Introdução
A guerra em Cabo Delgado é uma realidade. Os seus promotores, alguns como Bonomado Machude Omar ou Inn Omar, foram revelados pelas Forças de Defesa e Segurança (FDS). As suas causas não são claramente conhecidas e suas implicações internas não são devidamente mitigadas. Por essas razões, pretendemos neste artigo refletir sobre as causas e implicações que estão por detrás dessa guerra e trazer um contributo reflexivo e pragmático, por meio do qual haja progresso teórico e prático na superação deste conflito. Depois de padecer de décadas de subinvestimento, negligência governamental e pobreza esmagadora, a província de Cabo Delgado, uma das mais pobres de Moçambique - segundo os dados de 2017 do Instituto Nacional de Estatísticas -, é agora palco de uma violenta insurgência, que já ceifou milhares de vidas e deixou vilas e aldeias em ruínas. Os combates intensificaram-se desde que um grupo armado conhecido localmente como “Al-Shabaab”16 (sem ligações confirmadas ao Al-Shabaab da Somália) atacou a vila portuária de Mocímboa da Praia, no norte do país, em Outubro de 2017, causando destruição generalizada, deslocados em massa e morte, além de condições humanitárias insuportáveis para os que foram forçados a fugir. A nossa linha de investigação parte de novas perguntas-chave como ″quais são as raízes/causas/fatores dessa guerra?″; "que implicações impõem à comunidade local ou que implicações isso pode trazer para a vida das crianças, mulheres e homens locais?"; "que ’traje’ isso coloca à sociedade?"; "que ordem e estrutura social teremos (ou podemos ter) em Cabo Delgado?". Por coincidência, ou não, Cabo Delgado também está se recuperando de choques climáticos consecutivos, incluindo o ciclone Kenneth de 2019, o ciclone mais forte a atingir a parte norte de Moçambique, e enormes inundações no início de 2020. A situação agravou-se seriamente entre 2021-2022, com a escalada de ataques a localidades e capitais de distritos da província. O que deve ficar percetível, nessa nota, é que por detrás, e muito para além, dos números estão em causa pessoas, seres humanos. Homens, mulheres e crianças. Que vivem ou viviam em aldeias conhecidas, também com nomes e história. Pessoas implicadas por uma guerra sangrenta, mortífera e (des)conhecida.
Neste diapasão, o presente estudo tem como objetivo trazer uma contribuição reflexiva e prática/empírica sobre as causas e implicações internas da guerra de Cabo Delgado sob base de uma metodologia bibliográfica e documental, auxiliadas por entrevistas semiestruturadas aos refugiados acolhidos na vizinha Província de Nampula - bairro de Namicopo, com uma abordagem qualitativa baseada no paradigma compreensivo e interpretativo. A análise de conteúdo foi a técnica usada para o tratamento de dados, buscando-se comparar as diferentes abordagens interpretativas, do tema em apresso, e, finalmente, procurando-se, nas conclusões, demonstrar o papel do Estado na resolução deste conflito.
1. Perceções sobre as (im)prováveis causas da insurgência
Antes de nos debruçarmos sobre a natureza das implicações que essa guerra impôs internamente, achamos oportuno iniciar o nosso trabalho a partir de uma análise antropossociológica sobre as perceções relativas às presumíveis causas que levaram a esse problema social. Perceções que analisaremos e procuraremos desconstruir. Compartilhamos a ideia de que a natureza do conflito de Cabo Delgado, como realçam Constantino (2020) e Fundo Monetário Internacional - FMI (2019), é comum em países ricos em recursos naturais e particularmente exportadores de recursos petrolíferos (incluindo gás), tal como é o contexto de Moçambique, caracterizado por instituições fracas, elevados níveis de desigualdades sociais e de pobreza. São exemplos de países que sofrem situações similares, os da região da Bacia do Lago Chade (Chade e Nigéria, dentre outros), que são vítimas da insurgência do Boko Haram17. Entre as narrativas, Cardoso (2021) acusa o tráfico de drogas, nomeadamente heroína, cocaína, metanfetaminas e recursos naturais, exercido por máfias, principalmente chinesas e vietnamitas e protagonistas locais - políticos. Ademais, os focosque essas cogitações expostas por Cardoso olham, são de que essa guerra é contra o Estado e contra tradições culturais e religiosas, sendo ainda uma insurgência local com práticas que podem ser classificadas como terroristas, porque procuram ferir o Estado, utilizando práticas violentas sobre a população civil. Pesquisas recentes apontam, de forma hipotética, causas de vária ordem, nomeadamente: pobreza, distribuição desigual da riqueza, afinidade ideológica e religiosa (Maquenzi e Feijó, 2019; Habibe et al. 2019). Aliás, Maquenzi e Feijó (2019) defendem a tese, segundo a qual, o baixo nível de escolaridade e assimetrias regionais fazem com que indivíduos que estão em situação de vulnerabilidade resolvam aliar-se aos grupos radicais islâmicos.
Na mesma perspetiva, Fonseca e Lasmar (2017), afirmam que uma parte significativa dos voluntários recrutados para pertencerem ao grupo radical são atraídos por promessas de um salário pela luta. Normalmente, essas pessoas não possuem grandes expetativas profissionais e veem na luta uma forma de rendimento. Até então, a partir das mensagens difundidas por esses grupos, em momentos pós-ataques, é possível perceber que o grupo reclama a prática de um Islão fundamentalista, apesar de não deter uma elaboração teológica sofisticada ou uma ideologia política bem definida e organizada. O OMR (2021) chegou à conclusão de que os "mashababos" defendem uma ideologia islâmica radical, e os canais que utilizam para apresentarem as suas reivindicações consistem, sobretudo, em pequenas palestras após os ataques, em sessões de doutrinação com indivíduos capturados, mas também mensagens e pequenos vídeos, que circulam pelas redes sociais. Observa-se que o discurso adotado pelo grupo é uma propaganda antigovernamental, criticando as políticas do Governo de Moçambique, que dizem ser responsável pelos males da sociedade, como a injustiça e a exclusão social. Estudos do Centro de Integridade Pública (CIP, 2021) e do Feijó (2021) elencam problemas como o desemprego, a pobreza e desigualdades, a corrupção generalizada, a injustiça social ou a exclusão política vistos pelos insurgentes como causados pelo Governo e consideram como consequências da democracia. Essa linha apresentada pelos "mashababos", sobre a questão de a democracia ser elemento- chave dos problemas, é bastante interessante e merece uma análise cuidadosa para que, antes de mais, não seja desprezada, porque a lógica de alguns é de que a "democracia" existente (aquilo que consideramos como democracia de fachada) tem combatido a injustiça social de forma crescente, algo que os insurgentes discordam. Essa discordância é reforçada pela ALPS Resiliense (2019) que afirma que a prevalência desta situação coloca a província sob risco da “armadilha do conflito”, fenómeno que ocorre pelo fato de as populações locais verem frustradas as suas elevadas expetativas de melhoria de condições de vida, a curto prazo, como resultado dos investimentos de grande envergadura que ocorrem na província. Desta situação resulta um descontentamento generalizado que, conjugado às precárias condições de vida, a população torna-se alvo fácil a recrutar pelo grupo dos insurgentes sob promessas de rendimento ou remuneração. Ao observarmos de forma discreta essa ideia "mashababista", percebemos que a democracia, para eles, é um sistema que ocasiona que os ricos se tornem mais ricos à custa dos pobres e a solução para o caos social reside no derrube do Governo e na adesão àquilo que se poderia designar de Sharia (Lei islâmica). Na nossa perspetiva, existe uma aglutinação de ideais nessa defesa. Primeiro, alega haver desprezíveis altos níveis de injustiça social imposta pelo sistema ″democrático″. Em segundo lugar, observamos uma justificativa de que somente o Sharia poderia eliminar essas injustiças sociais. Constatamos assim que é uma perceção de ausência de justiça social fomentada pelo Estado, o que está em causa, apontando a possibilidade de resolução destas injustiças através de legislação governamental ou da implementação do Sharia. Para os insurgentes a justiça social unicamente pode ser trazida pelo Sharia. Todavia, neste contexto do Sharia, o que seria justiça social na prática? Será que o Sharia defende ideais de justiça social para a maioria da população local? Na prática ocorre que, conforme retratam os dados do Observatório do Meio Rural:
Esse grupo proíbe a frequência de escolas oficiais, sendo as madrassas o espaço admissível de aprendizagem. Proíbe-se o pagamento de impostos, a participação em processos eleitorais ou recenseamentos demográficos. O grupo proíbe a detenção de bilhete de identidade, que são retirados às populações raptadas e destruídos, não obstante alguns sejam conservados por motivos estratégicos, de infiltração e camuflagem. As pessoas são abertamente proibidas de participar nas cerimónias do Governo (vulgo “reuniões dos kafirs” ou “reuniões dos porcos”) e o grupo incita a população a insurgir-se contra as estruturas político-administrativas. O grupo proíbe a veneração ao Chefe de Estado, considerando haraam (pecado) a atitude de "idolatração" do Presidente da República. (OMR, 2021: 07)
De acordo com os que participaram nas sessões de doutrinação, a apologia da primazia aos locais na distribuição de empregos constitui o argumento mais sedutor. Em termos de reivindicação territorial, os discursos são contraditórios, existindo relatos de intenção de ocupar a área de Linde (em Mtwara) até Pemba; outras vezes, toda a província de Cabo Delgado; e, outras vezes, todo o país. O fato de o núcleo duro do grupo ser maioritariamente de Mocímboa da Praia, confere a esta cidade um particular simbolismo para os "mashababos". Para Cardoso (2021) há fatores internos que alimentam o conflito. Esses fatores apontados por Cardoso, são dentre os demais: (i) a existência de outros conflitos em Moçambique - devido aos abusos de poder, apropriação de terras, deslocações forçadas da população e exploração do trabalho; (ii) Moçambique não tem sido um bom modelo de governação - aponta-se o aumento da corrupção e do nepotismo, bem como a predação de bens públicos e da população, incluindo terras; (iii) a falta de oportunidades de emprego ou negócios para jovens - centenas de milhares de jovens entram todos os anos na idade de trabalhar (em média, nos últimos anos, 350 mil pessoas), com os sucessivos Governos a não serem capazes de lhes dar expetativas de melhor futuro; (iv) o nível de vida da população tem estagnado - diante da realidade contrastada com fenómenos de ostentação de riqueza por parte de elites políticas e comerciais, onde as políticas públicas de inclusão e de redistribuição da riqueza são escassas e ficam no papel ou no discurso oficial, sem haver "praticidade". Na mesma perspetiva, Cunha et al. (2019) realçam que a situação parece ser muito mais complexa, e são várias razões que podem estar na base desta persistente violência vivida pelas populações. Por um lado, as disputas relativas à terra que têm derivado das deslocações das pessoas por causa dos empreendimentos extrativistas. Perder a terra é mais do que perder uma propriedade: é perder, em muitos casos a identidade, modo de vida, dignidade, acesso a bens materiais e imateriais. Por outro lado, sabe-se que o crime organizado relativo ao tráfico de drogas ilícitas e de pessoas tem uma rota importante na província de Cabo Delgado, pelo que este fator deve ser seriamente considerado. Também, esses autores indicam os abusos de poder perpetrados pelas forças de segurança das empresas transnacionais e das autoridades do país que têm exacerbado a situação provocando sérios descontentamentos e consequentes protestos e conflitos. O estudo de campo realizado por Cunha (2021) chegou a conclusão de que há três grandes causas para entender esta guerra: Terra, Recursos e Poder. A corrupção, o desemprego e a degradação das condições de vida da maioria da população e a falta de participação nas tomadas de decisão são elementos a ter em consideração, como bem indicam os autores supra. Assim sendo, aliando-nos com a linha desses autores, ocorre que, com a etnia makonde18 no poder central, mas com uma população makua19 maioritária, o poder tem-se esquecido de fazer a sua devida integração em vários processos. Com uma população minoritária makua a professar o cristianismo, sobretudo o catolicismo, tem uma população maioritariamente muçulmana o que provoca também várias tensões e conflitos. Aliás, a lista de injustiças históricas e presentes é longa. Uma questão parece ser central: a terra e os seus recursos.
2. A guerra segundo as vozes dos refugiados
i. Presumíveis causas
No mês de outubro de 2021, realizamos entrevistas semiestruturadas com refugiados da guerra de Cabo Delgado, que estão acolhidos na vizinha Cidade de Nampula, especificamente no bairro de Namicopo. Nessa entrevista, no que diz respeito às causas da guerra, foram envolvidos 6 refugiados, dos quais 3 são mulheres - todas camponesas e 3 homens - um professor de uma escola primária em Palma, um garimpeiro e um camponês. Esses refugiados, fugidos das suas aldeias, tendo passado noites escondidos nas matas, deram-nos o privilégio de se fazerem ouvir, contando as suas perceções do que realmente está a ocasionar esse terror.
Para mim, é difícil dizer o que fez acontecer essa situação. Mas acredito que a extrema pobreza que a população passa contribui para isso. O elevado número de pessoas em situação de pobreza extrema lá [na província de Cabo Delgado] trouxe um sentimento de insatisfação por parte das pessoas e facilmente elas são aliciadas. Ao meu ver, essa situação de pobreza criou descontentes e esses descontentes decidiram pegar em armas e matar. (Informante 1)20
A nossa província [Cabo Delgado] é uma província com muitos recursos, mas muitos mesmo, mais do que muitos imaginam. E a população não ganha com isso. Lembro que em 2017 muitas pessoas que trabalhavam como garimpeiros em Montepuez foram expulsas. Acredito que aquilo pode ter iniciado um sentimento de revolta porque lhes foram arrancados muitos bens.
Acredito ainda que essa guerra não é só por causa de recursos minerais. Essa guerra tem a ver também com poder. Esse Nyusi devia renunciar o cargo porque estamos cansados de ver ele e os camaradas dele a quererem se beneficiar sozinhos e continuarem a ter poder sobre os recursos. (Informante 2)21
Quando as pessoas estavam a fazer garimpo, em sítios como Ancuambe, a polícia veio e arrancou a documentação dessas pessoas e depois exigiam que quem realizasse a atividade tivesse documentos. Essa atitude de retirar documentos e depois exigir documentos aos que deviam praticar essa atividade era uma forma de retirar aquelas pessoas que se encontravam ali porque depois aquelas pessoas passavam para uma situação de ilegal. Sem sombra de dúvidas que isso criou sentimento de revolta e influenciou para o início dessa guerra. (Informante 3)22
Eu não sei bem. Mas pelo que tive conhecimento, essas pessoas dizem que estão a trazer salvação para a população local. Dizem que o Governo não consegue satisfazer as nossas necessidades e que esse mesmo Governo anda a roubar os nossos recursos,
nos deixando na pobreza. Então, eles dizem que devemos abandonar o Governo e seguir a lei deles [Lei Islâmica - Sharia]. Acredito que essas são as motivações dessa luta.
Acredito que eles usam os muçulmanos para penetrarem em Mocímboa, para convencer mais jovens em Mocímboa. E muitos jovens de Mocímboa se juntaram porque eles que são donos daquela terra não gostam de vientes, dizem que Mocímboa é deles. (Informante 4)23
Acho que tudo envolve a própria insatisfação dos nativos. Chamam pessoas do sul do país para trabalharem nas empresas e outros lugares dentro do nosso distrito, então há este sentimento de que nós os donos não estamos a beneficiar daquilo que são os nossos recursos. (Informante 5)24
Até onde eu sei, a razão disso são as células terroristas que estavam inativas e aproveitaram-se da insatisfação da população contra o Governo e deram início a essa guerra. Ouvi com pessoas próximas de que as pessoas que encabeçaram a guerra são estrangeiros que chegaram em 2013 e se instalaram primeiro em Niassa e começaram a fazer negócios pessoais. Vieram em Cabo Delgado e começaram a recrutar pessoas dizendo que estamos a fazer isso porque queremos fazer guerra, visto que os moçambicanos têm muitos recursos e não estão a saber explorar. (Informante 6)25
A partir das análises que estes testemunhos nos dão, em nenhum momento surge a ideia de que o que está na base da guerra sejam desavenças religiosas ou uma ação externa do terrorismo internacional - algo que contrapõe as simplistas e triviais alegações oficiais e dos meios de comunicação26. Ao estar lá (onde o fenómeno ocorre) percebe-se, realmente, haver razões internas que são reais, mas bastante complexas, e que não devem ser negligenciadas. Temos visto que várias análises têm invocado muito os fatores externos como principais progenitores da guerra, mas as testemunhas dos que viram o início do fenómeno e sentiram na pele as nefastas implicações dessa guerra, invocam a primazia de problemas internos na génese desse terror.
ii. Implicações internas
Para a nossa memória coletiva e reflexão individual. Nessa entrevista, trabalhamos com refugiados de todas as faixas etárias, entre crianças, homens e mulheres. Aqui expomos vozes de refugiados da guerra de Cabo Delgado que estão acolhidos na Cidade de Nampula, no bairro de Namicopo. Nessa entrevista, aquando das implicações da guerra, foram envolvidos 5 refugiados, dos quais 2 são adolescentes, cujas narrações são apresentadas a seguir.
Lembro muito bem o que aconteceu. Eu estava na casa dos meus avós a brincar com os meus 3 irmãos porque no dia anterior os meus avós haviam organizado uma pequena cerimónia familiar. Muitos já haviam ido embora. Nossa mãe já havia adiantado a casa com o meu padrasto. Depois começamos logo a ouvir sons de armas. Quando ouvimos isso, percebemos que os mashababos estavam a atacar de novo, mas dessa vez haviam chegado na nossa aldeia. Os meus avós me disseram para levar meus irmãos e fugir para a costa apanhar barco e fugir. Levei os meus irmãos e fugi. Quando cheguei na costa, encontrei um barco com gente. Primeiro fomos a Pemba, mas depois um amigo do meu falecido pai nos levou a Nampula […] desde esse dia dos ataques [lágrimas escorrendo nos olhos] nunca mais vi nossa mãe e nossos avós. (Informante 7)27
A minha mulher e os meus dois filhos foram queimados dentro com a casa. Eles trancaram os meus filhos e minha mulher e depois colocaram fogo na casa. Eu não sei o que lhes fiz para terem-me feito isso. Eu estava no mato escondido, queria ter feito algo, mas não podia porque os assassinos já haviam ocupado toda a aldeia. Quando penso nisso fico com dores no coração e agora ando com problemas de tensão.
O Governo nos esqueceu. Precisamos de muitas coisas porque depois da guerra fomos abandonados à nossa sorte. Agradecemos muito por vocês terem vindo. Contem a todos o que vocês ouviram e esperamos que voltem para nos dar resultados positivos. (Informante 3)28
Está a me perguntar o que isso provocou na nossa vida? Meu senhor, essa situação destruiu nossas vidas e nossas casas. Destruiu nossas machambas e celeiros. Destruiu nossas casinhas onde invocávamos nossos antepassados e os oferecíamos nossas oferendas. Destruiu nosso futuro e nos tornou pessoas sem terra. Eles mataram nossos familiares, da pior espécie e isso deixou traços que nunca iremos esquecer. Por exemplo eu, vi meus vizinhos serem decapitados em pedaços com facas e catanas. Vocês quando ouvem falar do que está a acontecer lá nem imaginam o que realmente está a acontecer na realidade. Isso vai nos marcar para toda a vida. (Informante 8)29
Essa guerra nos deixou mais pobres. Pelo menos antes tínhamos nossas machambas onde cultivávamos o pouco que conseguíamos. Hoje dependemos da ajuda de pessoas de boa-fé para sobreviver. Não temos o que comer, meus filhos passam muita fome, diferentemente de como a nossa vida era na nossa terra. Perdemos nossas machambas na aldeia onde estávamos, e aqui não consigo ter trabalho. (Informante 5)30
[…] Tenho 13 anos. A nossa vila foi atacada. Mataram muitas pessoas. Eu e meus familiares conseguimos fugir. Muitos dos meus amigos foram levados pelos mashababos. Hoje eu tenho muito medo. Quando estou na tenda fico com roupa e sapatos vestidos para que quando eles chegarem eu fugir. (Informante 9)31
A partir desses testemunhos identificamos a erosão da unidade familiar, a erosão das práticas culturais, e o aumento da pobreza (extrema) como principais implicações apontadas pelos próprios refugiados. Outrossim, o trauma que a situação em si causa a essas crianças, mulheres e homens pode ser grave. Esse trauma muda a forma como eles se relacionam com a sociedade. Toda essa conjuntura cria um sentimento de descontentamento, revoltada, ira e abandono pelo Estado - e pelos "mashababos".
3. Implicações internas da guerra a partir de um olhar antropossociológico
Antes de mais, importa consubstanciar a lógica de que os estudos realizados nos últimos dez anos por associações diversas (Women and Law in Southern Africa Research and Education Trust, Moçambique [WLSA Moçambique], Centro Terra Viva [CTV], Centro de Integridade Pública [CIP], Instituto de Estudos Socioeconómicos [IESE], Sekelekani-Comunicação para o Desenvolvimento, KUWUKA JDA, Justiça Ambiental [JÁ], Cruzeiro do Sul) e as atividades de monitoria conduzidas pela Iniciativa de Transparência na Indústria Extrativa em Moçambique (ITIEM) e pela Coligação Cívica sobre Indústria Extrativa, apontam que o modelo baseado em megaprojetos e o extrativismo intensivo seguido por Moçambique tem provocado a degradação das condições de vida de mulheres, homens, crianças e idosos que vivem nas regiões de exploração. Por conseguinte, como já asseveramos na parte introdutória deste estudo, devemos partir da lógica de que por detrás, e muito para além, dos números estão em causa pessoas, seres humanos. Homens, mulheres e crianças, que perdem suas vidas e meios de subsistência por uma guerra sangrenta, aterrorizante e (des)conhecida, conforme mostram as entrevistas que fizemos. Outrossim, como dissemos no subtópico anterior, a desarticulação entre crescimento económico e melhoria das condições de vida é, entre outras, uma das razões a ter em consideração para compreender a turbulência social e até a violência que se vive no país, em particular nas províncias do Norte (principalmente Cabo Delgado) onde os índices de pobreza são ainda mais acentuados, algo também comprovado pelos estudos de Brito (2017) e de Weimer e Carrilho (2017).
Investigadores de fenómenos sociais, em Moçambique, têm vindo a discutir estes assuntos e têm trazido para o debate evidências de que o país atravessa um período de capitalismo neoliberal extrativista com muitos impactos na economia, na vida social e política (Silva et al., 2015; Brito, 2017; Osório e Silva, 2017, 2018). Em "Estudo de caso: Cabo Delgado (Moçambique). A terra onde não se come o que se produz",Cunha et al. (2019) desenvolvem um pensamento segundo o qual os acontecimentos dessa região compartem num contexto global de debilitação das estruturas normativas e organizativas dos Estados, provocando a erosão da autoridade do Governo e das comunidades locais sobre os territórios. Os interesses sociais aparecem, assim, confrontados aos interesses dos grandes capitais, bem como aos de Governos submetidos às suas ordens. O mundo tem acompanhado os acontecimentos de violência que estão a ocorrer na província de Cabo Delgado desde o início de outubro de 2017. A partir de meados de 2020, os episódios de violência recrudesceram e têm vindo a provocar cada vez mais assassinatos, raptos, destruição e desaparecimentos, ocasionando aquilo que Cunha (2021: 34) designa de "maior crise humanitária dos últimos 30 anos em Moçambique". Mais de 800 mil pessoas foram forçadas a abandonar as suas aldeias, machambas, casas e bens para procurar refúgio em outros locais considerados mais seguros, tanto na província como em províncias vizinhas como Nampula, Niassa e até Sofala. Conforme indicam dados colhidos em vários relatórios de diversas organizações e entidades oficiais que estão no terreno a apoiar essas populações, como Save the Children e UNOCHA, pode-se inferir que a maioria das pessoas refugiadas são mulheres e crianças. Estudos de Constantino (2020) e do FMI (2019) indicam que a situação que se vive em Cabo Delgado pode condicionar a província a entrar num risco de “armadilha do conflito”. Após a chegada dos megaprojetos a esta província, a população local alimentou um elevado nível de expetativas relativamente à possibilidade de melhoria das condições de vida e, não se sentindo beneficiárias destes projetos, encontram-se insatisfeitas, sentindo ainda uma maior precarização das suas condições de vida. Este quadro torna-as alvos fáceis de recrutar para os insurgentes, principalmente os jovens. O conflito aumenta a pobreza, através da destruição e consequente atraso no desenvolvimento, e com esta a maior propensão da população para aderir ao conflito. Os estudos supramencionados alertam assim que, quando a população adere aos grupos armados, deixa de contribuir para o desenvolvimento local e contribui para a destruição, prolongando o círculo vicioso pobreza-conflito na região. No dia 30 de março de 2021, o Diretor Geral da Save the Children em Moçambique, Chance Briggs, disse:
As crianças testemunharam cenas de terror inimagináveis e indizíveis. Não podemos começar a imaginar como elas devem estar se sentindo, ou o medo no coração dos seus pais. Crianças separadas são particularmente vulneráveis e as nossas equipas estão fazendo tudo o que podem para identificá-las e reuni-las com suas famílias o mais rápido possível. […] Esta é uma situação terrível e horrível para as crianças, para os pais, para a comunidade e para todas as pessoas em Cabo Delgado.32
O mesmo, ainda acrescentou:
Fazemos um apelo à comunidade internacional para liberar fundos para assistir essas crianças. Elas precisam de apoio urgente, tanto para atender às suas necessidades básicas - comida, abrigo, cuidados médicos - quanto para ajudá-las a se recuperar mentalmente desses ataques. Isso significa apoio psicossocial por conselheiros treinados e gestão de casos de proteção para crianças que não sabem onde seus pais estão.
Estamos diante de um cenário em que mulheres, homens e, principalmente, crianças são alvos desse conflito, com uma série de violações de leis humanitárias e de direitos humanos. Constantino (2020) alerta que as intervenções do Governo não têm sido eficazes para garantir a segurança da população e os seus bens e o acesso aos serviços básicos. E, por outra face, a província regista muitos casos confirmados da Covid-19. Em Moçambique e, segundo a população local, há falhas na comunicação por parte do Estado e as comunidades continuam a não observar as medidas de prevenção contra esta doença, particularmente nos distritos afetados pelos ataques. Combinados, estes fatores, cimentam a perceção por parte da população local de abandono pelo Estado e pelo Governo. Todavia, essa autora prevê que a recente criação da Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN)33 é vista como resposta a esta perceção e espera-se que estimule o desenvolvimento inclusivo de Cabo Delgado e das outras províncias do norte do país, consubstanciando-se na melhoria das condições de vida e do bem-estar das populações locais, a curto e médio prazo. No demais, a autora supracitada ainda descreve que como implicações desse fenómeno observa-se que os setores produtivos que contribuem para a arrecadação de receitas e crescimento da economia local encontram-se paralisados ou funcionando muito abaixo do seu normal (especialmente nas zonas afetadas). São exemplos o setor da agricultura, das pescas, do turismo e o comércio em geral. Em outras palavras, os ataques geram insegurança e instabilidade no seio dos investidores, dos potenciais investidores e dos demais agentes económicos na região, o que constitui um fator significativo de risco para o ambiente de negócios na província e no país. O encerramento de estabelecimentos comerciais ou a redução da dinâmica da atividade económica, devido a situação de instabilidade, resulta numa relativa redução da contribuição fiscal naquele ponto do país, fragilizando a capacidade de arrecadamento de receitas próprias por parte do Estado. As incursões armadas barram a condução normal dos negócios, criam interrupção das rotas comerciais normais, propiciam a redução do investimento, da produção e da produtividade nos principais setores da economia local. Nas regiões onde há maiores registos de ataques, como Mocímboa da Praia e Palma, constatam-se encerramentos de estabelecimentos comerciais, por pilhagem e falta de produtos, o que propiciou o aumento dos preços de mercadorias. Essa situação de subida galopante de preços também é evidenciada nos estudos de Constantino (2020) e do OMR (2021). Numa outra perspetiva, a Amnistia Internacional relatou que:
Os abusos do "Al-Shabaab" têm sido bárbaros. Os combatentes do grupo matam deliberadamente civis, queimam aldeias e cidades e cometem atos brutais de violência com os seus machetes, com uma regularidade tal que os residentes usam duas expressões para diferenciar entre os métodos de assassinato, “decapitar” e “esquartejar”, esta última significando que a pessoa é cortada como um animal abatido. Os combatentes têm também raptado jovens mulheres e crianças, incluindo meninas de apenas sete anos. A maior parte das vezes, os membros do Al-Shabaab têm como alvo principal raparigas adolescentes, embora sequestrem também rapazes para fazer deles combatentes. É necessário investigar melhor a escala destes sequestros e violações que o Al-Shabaab tem cometido contra as crianças que tem capturado, incluindo violência sexual e potencial uso em hostilidades (Amnistia Internacional, 2021: 5).
Sob um olhar direto, os ataques armados em Cabo Delgado têm deixado um rastro de destruição. Várias infraestruturas públicas e privadas foram destruídas desde o início dos ataques. O setor da saúde mostra que as escassas unidades sanitárias existentes, e ainda em funcionamento, na província enfrentam diversas dificuldades, especialmente ligadas à insuficiência e falta de medicamentos e serviços de cuidados intensivos. De acordo com diferentes estudos do CIP (2020), os funcionários do aparelho do Estado também estão na lista dos refugiados desta insurgência. Quissanga e Meluco são distritos que atualmente se ressentem da falta de técnicos da saúde e de outros agentes e serviços públicos, facto incompatível com os dados dos documentos orçamentais (Conta Geral do Estado 2018 e Relatório de Execução Orçamental 2019) que apontam para uma taxa de realização das despesas de funcionamento de mais de 99%, nos últimos dois anos. Que mensagem isso traz do Governo? Revelará as suas fragilidades face ao justo uso do Orçamento do Estado, na execução das atividades públicas ao serviço das comunidades? Aquilo que no “papel” e nos discursos políticos são chamadas de "patrões do Governo"? Os tempos de pandemia que hoje vivemos, revelam-se portadores de mais um grande desafio ao setor da saúde nesta província. Esta situação combinada com a falta de serviços de saúde básicos, medicamentos e técnicos de saúde, criada pelos ataques, pode propiciar um alastramento exponencial de casos infetados por essa pandemia. As implicações, em consonância com o estudo de caso realizado por Cunha et al. (2019), como a degradação das condições de vida, no que se refere, por exemplo, à habitação, trabalho e bem-estar, tem envolvido o afastamento dos meios de atividades e sustento, a deslocação forçada e o reassentamento desses refugiados. O aumento da violência de género, abandono familiar involuntário, prostituição em troca de comida e subsistência e doenças sexualmente transmissíveis, nomeadamente o HIV/Sida e a externalização dos custos sociais, transforma-se numa responsabilidade cada vez mais pesada para esses refugiados. Um aspeto crítico neste panorama são as deslocações das populações. Em Moçambique a experiência da deslocação forçada é infelizmente recorrente. As guerras, tanto a de libertação quanto a dos 16 anos, que se seguiu à independência, e os anos de conflito político-militar desta década (2013-2017) no centro do país, foram responsáveis por enormes fluxos de refugiados, obrigados a abandonar as suas machambas, os seus rios, os cemitérios, as casas, as suas árvores, os seus ancestrais, com todos os traumas e perdas que isso implica (Cunha, 2014; Cunha et al., 2019, ASF, 2019; Nordstrom, 1992; Alexander, 1994; Chingono, 1994; Muianga, 1995). No contexto atual do recrudescimento da guerra em Cabo Delgado, podemos observar que estas têm implicado sempre o despojo de territórios e a deslocação de enormes faixas populacionais. Uma outra questão de maior importância prende-se com a destruição dos modos de vida das pessoas e, portanto, da garantia da dignidade. Por conseguinte, Osório e Silva (2018) indicam que uma das implicações se liga à radicalização étnico religiosa. Parece ter aumentado a incidência de pais que proíbem as meninas de frequentarem as escolas públicas, a obrigação de passarem por ritos de iniciação, assim como os casamentos de crianças e adolescentes. Ora, estes fatores parecem ter um impacto direto na sua formação enquanto cidadãs, assim como nas suas subjetividades e na forma de pensar o seu presente e futuro. Este elemento étnico religioso apresenta-se, de certo modo, como uma das facetas da desestruturação provocada pela guerra. De acordo com os dados disponibilizados no relatório do Observatório de Conflitos Cabo Ligado (2021), à medida que a crise dos deslocados vai piorando nesta província, grande parte da responsabilidade pela prestação dos cuidados aos deslocados recaiu sobre as comunidades acolhedoras. Com o Governo moçambicano despreparado para responder a uma calamidade desta dimensão e a comunidade internacional prejudicada por uma combinação de restrições orçamentais e lentidão por parte dos parceiros locais, cidadãos moçambicanos viram-se obrigados a preencher as lacunas providenciando alimentação e abrigo às pessoas que fugiam da violência no norte de Cabo Delgado. Segundo essa entidade, dado o número de lacunas que precisam ser preenchidas - quase um em cada três residentes de Cabo Delgado estão agora deslocados pelo conflito, e mesmo entre os mais recentemente deslocados, 70% vivem em comunidades de acolhimento - é notável como a resposta à crise por parte dos locais tem sido funcional e pacífica. Portanto, estamos diante da crise do Estado-Providência (Welfare State) para a Sociedade- Providência (Welfare Society). Eles perdem as suas machambas, os campos onde colhem as plantas com que fazem medicamentos, eles perdem as suas casas e as suas redes de apoio e vizinhança, eles perdem a sua autoridade construída e legitimada nas suas comunidades através dos seus conhecimentos ou estatuto construídos à custa da sua idade, da sua posição e função nas famílias. Desenraizados e despossuídos de muitos dos seus recursos materiais e simbólicos eles sentem, particularmente, o peso da perda da sua dignidade e dos seus modos de se representarem. Afastados dos seus territórios e das tecnologias que dominam para produzir alimentos ou resolver conflitos, eles ficam em uma posição de extrema vulnerabilidade.
Considerações finais
Por meio deste estudo pensamos ter demonstrado a importância de colocar a hipótese (a necessitar de mais estudos que a confirmem como válida ou não) de que na base da guerra não estão as desavenças religiosas ou uma ação externa do terrorismo internacional - essas, ao nosso ver, são análises imprecisas, ou visões simplistas - mas razões internas que são reais, porém bastante complexas, e que não devem ser negligenciadas. Assim sendo, para já discordamos com as várias análises que têm invocado os fatores externos como principais progenitores da guerra. Concordamos, por agora, com a ideia que invoca a primazia de problemas internos na génese desse terror, esperando que o nosso estudo tenha contribuído para corroborar a validade desta hipótese. Assim, as condições de pobreza e a falta de oportunidades de geração de renda em que vive a grande maioria da população da província são fatores que contribuem para o alastramento dos ataques na província, devido à relativa facilidade de recrutamento da população local para aderir à insurgência. As implicações internamente sentidas vão além da erosão da unidade familiar, das práticas culturais, e do aumento da pobreza (extrema), que são vistas como as principais sob o ponto de vista dos próprios refugiados, pois incluem o trauma que a situação em si causa a essas crianças, mulheres e homens que chega a ser muito grave. E, por outra, esses fatos conjunturais lhes imputam um sentimento de descontentamento, revolta, ira e de abandono pelo Estado e, obviamente, pelos "mashababos". Esse trauma muda a forma como eles se relacionam com a sociedade. Quem morre numa guerra são todas as pessoas que direta ou indiretamente enfrentam os tiros das armas, a desnutrição e a fome até à morte; as doenças que matam mais dia, menos dia; a tensão e o desespero que fazem explodir os corações e as veias; a vergonha que leva as pessoas à loucura; a água podre e insalubre que envenena e mata. Todas as mortes são vítimas assassinadas pela guerra. Em tudo, uma coisa é certa: crianças, mulheres e homens têm sido afetados pelo conflito. Em vários incidentes testificados neste estudo, seres humanos foram queimados vivos nas suas casas e baleados e mortos ou feridos por fogo indiscriminado