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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.23 no.4 Lisboa Dec. 2016

 

PÁGINA DO PRESIDENTE / PRESIDENT LETTER

Precisamos Mais Medicina Interna…

We Need More Internal Medicine ...

Luís Campos

Diretor Serviço de Medicina Interna; Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental – Hospital São Francisco Xavier, Lisboa, Portugal

Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

 

Precisamos mais Medicina Interna para os nossos doentes! Existem muitas oportunidades à nossa frente para que os internistas tenham uma contribuição significativa para melhorar o acesso, a efectividade, a equidade, a continuidade, a adequação e a eficiência dos cuidados que prestamos aos nossos doentes, contribuindo para a sustentabilidade do sistema de saúde e para cuidados verdadeiramente centrados no doente. Mas, embora acreditemos que somos nós quem está melhor preparado para aproveitar essas oportunidades, se não nos capacitarmos e não avançarmos para concretizar essas oportunidades, alguém o fará por nós.

Na realidade, vivemos um tempo onde a conjugação de vários factores é, claramente, favorável à afirmação e crescimento da Medicina Interna.

Comecemos pela epidemiologia: o aumento da esperança de vida tem como consequência o aumento dos doentes crónicos e particularmente dos doentes idosos frágeis e com multimorbilidade. São estes doentes que invadiram os serviços de medicina, mas também os serviços cirúrgicos, todos os hospitais, todo o sistema de saúde, numa tal dimensão que os media chamam, metaforicamente, de silver tsunami.

Do lado da prestação de cuidados, o aumento exponencial do conhecimento em Medicina e a relação entre volume e qualidade, provada para a abordagem de algumas patologias e para a realização de muitos procedimentos, tem causado a fragmentação das especialidades e a geração de hiperespecialistas que sabem cada vez mais sobre cada vez menos, e este é um movimento inexorável e mesmo desejável, transversal a todas as áreas do conhecimento. O problema é que as necessidades e preferências dos doentes andam em sentido contrário e impõem um modelo holístico de abordagem destes doentes. Isto representa uma nova força para as especialidades generalistas, quer para a Medicina Interna, quer para a Medicina Geral e Familiar.

A crise económica, a diminuição, desde 2011, do orçamento para a saúde, tendência apenas invertida em 2017, e a pressão da introdução de medicamentos e tecnologias inovadoras acentuam, por seu lado, a necessidade do sistema ser mais eficiente e mais compreensível, reduzindo o desperdício, e isso constitui também um trunfo para a Medicina Interna, que tem na história clínica, no exame objetivo e numa abordagem racional do doente as suas principais ferramentas.

Na Europa Central e do Norte, assim como em grande parte da América Latina, esta evolução tem exposto uma enorme dificuldade em lidar com estes desafios. É que estes países optaram pela dupla titulação e a maior parte dos internistas tem uma subespecialidade de órgão ou sistema. Ora, a fragmentação das especialidades faz com que eles tenham dificuldade em manter a capacidade de um desempenho global a nível da subespecialidade e, muito menos, em manter a capacidade de atuarem como internistas. Os doentes, por sua vez, transitam de especialidade de órgão para outra especialidade de órgão, num modelo reconhecidamente disfuncional. Portugal é, provavelmente, o país no mundo que melhor soube preservar a vocação generalista da Medicina Interna e a posição nuclear da especialidade no hospital, logo seguido de Espanha. Esta feliz peculiaridade deve-se principalmente a quatro fatores: o impedimento da dupla titulação, desde 1994, a regulação pelo Estado do número de internos para cada especialidade de acordo com as necessidades do país e a capacidade formativa, o reconhecimento da importância da Medicina Interna pelas sucessivas equipas ministeriais da saúde e o prestígio e a forma como os internistas portugueses têm defendido a Medicina Interna. O resultado é que Portugal é o segundo país da OCDE com melhor ratio entre as especialidades generalistas e as outras.1

Esta necessidade duma especialidade generalista no hospital foi reconhecida, no meio dos anos 90, nos EUA, o que originou o aparecimento dos hospitalistas, especialistas que actuam nos hospitais e têm um perfil parecido com os internistas portugueses, embora considere o nosso modelo mais adequado. Os hospitalistas são os especialistas que mais têm crescido nos EUA, tendo ultrapassado os 50 000 em 2015, e estão, literalmente, a tomar conta dos hospitais americanos.2

Os internistas, em Portugal, têm capacidade para abordar todas as doenças médicas dos adultos, seja nos serviços de urgência, nas enfermarias ou no ambulatório, podem tratar a maioria destas doenças, decidir quando necessitam a cooperação de outras especialidades ou em que circunstâncias devem referenciar os doentes a outras especialidades. Além disso, têm capacidade para abordar os doentes sem diagnóstico, tratar as doenças sistémicas e prestar cuidados paliativos.

Quais as oportunidades que se abrem à nossa frente?

Em primeiro lugar temos que evoluir de serviços monoespecializados, para grandes departamentos médicos, onde os internistas tomem conta de todos os doentes médicos, coordenando a intervenção das outras especialidades. Em Portugal, este modelo assistencial está apenas implementado no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, no Hospital da Luz, em Lisboa, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos e, mais recentemente, no Hospital CUF Porto, onde é uma aposta forte do grupo José de Mello. Este modelo altera radicalmente o ratio de internistas versus outros especialistas de órgão ou sistema de 1:3 para 1:1.

Outra necessidade imperiosa é alterar o modelo de apoio aos serviços cirúrgicos, onde os internistas só são chamados, muitas vezes, tarde de mais, quando os doentes sofrem complicações. Os internistas devem estar em permanência nos serviços cirúrgicos ou médico- cirúrgicos, numa lógica de cogestão. Os doentes que entram nestes serviços devem ser acompanhados desde o início pela Medicina Interna para otimizar a condição pré-cirúrgica dos doentes e prevenir as complicações. Este modelo já está implementado, por exemplo, no Hospital da Luz, no Hospital de Nossa Sra. da Ajuda - Espinho e no Hospital São Francisco Xavier.

No que respeita ao ambulatório hospitalar, deverá haver um maior investimento nos hospitais de dia, os quais podem evitar muitos internamentos e permitir altas mais precoces. A hospitalização domiciliária deve ser disseminada a todos os hospitais, como forma de manter em casa uma percentagem de doentes que hoje ingressam nas enfermarias, diminuir a pressão sobre os serviços de medicina e reduzir os custos. A hospitalização domiciliária está amplamente implementada em Espanha e começou há um ano no Hospital Garcia de Orta. A disseminação de equipas e unidades de cuidados paliativos em todos os hospitais está legislada como uma obrigação para todos os hospitais. Nós defendemos que estas devem estar dependentes do Serviço de medicina, ou pelo menos, serem asseguradas por internistas. A aposta em unidades diferenciadas como as de AVC, Cuidados Intermédios, Insuficiência Cardíaca ou de Doenças Autoimunes permite a abordagem destes doentes por equipas mais diferenciadas, num ambiente protocolado, melhorando a qualidade assistencial, a formação e investigação. Também os serviços de urgência, com ou sem equipas fixas, continuam a ser um palco privilegiado para os internistas.

Outra das prioridades é mudar o paradigma da resposta aos doentes crónicos que tem sido fragmentada, reactiva, episódica, através das urgências, centrada nas doenças e em que o doente é encarado como um sujeito passivo. Estes doentes têm que ter uma resposta contínua, integrada, preventiva, centrada no doente, em que este é encarado como um parceiro nos cuidados, uma resposta que resulte na redução das admissões nas urgências e dos internamentos hospitalares. Não há uma fórmula mágica, mas todas as soluções têm que passar por programas de cuidados integrados e por equipas multidisciplinares, que envolvam hospitais e cuidados primários, onde os internistas e os médicos de MGF tenham um papel fundamental. A integração de cuidados deve envolver, também, os cuidados continuados, os cuidados paliativos e a assistência social, só desta forma é garantida a continuidade de cuidados ao longo de todo o sistema.

Existem muitos exemplos a nível internacional com resultados, como o programa Barcelona-Esquerra, que envolve mais de meio milhão de habitantes desta cidade, o modelo Gesund Kinzigtal, na Alemanha, o programa Norrtaelje, na Suécia, o programa da Escócia, a introdução do conceito de “internista de referência” no hospital, para cada cidadão, além do médico de família, na Andaluzia, entre outros. Em Portugal a criação das Unidades Locais de Saúde, não garantiram, per se, integração de cuidados. As “reformas de proximidade” que esta equipa ministerial lançou e nas quais estamos envolvidos, e a introdução de incentivos à integração de cuidados na contratualização com os hospitais do SNS em 2017, o que sucede pela primeira vez, poderão ser um estímulo para o aparecimento destes programas. A Unidade Local de Saúde (ULS) de Matosinhos, a ULS do Litoral Alentejano, o Hospital São Francisco Xavier e o Hospital Garcia de Orta são hospitais que têm programas destes em implementação. A SPMI tudo fará para incentivar os internistas a envolverem-se e, nesse capítulo, está alinhada com a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Também as unidades da Rede de Cuidados Continuados Integrados, particularmente as de convalescença, beneficiariam com a presença de internistas, porque são os mesmos doentes complexos que abordamos nos nossos serviços.

Tudo isto são oportunidades para a Medicina Interna e mercado de trabalho para os nossos internos, mas não podemos abrandar o nosso esforço de formação de mais internistas em termos quantitativos e qualitativos, porque vamos precisar muito mais do que os 1000 internos que estão em formação. Doutra forma não vamos poder aproveitar estas oportunidades. Acresce a isto, o pico de reformas que vamos ter depois de 2019, com a reforma de muitos de nós, os que pertencíamos aos cursos de Medicina prévios à introdução do numerus clausus.

Por outro lado, temos que adaptar o internato, tornando-o mais flexível para permitir um equilíbrio entre a manutenção da nossa capacidade generalista, que é a nossa grande mais-valia, com o desenvolvimento de competências. Temos, também, que diversificar os critérios de progressão na carreira para não prejudicar a diversidade dos perfis de internistas que a Medicina Interna tem que estimular para fazer face à diversidade de modelos de cuidados e de ambientes onde está envolvida. O papel dos diretores de serviço é fundamental, para saberem integrar nos seus serviços estas diferentes expressões fenotípicas de ser internista, para mobilizarem as equipas para estes novos desafios e para convencerem as administrações das suas vantagens e da necessidade de reforçar a capacidade dos serviços com o recrutamento de mais internistas.

A Medicina Interna tem flexibilidade, multipotencialidade e é eficiente. Além disso os internistas portugueses são competentes e dedicados e, são essas características que têm permitido dar resposta à variabilidade da pressão sobre os hospitais nas urgências e no internamento e tem evitado ruturas no SNS. No entanto, este esforço a que os internistas estão sujeitos, com impacte relevante sobre a sua vida pessoal e familiar, aliado à diminuição do rendimento mensal e do preço das horas extraordinárias, tem lançado muitos na procura do duplo emprego e tem provocado um crescente burnout entre internos e assistentes. Este é um problema a que urge fazer frente, através de uma descriminação positiva da Medina Interna e de outras medidas que atenuem este problema e tornem o exercício da Medicina Interna mais compensador e atrativo.

 

Referências        [ Links ]

2. Wachter RM, Goldman L. Zero to 50,000 — The 20th Anniversary of the Hospitalist. N Engl J Med. 2016; 375:1009-11.         [ Links ]

 

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