através de aspetos verbais e de sinais como os risos, o choro, as onomatopeias que ilustram os sons da guerra (a reprodução dos sons dos tiros - “quando eles estavam a entrar nos botes, tau, tau, tau, tau” - e o som do caminhar nas águas - “as botas cheias de água, chuc, chuc, chuc, secou. E tornar a ir outra vez noutro pântano, chuc, chuc, chuc, secou”), assinalam a atividade de discurso em que os falantes estão empenhados. Integra-se, neste âmbito, um conjunto de sinais de coocorrência, incluindo, entre outros, as fórmulas de discurso, as rotinas sequenciais, a gramática e o léxico que se inscrevem num contexto cultural específico dos combatentes.

Inscrevem-se nestas pistas os mitigadores e intensificadores do discurso que ocorrem em comentários avaliativos, denotando um modo específico de percecionar a experiência vivida através da construção da representação da imagem que os interactantes têm do corpo vivido na guerra. Ao darmos privilégio ao testemunho enquanto meio de objetivação da realidade e de reconstituição do processo de ação, experiências e acontecimentos do passado a destacar, atribuímos identicamente aos sujeitos o papel de produtores ativos de conhecimento. Do ponto de vista metodológico, o presente artigo toma por referência uma recolha de corpus oral de narrativas de experiência de guerra realizada junto de ex-combatentes13. Uma tal recolha teve por base 10 entrevistas semidirectivas que seguiram um guião estruturado em torno de núcleos temáticos divididos analiticamente em fases da própria trajetória dos entrevistados, nomeadamente: a fase pré-guerra (onde se integraram dados sobre a infância/juventude, o tempo vivido na instituição escolar e o percurso laboral); a fase do serviço militar e da guerra (dedicada aos relatos sobre o cumprimento do serviço militar e a vivência da guerra em concreto) e a fase do pós-guerra (que inclui informações sobre o retorno à vida civil e dimensões como trabalho, vida afetiva, entre outras).

2. Compreender as temáticas de “rutura”, sofrimento e disciplina nas práticas discursivas (de rememoração) sobre o corpo

Lendo-a como objeto de construção discursiva e prática, no qual a própria memória se assume como instrumento de legitimação identitária (individual e social) e de controlo temporal (do passado e do presente), a análise da experiência de guerra obriga-nos a reter certas dimensões importantes. Por um lado, enquanto situação de verdadeira rutura, esta experiência (e parte da função de excitação que se lhe encontra associada) apoia-se num forte lado emocional e, por outro lado, sendo altamente sensorial, também é vivida e representada relacionalmente. Daí ser necessário ter presente, nessa leitura, as estratégias (discursivas) específicas de que os agentes fazem uso - o peso das componentes emocional e construtiva, a mobilização de distintos modos de gestão e/ou produção de sobrevivência e o acionamento de disposições de várias ordens (de que são exemplo, os esquemas de perceção, de ação e os mecanismos corporais).

Assente na capacidade reflexiva sobre o significado que o passado pode ter no sujeito e na forma como ele é retratado face a todo um conjunto de transformações sociais, económicas e culturais entretanto vivenciadas, o trabalho da memória realizado pelos antigos combatentes acerca da sua passagem pelo serviço militar e, mais tarde, pelo e no palco de guerra, essencial na criação de âncoras temporais e espaciais das suas trajetórias biográficas, permite ver diferentes modalidades de controlo do passado e de legitimação da sua existência, confirmando a capacidade de negociação e de superação dos ex-combatentes. Ao mesmo tempo, notamos que a memória serve de núcleo de argumentação, uma vez que os discursos e os seus conteúdos visam alcançar algum tipo de reconhecimento ou legitimação quer no que toca à harmonização com o passado lembrado, quer na presentificação do mesmo.

3. As narrativas sobre a guerra como eventos terapêuticos de partilha discursiva

As narrativas em análise apresentam, assim, eixos argumentativos principais que se relacionam com a instrução militar, a dura experiência no campo de batalha e o retorno à vida civil. As sequências discursivas produzidas nas narrativas conversacionais assumem funções diversas: (i) interacionais, não só de relação dialogal com a entrevistadora, mas também de reprodução do diálogo que tiveram com outros agentes que participaram no relato da instrução militar e nas operações de combate; (ii) interativas, que dizem respeito às dimensões sequenciais das intervenções realizadas, isto é, à coerência pragmático-discursiva que resulta das relações semântico-pragmáticas realizadas pelos atos de discurso proferidos. Estas ações linguísticas/discursivas permitem aos participantes (interactantes) proceder à partilha de uma memória acerca da vida na guerra. Indispensável à própria sobrevivência da memória, a consciência que os antigos combatentes têm de si mesmos é necessariamente marcada pelas categorias de pertença e pela relação que têm com o Outro. Esta dimensão coletiva da memória vai ao encontro da necessidade epistemológica de se conhecerem os processos e os atores que intervêm no processo de constituição e formalização das memórias (Pollak, 1989: 4), pois é por via desse conhecimento que melhor podemos compreender a estruturação de um grupo de acordo com as suas hierarquias e classificações, assim como apreender o que há de comum no mesmo - neste caso, um grupo de combatentes. A memória coletiva, segundo B. Schwartz, é enformada tanto pela memória autobiográfica - memória dos acontecimentos que dizem respeito à nossa própria experiência -, como pela memória histórica - memória que chega até nós por marcos históricos (Olick e Robbins, 1998: 111-112). O cariz terapêutico de partilha de uma memória que estas narrativas conversacionais possibilitam é amplificado pela ancoragem no tempo presente da enunciação: sendo produções discursivas que são um efeito de “lugar interacional” (Kerbrat-Orecchioni, 1988: 186) ou resultam de “posições interacionais” (Goffman, 1973), as narrativas de experiência de vida constituem modos testemunhais de olhar o passado vivido e formas de organizar o presente (autobiográfico). Tendo como enfoque analítico as “expectativas partilhadas” (Gumperz, 1980: 103-104) que são abertas pelos “frames” (esquemas/molduras) destas narrativas de experiência de vida sobre a guerra, as ações, os mecanismos discursivos e as estratégias discursivas que ocorrem nos discursos proferidos por interactantes constituem códigos e normas conhecidas pelos falantes que assinalam a pertença a um grupo (ou comunidade) particular (“comunidade de pensamento”, segundo Gumperz, 1982): “Cada comunidade tem os seus próprios jogos rituais (ou normas) locais e específicos que podem ser explorados para objetivos sociais e interpessoais” (Diamond, 1996: 77; tradução nossa). Aos processos de reconstrução e localização do passado, que se entendem como interdependentes, não podemos deixar de ter identicamente em linha de conta, como referimos anteriormente, as várias convenções verbais e simbólicas - expressões, movimentos de mão, imagens visuais, auditivas, táteis, elementos de articulação, signos, representações simbólicas de formas e atitudes, entre outras - visto constituírem um significativo quadro de estabilidade dessa memória coletiva (Halbwachs, 1992: 64-82).

3.1. A expressão da relação com o corpo militarizado

Quase sempre reportado e relembrado, nos relatos recolhidos, como alvo de modelagem intensiva da experiência militar e de domesticação para a ação de guerra, o corpo configurou, na verdade, um elemento-chave do processo de materialização da estrutura da guerra - entendida como força impulsionadora do monopólio da violência física e organizada (Joas, 2005: 91) - e foi, ao mesmo tempo, parte ativa na construção identitária dos antigos combatentes (Foucart, 2003: 182). Através de uma forte ação socializadora da instituição militar, assente em determinados “cerimoniais de admissão” (Foucart, 2003: 79), o corpo militarizado foi-se tornando (na instrução e em situação de combate) num instrumento de enaltecimento de certas competências/traços, tais como a dotação e a garantia de estoicismo físico, o combate (emocional) à(s) adversidade(s) e o desenvolvimento ágil de ações de defesa e de preservação e, em simultâneo, alvo do uso (coagido) de um conjunto de acessórios e de operadores de submissão. Falamos, em concreto, do uso da farda militar, sinónimo tanto de orgulho (exemplo 1) como de opressão (exemplo 2) e do camuflado, símbolo de despersonalização em contexto de confronto (exemplo 1): (1)

“(…) Eu gostava. Eu gostava da farda, ou seja, eu era um vaidoso. Eu tinha um gosto, ainda hoje, ainda hoje ... Eu vesti o camuflado, que eu mandei fazer. Claro, que eles normalmente mandam para a gente os camuflados normais. E eu mandei um alfaiate meter uns fechos, umas molas, pôr a calça à maneira para depois ir comigo. (...) Eu tinha vaidade nisso porque gostava, gostava. Eu gostava de me apresentar na cidade com a calça bem esticada, camisola branquinha (...). E nós tínhamos um gosto de andar com a camisinha branquinha. E tínhamos sempre o camuflado sempre ali ou então a farda número dois, que era a farda de saída, sempre bem... Sempre ali... (…)”.

(Adriano14, 14 de agosto de 2008, Braga)

(2)

“(…) Tínhamos que usar o colete de militar, ainda por cima aquilo era um tecido muito quente e gravata (…). E depois a camisa interior também e em que era um sacrifício e vejo isso nesse tempo e recordo-me do sacrifício. Com aqueles graus de calor e usar uma farda que nos era imposta. (…)”.

(Samuel, 15 de julho de 2008, Porto)

As armas são referidas como signos em que impera uma relação íntima e sexualizada:

(3)

“(…) Logo no início disseram-me: «Esta é a tua amante até ao fim da tropa! Não a podes abandonar, não a podes deixar cair ao chão. Tens que mantê-la sempre limpa, oleada. É a tua amante.» E então a G3 era a minha amante desde o início, desde o Regimento de Infantaria 8. (…)”

(Heitor, 17 e 18 de julho de 2008, Porto).

A mochila e a ração de combate são referidas como apetrechos de sobrevivência:

(4)

“(…) De mês a mês, cinco dias no mato seguidos, de mochila às costas, aquilo era cansativo e depois as rações de combate a aquecerem. Nós com aquilo às costas dentro da mochila cinco dias e era comer aquilo tudo estragado. Mas tínhamos que comer! (…)

(Benjamin, 29 de julho de 2008, Braga)

A referência ao corte de cabelo, à assunção de certas posturas e de saudações (como a continência) e de ritmos de deslocação (de que é exemplo a marcha) é constante:

(5)

“Até passavam um bocado de papel higiénico na barba e se pegasse mandavam logo para trás e a fazer pouco de nós ainda. (…) Tínhamos que nos convencer que tínhamos que vestir o blusão bem preparadinho, gravata bem apertada senão não saímos a porta de armas. Ensinavam a marchar, a bater a pala com os superiores. (…) ”

(Benjamin, 29 de julho de 2008, Braga)

(6)

“(…) Lembro-me assim de pessoas que levaram tiros nas nádegas de raspão porque não rastejavam corretamente, as balas passavam mesmo por cima do arame. Eu, com menos, saltava para o galho, fletia as pernas e agarrava-me no galho que até fazia flexões no galho. (...) No fundo, adaptei-me à instrução. (...) Passavam o lápis no cabelo, se o cabelo cobrisse o lápis era logo para o barbeiro. Barba grande automaticamente chamavam atenção. (...) Éramos tratados assim um bocado, como animais. (...)”

(Heitor, 17 e 18 de julho de 2008, Porto).

3.2. A estruturação do mundo em que se é “carne para canhão”: a intensificação discursiva no relato das fases do serviço militar e do combate

Refletindo mecanismos de desritualização e de clara rutura com a vida anterior, em que foram nítidas tanto a violação dos domínios mais íntimos (corporais e emocionais) dos sujeitos, como a fidelização (corpórea e mental) a um certo lugar e contexto, as fases de serviço militar e de combate trouxeram uma nova estruturação das sequências temporais e espaciais do quotidiano e biografia dos agentes em análise:

(7)

“(…) E depois a gente o que sofre mais dos ossos é que as botas cheias de água, chuc, chuc, chuc, secou. E tornar a ir outra vez noutro pântano, chuc, chuc, chuc, secou. A roupa da mesma forma e agora com os ossos eu ando aqui com umas dores horríveis já. Deus me livre! Porquê? Porque aquilo era roupa de primeira, de segunda e terceira vez e deram-me cabo dos ossos. E é o que me está a acontecer a mim, que é umas dores e quando estou com as dores se meto alguma coisa à boca de imediato tenho que ir à casa de banho vomitar para fora. É que são umas dores horríveis que eu sei lá. O pior que a gente passou foi essa coisa assim, foi ter que atravessar pântanos e sem sequer secar a roupa. E botas e tudo. (…)”

(Benjamin, 29 de julho de 2008, Braga)

Perante a dureza da instrução militar, regularmente, ocorrem comentários avaliativos com intensificadores do discurso, “fórmulas discursivas intensificadas” (Edwards, 2000: 347): inscrevem-se nesta categoria os usos de adjetivos como “difícil”, “adverso”, “frio”, “quente” no grau superlativo e de expressões como “ser um sacrifício” e “ser carne para canhão”:

(8)

“(…) Bastante difícil. Eu saía, muitas vezes, em circunstâncias adversas e em que não havia grande coragem no corpo das pessoas naquele tempo. Estou-me a lembrar de pessoas que não faziam o chamado pórtico que era uma estrutura em cimento que ficava para aí a seis ou sete metros do chão. (…) Em condições (…) muito adversas, com Invernos rigorosos e eu tive quase toda a minha instrução na parte de Inverno. Portanto muito frio, muito frio mesmo. (...) Tínhamos que usar o colete de militar, ainda por cima aquilo era um tecido muito quente e gravata (…). E depois a camisa interior também e em que era um sacrifício e vejo isso nesse tempo e recordo-me do sacrifício. Com aqueles graus de calor e usar uma farda que nos era imposta. (...) O soldado era a carne para canhão naquele tempo. (…)”

(Samuel, 15 de julho de 2008, Porto)

(9)

“(...) Fomos para lá como carne para canhão. Escapou, não escapou. Escapou, veio-se embora. (..)”

(Benjamin, 29 de julho de 2008, Braga)

Exigente, quase estandardizada e pouco sensível às consequências decorrentes do modo de recrutamento militar - expressa na ideia (amplamente reiterada) de “carne para canhão” -, a mobilização para a guerra não deve ser lida somente do ponto de vista da diluição dos critérios de incorporação (face ao agudizar do combate), justificando, deste modo, a centralização discursiva dos antigos combatentes nas dimensões de carnificina, brutalização e de bestialidade. Fica presente também a ideia de acentuação das diferenças de classe pela máquina militar e de guerra. Tomando-se como critério os níveis de escolaridade, são evidentes as diferenças nas origens sociais, os distintos tratamentos de acordo com o posto e as representações sociais desiguais transmitidas no interior da organização, como os seguintes segmentos discursivos ilustram:

(10)

“(...) O soldado era a carne para canhão naquele tempo. Eu considero que se calhar era das classes menos favorecidas. (…) A pessoa era olhada com menos respeito. (…) ”

(Samuel, 15 de julho de 2008, Porto) (11)

“(…) Para a classe, como se costuma dizer, de carne para canhão era de qualquer maneira, de qualquer feitio. Eram três meses e vai embora e depois lá que se desenrasquem. (...) Antigamente, costumava-se dizer que um homem só se faz homem quando vai para a tropa senão não é homem. (…) ”

(André, 15 e 16 de julho de 2008, Porto)

(12)

“(...) Na tropa, costuma-se dizer que na tropa, velhice é um posto, quando a gente tem qualquer coisa em cima dos ombros, não eram galardões, mas eram divisas também têm que ser respeitadas, principalmente os superiores. Eu tive problemas porque as pessoas começavam a tratar-me por tu e os oficiais começaram a olhar para mim (põe um olhar de avaliação) e eu tive que chamar a atenção a essas pessoas. (…)”

(André, 15 e 16 de julho de 2008, Porto)

(13)

“(…) Isto é assim. Eles aqui tinham um comportamento de superioridade. Eram todos obrigados, como nós, nenhum era voluntário, mas tinham aquele comportamento de exigir e por aí fora. E uma vez até disse a um furriel: «Tenha cuidado porque nós… Veja lá o seu comportamento. Tem que mudar o seu comportamento porque nós vamos nos juntar todos no teatro de guerra. E nós lá vamos ter espingardas, munições e pode haver uma bala perdida!» E ele percebeu logo onde eu queria chegar. E nós lá, eles começaram logo a mentalizar-se que lá tínhamos de ser todos como uma família. Portanto, lá, ao princípio, era um bocado complicado, mas depois eles começaram-se a habituar e éramos como família. Hoje fazemos todos convívios militares e eu trato-os a todos por tu, independentemente de ser alferes, furriel. Éramos todos da mesma idade! Eles eram mais velhos um bocadinho porque demoraram mais um bocadinho a fazer o curso. Quando nós fomos para a recruta já eles tinham a especialidade feita, eram eles que nos davam a especialidade e depois iam connosco para a guerra. (…)”

(Heitor, 17 e 18 de julho de 2008, Porto)

Na “sintaxe da narrativa” (Labov, 1972), ocorrem intensificadores lexicais, como os adjetivos, que estão inscritos em asserções que resumem a descrição da vivência da guerra e dão conta do próprio cenário de carnificina com o qual os interlocutores se confrontaram:

(14)

“(…) Deparamo-nos várias vezes com essas situações, com pessoas maltratadas e retalhadas. (…)”

(Samuel, 15 de julho de 2008, Porto)

A visualização das imagens da instrução militar é feita com a ancoragem no tempo da enunciação, permitindo tornar presente o vivido através da produção de asserções que denotam experiências e perceções avaliativas características do discurso testemunhal:

(15)

“(…) No primeiro fim de semana, claro, toda a gente queria vir a casa, eram camionetas, nos éramos mil e duzentos instruendos de todo o país, aquilo eram camionetas sei lá para vir trazer aquela gente toda para casa, repare. Chegávamos aqui já era de noite e só tínhamos ao fim ao cabo o sábado de noite, que naquele tempo não é como agora que sábado à noite é que começa a festa, pelo menos aqui. Se vier aqui à noite é festa todos os dias a partir das dez e meia, meia- noite, é festa aqui todos os dias. Naquele tempo não era bem assim! Portanto, só tínhamos o Domingo, o Domingo tinha de ser bem aproveitado, para quem tinha namoro para namorar e tal.(…)”

(André, 15 e 16 de julho de 2008, Porto)

3.3. A ritualização das práticas discursivas e o “conhecimento compartilhado” da experiência militar: o uso do “nós” inclusivo, os mecanismos de mitigação e o envolvimento conversacional

Regularmente, na produção de narrativas, “seguimos scripts, repetindo-os”: o que dizemos implicitamente segue regras e gramática, há uma variação no modo como os interactantes usam os mesmos termos referenciais, aplicando-os a novas circunstâncias do falar-em-interação (Schiffrin, 2006: xiii). Sujeito a uma espécie de ritualização, pois a memória, ao funcionar para comunicar valores partilhados no interior de um grupo, forma, ao mesmo tempo, estabilidade e equilíbrio pelo tipo de laços de coesão social que provoca, o processo de relembrança tende a injetar nos sujeitos valores relativos a condutas utilizando a repetição como um recurso para ajudar a desenvolver implícita e explicitamente um desejo de continuidade face ao passado histórico mas que é filtrado de modo a se poder adequar às práticas de rotina (Freitas, 2002: 548-550). Assim, verifica-se o constante recurso ao uso de “nós” (primeira pessoa do plural), como forma de inclusão na identidade do grupo de combatentes, e ocorre a reiterada referência à disciplina do corpo: (16)

“(…) Não houve (feridos). Por incrível que pareça os cento e cinquenta homens vieram e eu acho que foram das poucas Companhias que regressaram intactas e há uma explicação para isso. Nós tínhamos um comandante das altas chefias do Exército e que impunha uma disciplina impressionante, não era miliciano, era muito rígido. Nós, no mato, continuávamos a ter, no sítio onde estávamos inseridos, revistas a barbas e a cabelos quase como se fosse cá. Repare, e isso rompia com aquilo que se transmitia de as coisas andarem abandalhadas. Não, era muita disciplina. E se calhar isso foi determinante e esse capitão tinha uma disciplina, uma coisa invulgar, e que nos transmitiu que nós tínhamos que cumprir a sério mesmo. Se calhar isso explica o sucesso de termos voltado porque a disciplina militar era pesada lá. (…)”

(Samuel, 15 de julho de 2008, Porto)

(17)

“(…) Passámos três pântanos, com canas que tem aquelas folhas compridas, que parece cana do açúcar, e passámos dois ou três e o terceiro e o quarto já se enfincavam nas canas partidas para a água não chegar ao pescoço. Parecia que andávamos embalsamados e íamos à beira uns dos outros, que a distância era de cinco em cinco metros para que não viesse na rajada e não matasse meia dúzia deles. (…)”

(Benjamin, 29 de julho de 2008, Braga)

Na expressão do corpo enfraquecido ou no confronto com o Outro que não foi à guerra, os entrevistados expressam o narrado através da realização de mecanismos de mitigação que permitem atenuar a gravidade do que é narrado. Estes mecanismos linguísticos incidem ora no conteúdo proposicional dos atos de discurso (18), ora na deixis (19), isto é, na referenciação ancorada nas coordenadas do “aqui” e do “agora” do locutor que produz a narrativa. Observemos, então, os seguintes segmentos:

(18)

“(…) Sempre fui fraquinho e sentia-me um bocado cansado. Oitocentos metros a correr, na força do Verão, por aí fora e depois saltar. Fizemos várias caminhadas junto ao rio, sujeitos a cair, durante a noite (…).”

(Benjamin, 29 de julho de 2008, Braga)

A mitigação da expressão “um bocado” é um marcador de vagueza (fuzzines) que reduz as obrigações epistémicas do locutor que o realiza: incidindo no conteúdo proposicional, esta expressão reduz as obrigações epistémicas do locutor que a profere, diminuindo a gravidade do que é relatado sobre o corpo enfraquecido face à importância da disciplina militar instituída. O uso do diminutivo na asserção avaliativa “sempre fui fraquinho” tem valor intensificador do valor de “fraco”, mas como ocorre com o uso do advérbio “sempre” remete para um valor habitual e, por isso, não muito grave. O diminutivo resulta de um processo de subjectivização, processo de mudança semântica pela qual os significados que descrevem uma situação passam a indicar perspetivas, atitudes e crenças do locutor em relação à situação (Silva, 2006: 239-268). Por isso, nas descrições com forte carga emotiva, o seu uso é frequente em asserções avaliativas e denota o “envolvimento conversacional” dos locutores.

Por seu lado, os mecanismos de mitigação que ocorrem em asserções avaliativas com referências impessoais (Caffi, 2007) incidem na deixis e constituem uma estratégia argumentativa ao serviço da construção de uma doxa comum:

(19)

“(…) Ah, senti, senti (diferenças quando vinha ao de fim-de-semana à casa durante a instrução militar). Sabe, uma pessoa não estava habituada, nós chegámos lá para ficar uns meses e ficámos logo quinze dias fechados, dentro do quartel não deixavam sair ninguém. Portanto, quinze dias, nem à rua viemos! Não deixaram. (…) Uma pessoa aprende ou apanha vícios, aquilo também é uma escola de vícios. Quem quer virar para aquele lado também apanha isso. Eu, felizmente, também nunca entrei por esses vícios. Mas torna-se mais responsável em tudo. Nós lá temos horários para tudo, não é como em casa em que a gente levanta-se à hora, quando não há que fazer, que nos apetece. Lá não, lá nós tínhamos que fazer tudo, pronto éramos mais homenzinhos. Pronto, torna-nos mais responsáveis. Porque a gente vai para lá com vinte anos, no meu tempo quando a gente ia para lá já quase toda a gente trabalhava. Hoje uma pessoa com vinte anos nunca fez nada, saiu da escola, se é que já saiu, não sabe fazer nada. E a gente ia para lá com vinte anos e tinha que se levantar às cinco horas da manhã só para apertar as botas, na primeira semana a gente levantava- se às cinco horas da manhã e estava ali uma hora só para apertar umas botas como eles queriam. (…)”

(André, 15 e 16 de julho de 2008, Porto)

O uso em situação de entrevista, por parte dos entrevistados, de referências impessoais como “uma pessoa” ou “a gente” que são equivalentes a “qualquer pessoa” permite (i) recategorizar o locutor e as suas experiências; (ii) desenvolver perceções como partilhadas não individualmente; (iii) invocar lugares comuns para lidar com dilemas colocados pelas perguntas (Myers e Lampropoulou 2012); (iv) realizar um mecanismo de proteção na deixis, constituindo “protetores de objetivização e de impessoalização” (Caffi, 1999: 897). Com estes elementos linguístico-discursivos, os locutores realizam uma estratégia argumentativa de distanciação, apresentando um comportamento avaliado como prototípico, tornando-se uma matéria de “conhecimento compartilhado” e permitindo assim o “envolvimento conversacional” (Goffman, 1987).

3.4. A virilidade e a masculinidade como constructo relacional e as vivências sensoriais da guerra

Em paralelo, a assimilação de uma ideologia patriarcal predominante ancorada, por um lado, num tipo de ideal de corpo militarizado em torno do esforço de guerra e, por outro lado, na afirmação, em última instância, da honra sexual e do cumprimento do dever cívico, permite-nos

observar como a virilidade e a masculinidade constituíram um constructo relacional. Mais, a própria exacerbação da vertente sexual revelou ser uma componente importante em cenário de solidão e de isolamento:

(20)

“(…) Vinham as fotografias da mulher ou da namorada de fato de banho ou de biquíni e a gente ouvia aquelas bocas sempre na brincadeira. Estávamos ali sozinhos e a gente gostava de estar a olhar ali para as fotografias e ver e depois dizia que a mulher deste era assim, a namorada daquele assado, é jeitosa, é bonita, não é. (...)”

(André, 15 e 16 de julho de 2008, Porto)

(21)

“(…) O que é (que) representou? (o ter protagonizado a guerra) Amadureceu-me! Fez de mim, se calhar, mais homem porque a gente quando vai para a tropa é um menino ainda. Na tropa aprende-se… antigamente, costumava-se dizer que um homem só se faz homem quando vai para a tropa senão não é homem, não é. (…)”

(André, 15 e 16 de julho de 2008, Porto)

Reconhecendo a guerra como o mais violento dos fenómenos sociais, alterando significativamente os processos de sensibilidade, de pensamento e de racionalidade, uma tal rutura injetada no corpo tornou-o também representativo de uma desordem social e simbólica significativa. Na verdade, as memórias reunidas colocam a tónica na subordinação do corpo a práticas de dominação, tornando-o num capital de risco e de consciência aguda da disfunção. As vivências (sensoriais) foram filtradas, por um lado, pelas privações, pelas pressões físicas, pelas doenças, pelas adaptações ao clima e aos cenários de combate, assim como, por outro, pelo recurso ao álcool e às drogas15.

(22)

“(…) Quando descobri lá que havia essa erva, era liamba pura mesmo de Angola, acabei por utilizar. Eu, no pensamento, não estava lá, eu estava aqui no puto como chamavam em Angola. Nem sabia o que era, mas depois descobri. Eles diziam que aquilo era droga e eu experimentei a primeira vez e é uma maravilha. Foi uma forma de fugir porque nós imaginávamos e vivíamos bons momentos sobre o efeito daquela erva. E não estávamos lá, no pensamento nós não estávamos lá. E eu disse: «Vou fazer uma viagem de vinte e tal quilómetros. Vou ao puto!» e fumava a liamba. Era uma alegria! (…)”

(Heitor, 17 e 18 de julho de 2008, Porto)

(23)

“(…) O tempo de guerra era propício para abusos e entre os abusos, os abusos do álcool, abusos de comida e muitas coisas que não se devem fazer. (…)”

(João, 30 de julho de 2008, Braga)

O relato emotivo na recordação das experiências traumáticas é feito com exercícios constantes de olhar o passado em confronto com “memórias subterrâneas” (Pollak, 1989, p. 4), incluídas no domínio do silêncio e da subversão (Coelho, 2013), através da visualização de cenários de violência corporal:

(24)

“(…) O problema é que quando a calcavam (a mina) ela saltava mais ou menos para metade do corpo e rebentava, que era para fazer os maiores estragos possíveis. De uma só vez foram quatro e foi para lá um helicóptero, foram desfeitos no campo não houve hipótese. (…)”

(João, 30 de julho de 2008, Braga)

(25)

“(…) Ele vinha atrás de mim, desligou o aparelho e só que, quando ele pôs o pé estava lá a mina, eu passei por cima, mas não a calquei e ele calcou e ficou logo sem uma perna. (…) O que restou dele trouxe num blusão, portanto da cinta para baixo, mais acima um bocadinho. Da cinta para baixo desapareceu tudo, estava tudo pendurado nas árvores. É assim um espetáculo um bocado violento. É uma imagem que fica marcada. (…)”

(Filipe, 11 de agosto de 2008, Porto)

(26)

“(…) A G3 faz um furinho ao entrar, mas depois rói por dentro porque troça para a direita e então esburacou-o e os intestinos saíram para fora. (...) E desapareceu-lhe uma perna direita e na perna esquerda desapareceu-lhe metade e ficou desfeito. (...) Era só injetar e ia assim de qualquer maneira, mas a (injeção) da anti-hemorrágica é que tinha que ser na barriga. (...) Recordo-me que um dos feridos que tinha levado com os estilhaços nas costas, ele ali muito porreiro ali com o buraco ali à vista. (…) ”

(João, 30 de julho de 2008, Braga)

Ao mesmo tempo, indutora do sistema de “corporalidade do sofrimento”, isto é, de decomposição em sentimentos de segurança/risco, presença/ausência, identidade/diferença a que o corpo está sujeito (Foucart, 2003: 75), a violência engendra feridas e penetra no corpo, colocando-o sob uma variedade de constrangimentos e ameaçando os esquemas de consciência espácio-temporal dos sujeitos, daí assistirmos, nos seus discursos, a uma contínua perpetuação do fenómeno da guerra. Ao encararmos o palco de guerra como um espaço de produção de afinidades emocionais e respostas adaptativas comuns, compreende-se melhor que as estratégias de controlo, necessárias ao alcance de estabilidade e integração, estão também dependentes do coletivo. O grupo assume-se, na realidade, como um elemento auxiliar no processo de manutenção da lógica adaptativa e de classificação da experiência. Por isso mesmo, devemos estar conscientes que estas respostas resultam de uma ação de aculturação, através de fórmulas importantes de domesticação e construção identitária (em que imperam a disciplina, o rigor e a força). Vemos, nos discursos, que a memória constitui um elemento ativo de moldagem da experiência face aos constantes exercícios de ordenação, de localização e de reconstrução das experiências vividas.

Síntese conclusiva

As narrativas de experiência de vida sobre a guerra possibilitam uma análise sociológica e linguístico-discursiva sobre o modo como os agentes sociais procedem à (re)construção das vivências relacionadas com o corpo militarizado, com o combate no mato, com a hierarquia militar, com a sexualidade e a masculinidade, com os domínios mais sensoriais e com o pós- guerra que, ancorado no presente da enunciação, remete para o do tempo da entrevista de investigação. Objetivadas em práticas discursivas específicas, as narrativas sobre a guerra apresentam a expressão de estratégias discursivas e argumentativas que resultam do acionar de mecanismos de intensificação e de mitigação próprios de um discurso testemunhal, revelando que o desenvolvimento de tópicos específicos sobre a experiência da guerra constitui um constructo coletivamente partilhado pelos entrevistados e possibilita a constituição coletiva da(s) memória(s).

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Notas

12O texto apresentado retoma algumas das reflexões desenvolvidas sobre os três eixos teórico- metodológicos contidos no exercício analítico de produção de uma sociologia da experiência de guerra - construção da personalidade, mecanismos de memória e experiência de guerra (Coelho, 2013).

13 Com recurso ao tratamento de dados inclusos no arquivo institucional de uma associação nacional que agrega veteranos da Guerra Colonial, foi possível obter uma caracterização social dos inscritos que serviu de referência na seleção e contacto com os entrevistados (Coelho, 2009).

14 Os nomes mobilizados são fictícios. Destacamos a negrito os segmentos que constituem marcas linguístico-discursivas da explicitação do sentido narrado, caracterização do referente e ilustração dos eixos de análise desenvolvidos neste estudo.

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