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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.45  Porto Aug. 2023  Epub Aug 15, 2023

https://doi.org/10.21747/08723419/soc45f3 

Entrevista

Para que possamos comer a fruta e os legumes que nos tornam saudáveis, os corpos dos trabalhadores agrícolas migrantes são danificados e a sua saúde é-lhes retiradaEntrevista com Seth M. Holmes

João Queirós

1 Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

2 Faculdade de Letras da Universidade do Porto


Com formação em medicina e doutoramento em antropologia, Seth M. Holmes é Chancellor Professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley, na Divisão de Sociedade e Ambiente e no Programa Doutoral em Antropologia Médica. Presentemente, dirige, na Universidade de Barcelona e na ICREA - Instituição Catalã de Investigação e Estudos Avançados, o projeto FOODCIRCUITS, financiado pelo European Research Council. Entre outros prémios nacionais e internacionais nos domínios da antropologia, da sociologia e da geografia, Holmes recebeu o Margaret Mead Award, atribuído conjuntamente pela Associação Americana de Antropologia (AAA) e pela Sociedade de Antropologia Aplicada (SfAA), pelo seu trabalho sobre imigração, saúde e trabalho agrícola nos Estados Unidos da América.

Na primeira década do presente século, Seth M. Holmes realizou uma pesquisa etnográfica de larga duração e grande profundidade junto de imigrantes mexicanos empregados em explorações agrícolas localizadas na Costa Oeste dos Estados Unidos da América. Os principais resultados dessa pesquisa - que incluiu longos períodos de observação participante em explorações agrícolas e viagens com imigrantes entre o México e os Estados Unidos da América - foram publicados em 2013 no livro Fresh Fruits, Broken Bodies: Migrant Farmworkers in the United States, traduzido e editado em Portugal em 2019 sob o título Corpos Resistentes. Imigração, racismo e trabalho agrícola nos EUA.

Nesta entrevista, realizada por videoconferência em abril de 2021, e aqui reproduzida parcialmente, Holmes enumera as principais transformações políticas, sociais e institucionais que a questão da migração para os Estados Unidos da América observou nos últimos anos, analisa os impactos da pandemia da COVID-19 na saúde e na vida dos trabalhadores agrícolas migrantes e reflete sobre os impasses - mas também sobre as possibilidades de mudança - do enquadramento científico e político da intervenção médica e social que neste âmbito é realizada1.

João Queirós (JQ): Desde que publicaste, originalmente em 2013, a tua etnografia dos trabalhadores migrantes mexicanos empregados nas explorações agrícolas da Costa Oeste dos Estados Unidos da América, vários aspetos deste fenómeno terão sofrido mudanças. Consegues recuar até àquela altura e apontar as principais transformações verificadas desde então, em particular no que respeita à situação social e política dos trabalhadores agrícolas mexicanos e das suas famílias nos EUA?

Seth Holmes (SH): Bem, como é sabido, os quatro anos que vivemos sob a presidência de Donald Trump foram especialmente difíceis para muitos imigrantes nos Estados Unidos, bem como para muitas pessoas não-imigrantes, pessoas racializadas, e especialmente para os imigrantes provenientes da América Latina. Muitos dos acordos internacionais referentes ao modo como devem ser processados os pedidos e ao modo como devem ser tratadas as pessoas que solicitam asilo não estavam a ser respeitados. Com a presidência de Joe Biden, esses acordos internacionais voltaram a ser seguidos, mas é uma situação complicada, com o agravamento das desigualdades económicas que resulta da existência de tratados como o NAFTA (North American Free Trade Agreement) ou o mais recente CAFTA-DR (Central America-Dominican Republic Free Trade Agreement with the United States), que contribuíram de várias formas para tornar mais precárias as vidas das famílias latino-americanas, levando a que, para estas, a migração seja cada vez menos uma escolha e cada vez mais algo forçado.

Desde que o meu livro Fresh Fruit, Broken Bodies2 foi publicado, em 2013, muitas coisas mudaram. Ficou ainda mais difícil atravessar a fronteira: as pessoas continuam a atravessá-la, por necessidade, e em resultado das vidas precárias que levam nas suas comunidades de origem, mas a taxa de mortalidade resultante do atravessamento aumentou. Isto é o resultado, em parte - trata-se de um tópico sobre o qual escrevi algumas coisas, mas que tem sido investigado de forma mais aprofundada por outras pessoas, nos últimos anos -, da militarização da fronteira entre o México e os EUA, que leva a que quem pretende atravessá-la opte cada vez mais por fazê-lo em zonas mais perigosas. Estas decisões de reforço da militarização da fronteira foram tomadas conscientemente por responsáveis políticos e por responsáveis das forças de patrulhamento fronteiriço.

Tenho também trabalhado mais com os membros mais jovens das famílias com que contactei e sobre as quais escrevi no meu livro. Nos últimos cinco anos, mais ou menos - na verdade, a primeira vez foi em 2016 -, os pais de alguns destes jovens, que nasceram durante o meu trabalho de campo, ou tinham então três ou quatro anos, e que estão agora no final do ensino básico ou no ensino secundário, pediram-me que fosse com os seus filhos e filhas ao México, para que eles e elas pudessem conhecer a família que permanece nas respetivas terras-natais, no sul do país, onde nunca haviam estado. O avô de vários destes jovens ficara muito doente e os pais queriam que os jovens conhecessem o avô antes de este morrer. E então, quatro anos seguidos, fomos de carro até ao sul do México, desde o estado de Washington, através da Califórnia e do Arizona, passando a fronteira, para passar o Natal e o Ano Novo, e o período entre estes dois momentos, com os familiares deste grupo de jovens. Acabámos por fazer juntos um filme, um documentário chamado Em Casa Pela Primeira Vez (First Time Home). Há também um website sobre este documentário, os quatro jovens com os quais fiz estas viagens são os correalizadores, e eu apoiei-os, procurei apoiá-los na angariação de financiamento, através de bolsas e pequenos financiamentos colaborativos… No fundo, é um filme que tenta contar, pela voz dos jovens e das suas famílias, a história de como é ser trabalhador agrícola migrante nos Estados Unidos, de como é ser uma pessoa indígena que está, em grande medida, separada de muita da sua história e herança, afastada da sua terra e dos seus parentes3. Este tem sido um processo muito interessante, sem dúvida.

Neste período, também aconteceram muitas coisas a algumas das pessoas de que falo no meu livro. Um dos protagonistas, que aliás cito frequentemente, tem agora 35 anos e está muito doente. Está doente devido a diabetes tipo 2, que é uma doença absolutamente tratável - há imensa gente com diabetes tipo 2 cuja saúde é muito boa -, mas o acesso ao sistema de saúde nos Estados Unidos apresenta tantas barreiras - é preciso ter seguro de saúde, que está geralmente associado a um contrato de trabalho, algo que não acontece no caso dos trabalhadores agrícolas; ou então é preciso viver num condado que providencie acesso a cuidados de saúde às pessoas que não têm seguro de saúde associado a um contrato de trabalho, e há muito poucos condados no país que o fazem - que a maioria dos trabalhadores agrícolas migrantes não tem acesso a cuidados de saúde. O último estudo que consultei revela que menos de 15% dos trabalhadores agrícolas nos EUA têm seguro de saúde. Enfim, este trabalhador de que falo ficou doente ao ponto de ser considerado legalmente cego, os seus rins já não funcionam, ele tem de fazer diálise três vezes por semana, mas o problema não é da doença, é do sistema de saúde, que não possibilitou que esta pessoa tivesse acesso a tratamentos funcionais muito simples e baratos.

A outra coisa que notei, mais recentemente, durante o período da COVID-19, é que esta ajudou a tornar mais evidentes os mecanismos da desigualdade no mundo e, em particular nos Estados Unidos da América, os mecanismos do capitalismo e do racismo, e o modo como estes se interligam e podem ser realmente violentos para os corpos das pessoas, dos trabalhadores. Os trabalhadores agrícolas nos Estados Unidos foram considerados trabalhadores essenciais, pelo que lhes foi solicitado que continuassem a trabalhar durante a pandemia, mas, por outro lado, não lhes foram providenciadas máscaras, nem lhes foi dada a possibilidade do distanciamento físico, tiveram de trabalhar exatamente nas mesmas condições que tinham antes. Durante o mês de maio de 2020, estive a colaborar voluntariamente com os Médicos Sem Fronteiras, na Flórida, com trabalhadores agrícolas provenientes sobretudo da Guatemala, porque um dos condados daquele estado estava a providenciar testes à COVID-19 e a prestar apoio nos casos em que tinha de realizar-se isolamento e quarentena, mas apenas nas áreas mais ricas do condado, nas cidades costeiras e nas zonas balneares, onde reside sobretudo população branca; na zona central, onde se localizavam os trabalhadores agrícolas migrantes, durante muito tempo, não houve testagem, nem havia apoio em casos de necessidade de isolamento e quarentena. Os Médicos Sem Fronteiras e um outro grupo juntaram-se à administração local, bem como a uma extraordinária organização de trabalhadores migrantes que ali existe, e providenciaram os testes e algum apoio às pessoas que tinham de ficar em isolamento.

Mas, naquele mês, conheci muitas pessoas cujos familiares, pais, filhos, irmãos, tinham morrido de COVID-19, e foi deprimente e revoltante ver o que se passava ali.

E há também a questão dos despejos. Apesar de, durante a pandemia, ter sido promulgada uma lei que suspendia a possibilidade de despejo, pelo menos três famílias Triqui com as quais trabalhei e sobre as quais escrevi no meu livro - as famílias Triqui são famílias mexicanas indígenas que se concentram sobretudo na Costa Oeste dos EUA, trabalhando habitualmente na agricultura -, foram despejadas. Duas delas, de forma irónica e muito dolorosa, foram despejadas na semana do Dia de Ação de Graças [Thanksgiving]: quem sabe a origem desta comemoração nos Estados Unidos, pode imaginar quão doloroso foi o despejo destas famílias nesta altura. Alguns dos jovens Triqui que conheci tiveram de abandonar a escola, porque foram despejados, as aulas estavam a acontecer todas online, ficaram impossibilitados de continuar a acompanhá-las… Mas as famílias também se organizaram e apoiaram mutuamente, e receberam apoio de grupos e organizações de indígenas que trabalham no âmbito do desenvolvimento comunitário - eu fico sempre surpreendido com a capacidade destes trabalhadores migrantes para se organizarem e apoiarem mutuamente.

JQ: Esse é realmente um tópico interessante, e que é abordado na parte final do teu livro, que é a capacidade que estas pessoas demonstram para a mobilização e a organização comunitária, mesmo perante condições laborais e de vida muito difíceis. Como vês a possibilidade de afirmação e consolidação destas formas de organização comunitária e de eventual ação coletiva?

SH: Nos Estados Unidos, a taxa de participação sindical tem vindo a diminuir muito desde os anos 1970 e 1980. Esta é uma realidade que talvez não seja completamente compreensível para os europeus, mas estamos a falar de níveis de sindicalização muito, muito baixos. Há alguns sindicatos e organizações fortes, na Flórida, nas Costas Leste e Oeste do país, a United Farmworkers tem uma presença forte na Califórnia e em outros estados, há mais algumas organizações de trabalhadores agrícolas que estão a crescer, algumas com forte presença de trabalhadores indígenas, por exemplo, a Piñeros y Campesinos Unidos, no Oregon, e também uma organização no estado de Washington chamada Familias Unidas por la Justicia, que tem concretizado algumas iniciativas impressionantes - por exemplo, processaram o estado de Washington por este permitir que os trabalhadores agrícolas trabalhassem sem direito a pausa para o almoço ou a pausas para idas à casa de banho, e conseguiram inclusive alterar aspetos do sistema de pagamento dos trabalhadores -, mas o quadro geral do capitalismo, da racialização e da desigualdade não parece estar a melhorar… Se algo está a mudar, é para pior, nos EUA. Ao mesmo tempo que parece haver maior consciência e discussão sobre o racismo, sobre a necessidade de combater o racismo e o capitalismo racial, há também o recrudescimento do nacionalismo, da supremacia branca, do racismo em si. Por isso, sinto-me de certo modo esperançado, porque a resistência e a organização que vejo e as discussões abertas que ouço sugerem uma mudança, mas não deixo de estar preocupado ao ver a força do racismo e do capitalismo, quer nos Estados Unidos, quer à escala global. O capitalismo e o racismo são poderosos - parece-me, por isso, muito importante que todos pensemos de que forma podemos passar à prática, para atuar de forma solidária e coletiva.

JQ: Voltando à questão do acesso aos cuidados de saúde, e retomando um outro tópico sobre o qual tens escrito bastante, que diz respeito à crítica que pode ser feita do olhar clínico que é lançado habitualmente sobre os trabalhadores migrantes e as suas condições de saúde, um olhar que tende a desvalorizar as respetivas determinantes sociais, vês mudanças a acontecerem a este nível?

SH: Essa é uma boa questão. Nos últimos cinco ou seis anos, talvez, têm sido crescentes os movimentos e demandas por cuidados de saúde para todos. A iniciativa Medicare for All é, de acordo com estudos de opinião, muito popular, mas o presidente Trump opôs- se-lhe totalmente, opondo-se também ao financiamento público de seguros de saúde privados. O presidente Biden é também contra o Medicare for All, e contra cuidados de saúde universais, ainda que apoie algo próximo daquilo que Barack Obama defendia, que era o financiamento público, para todas as pessoas, de seguros de saúde privados - medida que, apesar de tudo, seria melhor do que tudo aquilo que já tivemos a este nível nos EUA. Com Bernie Sanders e outras pessoas, tem crescido o apoio à provisão universal de cuidados de saúde, algo que seria muito importante nos Estados Unidos. Eu espero que as pessoas que têm pressionado os políticos neste sentido continuem a fazê-lo e a ganhar força. Olhando para os estudos de opinião, há tanta gente a apoiar o Medicare for All... A experiência das pessoas mais velhas, que têm acesso ao Medicare, a experiência das famílias, que veem as vantagens do acesso dos seus membros mais velhos a cuidados de saúde de qualidade, tem sido muito boa e isso tem ajudado as pessoas nos Estados Unidos a não terem tanto medo do envolvimento do Estado na garantia dos seus cuidados de saúde, porque o programa tem funcionado muito bem, a múltiplos níveis. Nos Estados Unidos, há sempre muita desconfiança quanto à participação das instâncias estatais neste domínio, o que dificulta tudo.

JQ: A pandemia da COVID-19 terá contribuído para mudar um pouco essa perspetiva, reforçando as demandas por cuidados de saúde universais?

SH: Preocupa-me que a pandemia da COVID-19 tenha sido de tal forma politizada que isso não tenha podido verificar-se. Sob a presidência de Trump, todas as principais recomendações sanitárias foram desconsideradas; muitas pessoas, incluindo muitos governadores de estados, como foi o caso do governador DeSantis, na Flórida, não seguiram as recomendações, recusando o uso obrigatório de máscara, etc., por isso não estou certo de que a pandemia da COVID-19 tenha ajudado. Em muitos aspetos, dividiu- nos ainda mais, em resultado da respetiva politização.

Muitos profissionais que, como eu, são médicos e cientistas sociais, antropólogos, especialistas em estudos americanos ou estudos culturais, historiadores, entre outros, têm insistido, nos últimos anos, naquilo que podemos designar como competência estrutural (structural competency). E fazemo-lo, em grande medida, porque, nos Estados Unidos, todas as profissões da saúde, o sistema de formação, escolas de medicina, escolas de enfermagem, estágios e internatos, são baseadas em competências (competency-based). Acontece que essas competências radicam na aprendizagem das componentes biológica, biomédica, farmacêutica, que subjazem à prática clínica a desenvolver com o paciente, individualmente considerado. Ora, como Jonathan Metzl defendeu originalmente no seu livro The Protest Psychosis, o crescimento das desigualdades sociais e o crescimento das desigualdades de saúde nos Estados Unidos impõe a posse desta competência estrutural - é necessário que as médicas e enfermeiras saibam como as estruturas económicas, sociais e políticas, que são frequentemente antidemocráticas, e que operam contra a igualdade, afetam os indivíduos, os corpos que estão a ser tratados. Em consequência, nos últimos anos, temos estado a desenvolver currículos académicos em escolas de medicina e escolas de enfermagem que propõem ideias e formas de trazer as ciências sociais para a transformação do modo como os profissionais de saúde pensam e atuam. Este tem sido um processo empolgante, a interação com pessoas dos movimentos ligados à área da saúde no Brasil, com o movimento da medicina social na América Latina… Tem sido interessante pensar no modo como podemos mudar os cuidados de saúde, de uma forma que permita que estes não sejam tão individualísticos, que não culpem os próprios pacientes pelas suas condições, ao basearem-se em assunções erradas sobre os seus comportamentos… Tem sido um processo interessante e tenho alguma esperança na possibilidade de alguns grupos e organizações pegarem nestas ideias, incorporando-as no que será uma forma diferente de médicos e enfermeiros interagirem com os seus pacientes, e interagirem com pacientes racializados, ou com pacientes imigrantes. (…) Uma questão transversal, e que tem funcionado como elemento instigador da minha pesquisa, é a constatação - também abordada por outros autores, como Daniel Rothenberg, no seu livro With These Hands - de que as últimas mãos que tocaram, fisicamente, a fruta, a baga ou a laranja que podem ser compradas num mercado ou num supermercado, foram as mãos de um trabalhador agrícola migrante. A fruta foi depois metida em caixas, foi transportada em camiões, foi lavada, foi tirada das caixas e colocada à disposição dos clientes do supermercado, mas, em muitos casos, as últimas mãos humanas que, de facto, tocaram naquela fruta foram as mãos de trabalhadores agrícolas migrantes. E depois somos nós, as nossas mãos são as mãos que tocam na fruta a seguir àquelas. E essa realidade, a realidade dessa troca entre mãos, de algum modo… marcou- me. Porque é algo que não é habitualmente pensado, ou conhecido, ou falado. As pessoas, quando compram frutas ou vegetais nos supermercados, não pensam nisso. Essa troca direta, entre mãos, tornou-se, por isso - logo quando comecei a minha investigação -, algo claro e muito relevante para mim. Quando estava a realizar o meu trabalho de campo, o dano infligido nos corpos dos trabalhadores agrícolas revelou-se evidente. Eu também sou médico, e muito do meu trabalho enquanto médico foi realizado em cuidados de saúde primários de algum tipo, por isso também é claro para mim, enquanto médico de cuidados de saúde primários a trabalhar em clínicas, que eu devo recomendar às pessoas que comam frutas e legumes, isso faz parte do meu trabalho - as frutas têm muitas vitaminas, os legumes são mais saudáveis do que os alimentos com muitos hidratos de carbono ou gorduras, por isso recomendamo-los muito. De certa forma, essa metáfora, ou a realidade, de alguns corpos se tornarem mais saudáveis em oposição direta com corpos, que são habitualmente corpos racializados - e até migrantizados, isto é, sinalizados e categorizados como estrangeiros, como externos, como estranhos, como outros -, que estão a ser danificados, magoados… Isto tornou-se, para mim, muito claro, em especial depois da publicação do meu livro.

Havia nessa altura um grande debate nos Estados Unidos sobre a reforma geral das leis de imigração, e a proposta mais progressista apontava para a existência de uma espécie de caminho de acesso à cidadania, um caminho que seria muito longo, duraria qualquer coisa como quinze anos, para pessoas que estavam nos Estados Unidos sem documentos, e que assim poderiam vir a tornar-se cidadãs do país. Durante esse período até à obtenção da cidadania, estas pessoas teriam de pagar todo o tipo de impostos - algo que elas já fazem, aliás; eu mostro isto no meu livro: os migrantes, de certo modo, acabam por pagar mais impostos do que todas as outras pessoas, porque ganham muito pouco dinheiro, e o valor dos impostos que pagam até lhes deveria ser reembolsado, mas, como estão indocumentados, não podem receber os reembolsos, o dinheiro fica retido pelo Estado. Enfim, durante aquele debate, um dos pontos que mais sobressaía era o facto de muitos legisladores nos Estados Unidos simplesmente não quererem que os trabalhadores agrícolas migrantes indocumentados recebessem cuidados de saúde enquanto não fossem cidadãos do país, mesmo estando a pagar impostos. Eu lembro-me de ouvir isto e foi aí que se tornou realmente evidente para mim, esta troca… Repara: nós somos saudáveis porque estas pessoas providenciam as coisas que nos ajudam a ser saudáveis, mas o ato de providenciar a todas as outras pessoas essas coisas faz com que os seus corpos sejam danificados e a sua saúde lhes seja retirada. Lembro-me de escrever um artigo de opinião para um serviço noticioso apresentando este argumento e de compreender realmente como ele é significativo. E, desde então, tenho vindo a desenvolver esta noção e este argumento de uma ligação indissociável entre os trabalhadores agrícolas migrantes, e os seus corpos, e toda a gente que come a fruta que eles produzem, e os seus corpos, e de como ignoramos esta relação, a relação que une as duas partes - elas estão intimamente relacionadas entre si, mas nós avaliamo-las e categorizamo-las como se fossem coisas diferentes, e parece-me que essa separação desempenha um papel importante na produção das exclusões que se observam relativamente ao acesso a cuidados de saúde, à educação, à cidadania, etc. (…) O título do meu livro (no original publicado nos EUA), Fresh Fruit, Broken Bodies, visa precisamente lidar de forma mais clara com esta questão, ele resultou de conversas com muitas pessoas, com trabalhadores agrícolas Triqui, com muitos antropólogos, (…) e a escolha de um termo no particípio passado, quebrado (broken), corpos quebrados (broken bodies), tem precisamente o intuito de colocar a tónica numa ação que acontece a partir do exterior, trata-se de algo que é quebrado por ação de uma força ou de um sujeito externo. Isto tenta passar a ideia de uma força estrutural: quem, ou o quê, quebra estes corpos? Quem faz isto, de quem é a responsabilidade?

Notas

1 A versão integral desta entrevista, em que participaram também Valéria Macedo, antropóloga e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, Brasil, e Cristiana Bastos, antropóloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Portugal, está disponível em formato áudio em https://radiogabriela.org/outros-livros/, correspondendo à terceira emissão do podcast “Outros Livros”, uma iniciativa conjunta da editora Outro Modo e da Rádio Gabriela.

2 Holmes, Seth M. (2013). Fresh Fruits, Broken Bodies: Migrant Farmworkers in the United States. Berkeley: University of California Press. O livro está publicado em Portugal em formato físico e versão e-book: Holmes, Seth (2019). Corpos Resistentes. Imigração, racismo e trabalho agrícola nos EUA. Lisboa: Outro Modo.

João Queirós. Doutorado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, é Professor Adjunto da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto e Investigador Integrado do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto. E-mail: jqueiros@letras.up.pt

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