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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.23 no.4 Lisboa dez. 2016

 

ARTIGOS DE REVISÃO / REVIEW ARTICLES

Infecções Urinárias Associadas a Cateter Vesical: Contributos para a Prática Clínica

Catheter Associated Urinary Tract Infection: Contributions for Clinical Pratice

MJ Lobão1, P Sousa2

1Serviço de Medicina, Hospital de Cascais

2Escola Nacional de Saúde Pública, Centro de investigação em Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa

Correspondência

 

RESUMO

As infecções associadas aos cuidados de saúde constituem uma das maiores complicações da medicina moderna que tem um peso muito significativo em termos de morbilidade, mortalidade e custos. As infecções do tracto urinário associadas aos cuidados de saúde destacam-se pela elevada prevalência e associação à utilização de um dispositivo médico invasivo (cateter vesical). Nesta revisão, os autores pretendem dar ênfase aos aspectos mais relevantes para a melhoria da prática clínica em relação às infecções urinárias associadas a cateter vesical. A utilização de estratégias eficazes de prevenção que incluam a redução do número de algaliações desnecessárias, permite reduzir significativamente o número de infecções assim como os custos directos e indirectos que lhe estão associadas. Paralelamente, é fundamental que os clínicos sejam capazes de efectuar correctamente o diagnóstico diferencial entre urinárias associadas a cateter vesical e bacteriúria assintomática. O tratamento da bacteriúria assintomática deve ser evitado, uma vez que não há benefícios clínicos na utilização de antimicrobianos neste contexto.

Palavras-chave: Bactérias; Cateterismo Urinário; Infecções Relacionadas a Cateter; Infecções Urinárias.

 


ABSTRACT

Healthcare associated infections are one of the major complications of modern medicine that represents a significant burden of morbidity, mortality and costs. Healthcare associated urinary tract infection assumes great importance because of its high prevalence and association with an invasive medical device (urinary catheter). In this review, the authors intend to focus the most relevant topics for clinical practice improvement in relation to catheter associated urinary tract infection. The use of effective prevention strategies, that contemplate reducing unnecessary bladder catheterizations, allows a significant reduction of infections as well as related direct and indirect costs. At the same time, it is fundamental that clinicians be able to correctly perform the differential diagnosis between catheter associated urinary tract infection and asymptomatic bacteriuria. The treatment of asymptomatic bacteriuria should be avoided since there are no clinical benefits of antibiotics use in this situation.

Keywords:Bacteria; Catheter-Related Infections; Urinary Catheterization; Urinary Tract Infections.

 


Introdução

Em 1999, o Institute of Medicine, no histórico relatório To Err is Human: Building a Safer Health System, alertou para os elevados custos humanos e financeiros decorrentes de erros e eventos adversos ocorridos durante a prestação de cuidados de saúde, identificando as Infecções Associadas aos Cuidados de Saúde (IACS) como um componente crítico da segurança do doente.1,2 O número de IACS tem vindo a aumentar ao longo das últimas décadas, tornando-se não só o evento adverso mais frequente, como também um dos mais estudados.3,4 Actualmente, as IACS são uma das maiores complicações da medicina moderna e têm um peso muito significativo em termos de morbilidade, mortalidade e custos.4,5 As Infecções do trato urinário destacam-se por serem as mais frequentes, estimando-se que correspondam a 30-40% do total,2,3,5,6 sendo maioritariamente associadas à algaliação.5 O interesse pelas infecções do trato urinário associadas a cateter vesical (ITUaCV) na comunidade científica internacional tem sido crescente, não só pela sua dimensão epidemiológica, mas também pelo surgimento de pressões externas associadas a alterações no financiamento hospitalar. Nos EUA, a partir do ano de 2008, a ITUaCV foi consideradas uma de oito never events. Tal classificação traduziu-se na decisão, pouco consensual, de não financiar as consequências dessa ocorrência indesejada uma vez que esta é considerada evitável, tendo em conta a evidência científica actual. Desta forma, os custos decorrentes, por exemplo, do prolongamento da estadia hospitalar, de exames complementares e da medicação que estejam relacionados com a ocorrência dessa infeção deixam de ser assumidos pelas seguradoras ou pelos doentes, passando a ficar a cargo dos hospitais. Ao colocar-se o ónus do lado do prestador, as administrações dos hospitais passaram a dar prioridade a este tipo de infeção. Os hospitais que não as reportam são ainda sujeitos a sanções adicionais.6–8 Neste contexto, têm surgido não só normas orientadoras mas também um número crescente de publicações que passam a centrar-se em dois aspectos fundamentais: i) desenvolvimento de estratégias de prevenção; ii) clarificação na distinção entre ITUaCV e bacteriúria assintomática.9

Neste artigo, os autores pretendem destacar alguns dos principais aspectos actuais que consideram poder ser mais importantes não só para percepção global da magnitude do problema e seu impacte, mas também para a melhoria da prática clínica em relação a esta IACS.

1. Um problema de Saúde Pública

1.1 INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA

Estima-se que entre 15% e 20% dos doentes internados sejam submetidos a algaliação de curta duração durante o seu período de internamento.5,10 Nos doentes algaliados a bacteriúria ocorre numa taxa entre 3%-10% por dia de cateterização,5,11 sendo esperada a sua ocorrência mesmo após a retirada de cateter vesical em cerca de 11% dos doentes, nas primeiras 24 horas.12

De acordo com alguns autores, 10% a 25% dos doentes com bacteriúria desenvolverão manifestações clínicas de infecção10 ou seja, no limite, poderemos dizer que um em cada quatro dos doentes algaliados poderão desenvolver uma infecção. A duração da algaliação é reconhecida como o factor de risco mais importante para o desenvolvimento da ITUaCV. No relatório da National Healthcare Safety Network (NHSN), referente ao ano de 2013, é referido que, nos hospitais americanos, a taxa de utilização média de cateteres vesicais variou entre 0,02 e 0,72 dias de cateter por dias de internamento e a taxa de ITUaCV entre 0 e 5,3 infecções por 1000 dias de cateter vesical (CV), dependendo do serviço hospitalar onde o doente foi admitido.13 Apesar dos serviços cirúrgicos e unidades de cuidados intensivos serem os que apresentam taxas mais elevadas de ITUaCV, a taxa desta infecção em enfermarias de Medicina Interna não é desprezível (1,5 infecções por 1000 dias de cateter).

A literatura internacional refere-se às infecções do tracto urinário como a IACS mais frequentes.2,3,5,6,14 No último inquérito de prevalência das IACS efectuadas pelo European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC), referente a 2012, Portugal destacou-se por ser o país com a maior taxa de prevalência de IACS (10,6%; IC 95%:[10,1-11,0]). As infecções do trato urinário, neste estudo também maioritariamente associadas à utilização do dispositivo urinário (60%), foram a terceira tipologia mais frequente (19%), antecedida pela pneumonia (19,4%) e pela infecção do local cirúrgico (19,6%).15 Em Portugal, os estudos de prevalência/incidência coordenados pelo Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA) têm sido dirigidos apenas a infecções específicas (infecções nosocomiais da corrente sanguínea e do local cirúrgico) e a populações de maior risco (unidades de cuidados intensivos de adultos e neonatais).16 Não estão disponíveis dados sobre a caracterização e incidência das ITUaCV em enfermarias gerais, nomeadamente em enfermarias de Medicina Interna.

1.2. MORTALIDADE E CUSTOS DAS IACS

As IACS constituem um importante “peso económico” para os sistemas de saúde. Uma meta-análise publicada por Zimlichman em 2013, quantificou em 9,8 biliões de dólares os custos das IACS no sistema de saúde americano.4 Em Portugal, o relatório elaborado pela Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado “Um futuro para a saúde”, os custos directos associados às infecções associadas aos cuidados de saúde foram quantificados em 280 milhões de euros.17

A relevância das ITUaCV em termos de mortalidade e custos relaciona-se sobretudo com a sua elevada prevalência, que torna a sua dimensão importante do ponto de vista cumulativo. As ITUaCV são ainda a principal causa de bacteriémia secundária associada aos cuidados de saúde, cuja taxa de mortalidade se estima ser de 10%-13%.5,11

1.3 A IMPORTÂNCIA DA PREVENÇÃO

Há cerca de três décadas que se reconhece que muitas das IACS podem ser preveníveis.14 Umscheid et al, verificaram que a utilização de estratégias de intervenção consideradas eficazes se poderia traduzir na redução das ITUaCV em 60 a 70%.18 Essas estratégias podem ser passivas ou interventivas.14

As primeiras referem-se aos sistemas de vigilância e respectivo feedback atempado de resultados enquanto que as segundas se subdividem em vários níveis: educacionais, de processo e do sistema.3 A aplicação destas medidas implica não só uma mudança de comportamento de cada profissional de saúde mas também uma mudança de toda a cultura organizacional das instituições de saúde sendo, por isso, um desafio para as organizações e para os sistemas de saúde modernos.

Nos EUA a prevenção das ITUaCV emergiu como uma prioridade, conduzindo à criação de uma parceria entre Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ) e a Health Research and Educational Trust para desenvolvimento e implementação de um programa de prevenção à escala nacional, que ficou conhecido como On the CUSP (comprehensive unit-based safety program): Stop CAUTI (catheter-associated urinary tract infection). Foram incluídos 906 serviços de 603 hospitais de agudos de 32 estados dos EUA, do Distrito de Columbia e de Porto Rico. Um dos principais resultados da implementação deste programa de prevenção de ITUaCV traduziu-se na redução da incidência desta infecção de 2,81 infecções por mil dias de cateter para 2,19 infecções por mil dias de cateter, tendo esta redução significado estatístico nos serviços de doentes agudos que não unidades de cuidados intensivos.19

Em Portugal, a preocupação com a prevenção deste tipo de infecção tem sido crescente e embora não haja um programa de prevenção multimodal estruturado, a Direcção Geral de Saúde emanou a norma 019/2015, intitulada “Feixe de Intervenções” de Prevenção de Infeção Urinária Associada a Cateter Vesical”, de implementação obrigatória nos Hospitais de agudos e Unidades de Cuidados Crónicos.

2. DEFINIÇÕES E NORMAS DE ORIENTAÇÃO: QUAL O IMPACTE?

Um dos problemas que tem dificultado a análise e comparação de dados publicados nesta área, prende-se com importantes diferenças metodológicas, que residem na ausência de consenso internacional relativamente às definições. As principais instituições que têm emanado documentos referentes às ITUaCV são, nos EUA, a Infectious Disease Society of America (IDSA) e o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) e, na Europa, mais recentemente, o European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC). Outras instituições têm produzido documentos que têm tido menor visibilidade e que, por isso, são menos citadas e menos utilizadas. A título de exemplo, refere-se a International Society of Chemotherapy working group on ITU in cooperation with the European Association of Urology que elaborou as European and Asian guidelines on management and prevention of cateter-associated urinary tract infections.20 A metodologia do CDC tem servido, sobretudo, propósitos de vigilância epidemiológica, pelo que as definições de caso implicam a confirmação laboratorial do agente envolvido. Este é porventura o aspecto major que distingue as orientações desta organização, em relação às ITUaCV, das do ECDC e da IDSA. Este dois últimos organismos dão mais ênfase aos critérios clínicos e colocam o enfoque na capacidade individual do clínico para efectuar o diagnóstico.9,21

Reconhecida a importância e a implicação destes aspectos, o ECDC encomendou um estudo para avaliar a concordância entre as suas definições e as utilizadas pelo CDC. Nesse estudo, realizado por Hansen et al, as ITU foram excluídas a priori atendendo às grandes diferenças entre as definições europeias e americana, o que traduz num problema real numa perspectiva de benchmark em relação a um de grupo infecções hospitalares frequente, nomeadamente fora do ambiente de cuidados intensivos.22 Deve ainda salientar-se que a diferença entre os dois sistemas de vigilância epidemiológica também se aplica a aspectos relacionados com os protocolos de colheita de dados. A heterogeneidade metodológica e de definições impede a comparação directa de dados e constitui um dos maiores desafios à investigação nesta área, resultando num reconhecido enfraquecimento da qualidade da evidência gerada.5

3. A IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL COM A BACTERIÚRIA ASSINTOMÁTICA (BA)

O diagnóstico da ITUaCV é feito com base em critérios clínicos, analíticos, laboratoriais e microbiológicos. Tendo em conta o preconizado pelo CDC, a ITUaCV é aquela em que se cumprem os critérios de ITU associada aos cuidados de saúde mas em que um cateter vesical tenha sido introduzido e estar mantido pelo menos há dois dias consecutivos no dia do evento; ou, caso no dia do evento o doente já não tenha cateter vesical, este tenha sido retirado no dia do evento ou no dia anterior, tendo este estado colocado pelo menos dois dias consecutivos. Os critérios do CDC que definem ITU adquirida no hospital, são os seguintes:23

i) O doente apresenta pelo menos um dos seguintes sinais ou sintomas sem outra causa reconhecida: febre (> 38ºC), disúria/hiperestesia supra púbica ou dor no ângulo costovertebral e tem uma urocultura positiva (=105 colónias por mL) com um máximo de duas espécies de microrganismos.
ii) O doente apresenta pelo menos dois dos seguintes sinais ou sintomas sem outra causa reconhecida: febre (> 38ºC), hiperestesia supra púbica ou dor no ângulo costovertebral e pelo menos um dos seguintes: a) tira reactiva positiva para a esterase leucocitária e/ou nitritos, b) piúria (= 10 leucócitos/mm3 ou = 5 leucócitos/campo, com objectiva de grande ampliação) na urina não centrifugada, c) observação de microrganismos no Gram da urina não centrifugada e urocultura com =103 e = 105 colónias/mL de não mais que 2 espécies de microorganismos.

Como já foi referido anteriormente, os critérios de diagnóstico definidos a nível europeu pelo ECDC são mais vastos e permitem incluir também os casos em que houve um diagnóstico clínico e laboratorial, em que foi iniciada antibioterapia empírica mas em que não foi identificado qualquer agente microbiológico.24

Em concordância com o que já foi referido anteriormente, tendo em conta a taxa de ocorrência de bacteriúria assintomática, é esperado que após 10 dias de algaliação a sua incidência seja muito elevada. Contudo, estima-se que em aproximadamente 75% a 90% de doentes com BA não haja qualquer evolução clínica, ou seja, que não se verifique o surgimento de sintomatologia sugestiva de ITU ou de sinais de resposta inflamatória sistémica.5 Regra geral, à excepção das grávidas e de doente submetidos a procedimentos urológicos, nomeadamente RTU-P,5,11,20,25 a BA não deve ser tratada já que não há qualquer benefício clínico na realização de terapêutica neste contexto.5,9,11,20,26 A evidência científica demonstra que a utilização desnecessária de antibióticos nestes casos está associada a aumento de resistências a antimicrobianos, surgimento de eventos adversos relacionados com a terapêutica, ocorrência de outras infecções nosocomiais, nomeadamente infecções por Clostridium dificille e elevados custos associados aos exames laboratoriais pedidos e à antibioticoterapia efectuada.27,28 Vários estudos têm demonstrado taxas de tratamento da BA na ausência de indicação clínica que variam entre 30% e 43%.27,29,30 Não são claros os motivos pelos quais se encontram taxas elevadas de tratamento da BA. Postula-se que o pedido de uroculturas possa não ser orientado por critérios clínicos, sugerindo-se que isso possa acontecer tendo apenas por base alterações macroscópicas da urina.5,11,25,31 Lacunas de conhecimento e/ou discrepância entre o conhecimento e a actuação prática parecem ser dois importantes obstáculos ao correcto procedimento perante uma BA.30

Conclusões

A ITUaCV, pela sua dimensão epidemiológica, constitui um problema de saúde pública com significativa repercussão a nível clínico, económico e social. A utilização de estratégias eficazes de prevenção que incluam a redução do número de algaliações desnecessárias e a adopção de boas práticas, quer na inserção, quer na manutenção do cateter vesical, permitem reduzir significativamente o número de infecções e, consequentemente, os custos directos e indirectos que lhe estão associados. É fundamental que os clínicos sejam capazes de efectuar correctamente o diagnóstico diferencial entre ITUaCV e bacteriúria assintomática. De uma forma geral, o tratamento da BA deve ser evitado uma vez que não há evidência sobre os benefícios clínicos na utilização de antimicrobianos neste contexto e, paradoxalmente, as consequências do seu uso acarretam prejuízos amplamente conhecidos, destacando-se o aumento das resistências aos antimicrobianos e o desperdício a nível económico.

 

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Correspondência: Maria João Lobão - lobao.mj@gmail.com
Serviço de Medicina Interna, Hospital de Cascais, Cascais, Portugal

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo

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