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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.24 no.1 Lisboa Mar. 2017

 

PÁGINA DO PRESIDENTE / PRESIDENT LETTER

As Mistificações à Volta das Urgências

The Mystifications Around Emergency Services

Luís Campos

Diretor Serviço de Medicina Interna; Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental – Hospital São Francisco Xavier, Lisboa, Portugal

Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

 

As urgências são uma das principais áreas de atividade dos internistas e são um dos alvos mais apetecíveis para os media e consequentemente mais sensíveis para os políticos, por isso é um dos temas de saúde onde as explicações simplistas e as soluções milagrosas mais proliferam. No entanto, se existe problema em que, pela sua complexidade, este tipo de abordagem demagógica é mais inadequado, esse problema é precisamente o das urgências.

Na realidade temos, em Portugal, um grave problema nesta área: somos o país europeu em que os cidadãos mais recorrem às urgências hospitalares (sete em cada dez portugueses visita anualmente um serviço de urgência), quando a média europeia é menos de metade deste valor, por outro lado, 40 a 50% destas admissões não são urgentes e podiam ser resolvidas noutro local.

A questão é que as urgências são, ao mesmo tempo, a confluência das disfunções do sistema de saúde, a montante e a jusante, e um local de escolha para os doentes, porque, apesar de tudo, quando recorrem às urgências vêm os seus problemas de saúde resolvidos. Esta situação tem-se mantido ao longo dos anos e o seu agravamento nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde tem sido amenizado pela proliferação dos chamados “Atendimentos Permanentes” no sector privado.

Mas porque é que os portugueses recorrem tanto às urgências hospitalares quando, em metade das situações, o seu problema podia ser resolvido pelos médicos assistentes? A explicação mais habitual é a falta de médicos de família, no entanto apesar do crescimento constante e significativo do número de médicos de família nos últimos 15 anos, o número de admissões na urgência não tem diminuído. Por outro lado não verificamos uma maior percentagem de doentes não urgentes (verdes e azuis da triagem de Manchester) nas regiões com maior carência de médicos de família. Poderíamos depois questionar-nos se seria um problema de acesso ao médico de família, agravado pela persistência de cuidados primários a duas velocidades: as Unidades de Saúde Familiares, resultantes da reforma dos cuidados primários, onde os doentes têm mais acesso aos seus médicos, e os centros de saúde tradicionais, apelidados de UCSP (Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados), onde este acesso é menor. No entanto, também o problema do acesso não parece ser muito significativo porque não existe uma diminuição do número de admissões na urgência nas regiões com mais USF e porque, quando se alargam os horários nos centros de saúde, em alturas de crise, como aconteceu neste Inverno, os centros de saúde mantêm-se com pouca procura e as pessoas preferem continuar a recorrer ao hospital. Podemos assim concluir que, quer a falta de médicos de família quer as questões no acesso não explicam per se este recurso exagerado às urgências hospitalares e será legítimo inferir se o problema não estará mais na falta de resolubilidade dos cuidados primários.

Por outro lado, alguns inquéritos concluem que muitos doentes procuram as urgências porque nestas podem realizar exames complementares, porque têm especialistas, porque estão próximas, porque estão abertas 24 horas e porque têm mais confiança nos hospitais.

Pensamos que os hospitais também não estão isentos de responsabilidades: a criação de alternativas para os doentes agudos não urgentes, dentro dos próprios hospitais, como sejam estipularem vagas nas consultas para doentes não programados ou promoverem um maior investimento nos hospitais de dia, seriam duas medidas possíveis.

Depois, é preciso olhar para um grupo particular de doentes que são os grandes utilizadores das urgências, mas também de todos os recursos na saúde, que são os doentes idosos, frágeis com polipatologia. Estes doentes são complexos, descompensam facilmente, e têm sido tratados de uma forma fragmentada, reactiva, episódica e através das urgências.

Assim, se quisermos diminuir o recurso às urgências temos que compreender melhor as causas deste problema e actuar sobre elas. Em função do que disse penso que será importante aumentar a capacidade resolutiva dos cuidados primários, implementar alternativas para os doentes agudos nos próprios hospitais, conscientizar os cidadãos para a necessidade de uma melhor utilização dos recursos em saúde e da preservação das urgências para os casos que realmente precisam, e implementar programas que promovam uma resposta proactiva, preventiva e integrada aos doentes crónicos, em particular aos grandes utilizadores da urgência, através de equipas que envolvam internistas, médicos de família e outras profissões, de forma a retirar estes doentes das urgências e do internamento.

Mas será que a sobrecarga das urgências e os longos tempos de espera se devem apenas ao excesso de recurso às urgências? Não nos parece. Existem problemas no funcionamento das equipas de urgência mas existe também o problema da acumulação de doentes na urgência por falta de vagas nas enfermarias, que mobiliza grande parte de capacidade da equipa que está na urgência.

Porque é que isso sucede? Há razões que são estruturais: em alguns casos temos hospitais subdimensionados para a população de referência, como é o caso do Hospital Fernando da Fonseca, por outro lado assistiu-se a uma diminuição temerária do número de camas nos hospitais de agudos, num país que já tem pouco mais de 60% do número de camas por mil habitantes, comparado com a média dos países na Europa, a necessidade de internistas tem crescido mais rapidamente que o número de internistas formados, a falta de resposta dos cuidados continuados que penaliza mais algumas regiões como a de Lisboa e Vale do Tejo e a falta de camas de cuidados paliativos. Mas, para além disso, os hospitais estão espartilhados em silos, de acordo com órgãos ou sistemas, um modelo cada vez mais inadequado para a tipologia de doentes que hoje temos que internar: doentes idosos e com multipatologia, doentes que beneficiariam mais de um modelo departamental onde a Medicina Interna tomasse conta dos doentes e coordenasse a intervenção das outras especialidades, tal como já existe no Hospital Pedro Hispano, no Hospital Beatriz Ângelo, Hospital CUF Porto ou no Hospital da Luz. Também a falta dum sistema de planeamento de altas em muitos serviços ou de uma gestão comum de camas em alguns hospitais. Outra situação que se tem agravado progressivamente é a transformação dos serviços de Medicina em verdadeiros centros de resolução dos problemas médico-sociais dos doentes a par da insuficiência de resposta na comunidade que tem provocado uma acumulação dos camados “casos socias “ nas nossas enfermarias, que, pelo menos num hospital já representa um quarto dos doentes. Finalmente há a questão da sazonalidade, que exige planos de contingência, que têm que ser geridos a nível regional.

Em relação ao funcionamento dos serviços de urgência, dos vários problemas destaco a substituição dos internistas por médicos indiferenciados, muitos deles contratados a empresas externas, que tem acontecido em muitos hospitais, arrastada pela implementação das equipas “fixas”, médicos que não conhecem o hospital, não trabalham em equipa, não têm capacidade de decisão e provocam muitos internamentos desnecessários, além de representarem um risco acrescido para os doentes numa das áreas mais vulneráveis do hospital, onde a experiência e a competência dos médicos é mais importante. Alguns hospitais, como é o caso do Hospital Garcia de Orta, abandonaram esta solução e voltaram à rotação das equipas no serviço de urgência.

Em relação aos longos tempos de espera na urgência, estes não são uma inevitabilidade resultante do excesso de procura e da sobrecarga das equipas, mas decorrem também da lógica do sistema de triagem de Manchester que estabelece tempos limite de atendimento de acordo com a prioridade de cada grupo, penalizando os doentes não urgentes, verdes e azuis, com longos tempos de espera. A triagem por prioridades é fundamental mas é ineficaz como mecanismo dissuasor para o recurso às urgências. Para além disso, os doentes verdes e azuis têm, na sua grande maioria, situações simples como amigdalites, infecções urinárias, lombalgias e outras que apenas necessitariam da observação dum médico e de uma prescrição para ficarem resolvidas e irem-se embora. Como isto não acontece, estes são precisamente os doentes que se acumulam nas salas de espera e acabam por chamar as televisões A solução seria assim criar uma via rápida para estes doentes, fazendo com que estes doentes sejam vistos por uma equipa diferente, num local adjacente à urgência, num Centro de Atendimento de Doentes Agudos, não urgentes, que separasse os fluxos e permitisse adequar melhor as equipas médicas em cada sector, oferecendo a segurança do acesso aos meios da urgência quando necessário ou a retriagem de doentes mal triados. Esta solução está implementada com sucesso no Hospital de S. Francisco Xavier, desde 1994.

A criação da especialidade de Emergência tem vindo a ser defendida por alguns, mesmo internistas, como a grande panaceia do problema das urgências. Pensamos que esta é uma das maiores mistificações. Na realidade a emergência é uma área específica de conhecimento, existem patologias que quase só aparecem nestes serviços, representa uma fase particular de muitas patologias, é uma forma diferente de abordar os doentes, é uma área de formação e investigação e, como tal, deve ser uma área onde é desejável que haja alguns especialistas que desenvolvam competência neste domínio, e os especialistas melhor preparados para desenvolver esta competência são os internistas. A Emergência deve ser uma das diferentes expressões fenotípicas da Medicina Interna, podendo ser uma área de diferenciação par alguns, mas a urgência deve continuar a ser um local assistencial privilegiado da Medicina Interna e todos os internistas devem manter actividade nesta área. Defendemos que a criação da especialidade seria um erro colossal. A competência permite tudo o que a especialidade permite mas o contrário não é verdadeiro. A criação da especialidade significaria condenar jovens licenciados a ficarem no serviço de urgência até à sua reforma, numa área de elevado burnout, sem possibilidade de retorno nem de acumulação com outras funções, significaria criar mais muros nos hospitais e dificultaria uma gestão flexível de recursos humanos. Além disso, a criação desta especialidade em alguns países não melhorou o problema das urgências, tal como é explicado num artigo desta revista, da responsabilidade do Núcleo de Urgência e do Doente Agudo. Estas as razões porque, em nome da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, nos declaramos contra a criação da especialidade de Emergência.

Como disse, as urgências são uma das principais áreas de atividade dos internistas, não só as externas como as urgências internas, e toda esta sobrecarga tem caído sobre os ombros dos internistas e das internistas portugueses e é também sobre os mesmos ombros que cai a sobrecarga dos internamentos, é por isso importante aumentar o número de internistas e retribuir de forma justa este trabalho, a começar pela reposição do valor das horas extraordinárias.

 

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