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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.24 no.2 Lisboa jun. 2017

 

PERSPECTIVA / PERSPECTIVE

A Liderança e a Medicina Interna: Breves Reflexões

Leadership and Internal Medicine: Brief Reflections

Fernando Ilharco

Universidade Católica Portuguesa

Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, Lisboa, Portugal

 

Palavras-chave: Liderança; Medicina Interna.

 


Keywords:Internal Medicine; Leadership.

 

“E eles virão quando os chamares?”
Shakespeare
Peça O Rei Henrique IV

O que é liderar na medicina interna, na gestão hospitalar e nos cuidados aos pacientes? Neste artigo procuramos elaborar um quadro conceptual que ajude a responder a esta questão.

Sendo a liderança um processo social, é pertinente saber porque se impôs a liderança como um modelo primordial de dinâmica colectiva? Existem outras dinâmicas, por exemplo, a multidão, a igualdade entre pares, a manada no reino animal. Mas os seres humanos, em rigor a maioria das espécies animais, organiza-se em redor de líderes. Porquê? A teoria evolucionista da liderança (Van Vugt 2010) defende que desde há milhões de anos os grupos liderados têm tido mais sucesso do que os não liderados.1 Os grupos liderados têm sobrevivido mais. Ao longo de centenas ou milhares de gerações ter-se-á formado um traço evolutivo que predispõe os seres humanos para liderar e para serem liderados. Uma ideia próxima da noção dos arquétipos, do inconsciente colectivo, desenvolvida por Carl Gustav Jung2 (1875-1961), especialmente do seu trabalho sobre os arquétipos do herói e do velho sábio (Jung 1976).2

A vantagem dos grupos liderados face aos não liderados terá sido a velocidade; a velocidade de acção assente na velocidade de decisão: uma pessoa, um responsável, uma decisão. A capacidade de decisão é essencial na liderança. Um grupo aceita que um líder se engane, que nem sempre decida bem. Mas tem dificuldade em aceitar que um líder não decida - “decida alguma coisa, mas decida”, é um comentário recorrente sobre líderes que não decidem. É necessária capacidade de decisão para liderar, mas não chega.

Um bom porquê

Na peça ‘Henrique IV’ de William de Shakespeare (1976), a rebelde Glendower conversa com Henry Percy. Conspiram contra o rei, troçando um do outro. Glendower diz então: “eu posso chamar espíritos das vastas profundezas!” Ao que Percy responde: “também eu posso, também o pode qualquer homem; e eles virão quando os chamares?” Ser seguido. “E eles virão?” perguntava Shakespeare. Todo o líder deve perguntar o mesmo: porque é que os outros me seguem? 3

Sigmund Freud (1856-1939) respondeu indirectamente a esta questão (Freud 1991), ao sugerir que a mente grupal, a dinâmica psicológica colectiva, é anterior à psicologia individual. Gustave Le Bon 4(1841-1931), pensador francês cuja obra influenciou a sinistra estratégia nazi de comunicação e manipulação de massas, sugeriu, na linha de Freud, que “um grupo nunca se limita aos factos; exige um sonho e não passa sem ele” (Le Bon 2003).4Em comunidade somos o ser que somos, um ser social. Mais fortes e mais capazes, somos criadores do mundo. Em grupo, como comentou Elias Canetti5(1905-1994), o que mais receamos é perder a força colectiva; por isso, sonhamos, criamos e avançamos (Canetti 2014).5 Talvez, por isso, a essência da liderança esteja também ligada ao ser aventureiro (Whittaker e Heil 2006),6 à aventura criativa que atrai a energia, as ideias, a motivação e as pessoas; que atrai para o líder o acontecer da realidade. Victor Frankl (1905-1997),7psiquiatra austríaco, sobrevivente dos campos de concentração názis, talvez seja quem de forma mais nobre ilustre melhor o poder transformador e tantas vezes inexplicável dos líderes. Ecoando a experiência de tempos sombrios, dizia Frankl (1988)7: “quem tem um porquê aguenta qualquer como”.

Liderar é ter um bom porquê. A boa liderança é uma liderança significativa, ao serviço de uma causa, ao serviço dos outros e do mundo. Quando o Presidente norte-americano John Kennedy, nos anos 60, visitou a NASA e perguntou a um dos seus funcionários o que fazia na organização ele respondeu: “ajudo a pôr um homem na Lua”. Podia ter dito que limpava as instalações e despejava o lixo. Mas dias antes, o compromisso público do presidente americano, de até ao fim da década porem um homem na Lua, havia despoletado a energia, a vontade, a imaginação dos profissionais da NASA e de milhões de pessoas, que se identificaram com aquela visão, aquele esperança e ousadia. Martin Luther King fez o mesmo nos anos 60 – “Eu tenho um sonho”, e mudou a América e mudou o mundo.

Ter um bom porquê (Frankl 1988),7 começar pelo porquê (Sinek 2011),8 ter um propósito que faça diferença é como o homem na Lua. É uma visão a longo prazo à volta da qual assenta o dia-a-dia profissional. É algo que pode mudar a vida dos outros e trazer significados especiais à nossa vida.

Num estudo sobre satisfação na vida profissional(Wrzesniewski et al, 2013 9; Wrzesniewski, 2001),10 foram observados durante algum tempo trabalhadores de uma equipa de limpeza de um hospital. Alguns sentiam o seu trabalho como um emprego, sem interesse nem significado especial. Mas outros sentiam que o que faziam afectava o trabalho das pessoas, dos enfermeiros e dos médicos bem como o bemestar dos doentes. Estes profissionais procuravam interagir positivamente com as enfermeiras, com os médicos, com os doentes, com os visitantes. Sentiam que contribuíam para o bom funcionamento do hospital e para o bem-estar e recuperação dos doentes. O estudo mostrou que tinham melhor satisfação com a vida do que alguns médicos que não sentiam o seu trabalho como significativo. Ajudar a pôr um homem na Lua, ajudar doentes a ficarem bons, contribuir para um mundo melhor. Um bom porquê faz um bom profissional, faz um bom líder.

Dois comportamentos

Qual o melhor tipo de líder na medicina interna? Na obra A Arte da Guerra, Sun Tzu (+ 2500 A.C.) 11 escreveu que se podia sempre saber não quem seria o melhor líder mas quem seria o pior. São muitos os factores que influenciam a liderança. Mas o pior líder, dizia Sun Tzu (1994), é geralmente alguém muito corajoso... e muito incompetente; é quem leva mais depressa ao desastre.11

Um líder pode ser formalmente seguido pela posição que tem na hierarquia. Mas a influência informal é mais penetrante e decisiva do que a influência formal. De alguma maneira, gerir assenta nas estruturas e liderar assenta nos relacionamentos. E porque é um líder influente e eficaz? Porque é competente; contudo, há muitos profissionais competentes que não são capazes de liderar, não querem liderar, não decidem, não são corajosos, não dão o exemplo, não inspiram, etc.; porque arrisca, dirão outros, mas por vezes são precisamente os riscos que fazem o mau líder, a situação pode pedir mais ponderação e menos riscos; porque envolve os seus profissionais, motiva-os e reconhece-lhes valor, e é importante, mas se a competência técnica falhar, se tardar em tomar decisões, se não enfrentar os problemas...

Qual o melhor líder? Depende da organização, do contexto, dos objectivos, da actividade, dos profissionais da equipa, das suas capacidades e motivações, do estilo individual de cada um, da sua personalidade, conhecimentos e motivação.

A investigação tem apontado dois tipos de comportamento que se levados a cabo sistematicamente tendem a levar a lideranças eficazes. Um líder pode comportar-se de diversas maneiras: estar focado nas tarefas, nas deadlines, nos detalhes; estar preocupado com a competência técnica; ter atenção ao orçamento e a assuntos do género; estar focado no poder, nos apoios, nas influências e nos acordos; estar preocupado em não arriscar, em não entrar em conflitos, etc. Podem ser vários os comportamentos de um líder no dia-a- dia, mas só dois comportamentos tendem a fazer uma liderança eficaz: o foco sistemático nas tarefas, nos pormenores, nas deadlines, nos objectivos; e o foco permanente no bom relacionamento, na empatia, na motivação, no saber ouvir.

Na teorização comportamental da liderança não existe um modelo final. Tanto o líder focado nas tarefas como o líder focado no relacionamento tende a ser eficaz; mas às vezes não é. Por vezes, não adianta um muito bom ambiente se os objectivos vão falhar. Outras vezes, a pressão para atingir objectivos é precisamente o que vai deitar tudo a perder.

Cada um, em função da maneira como é, terá mais facilidade em focar as tarefas ou o relacionamento. Por exemplo, e simplificando, quem tem uma personalidade mais tipo A – movido por um sentido de urgência, incansável, focado nos objectivos – será mais facilmente um líder tipo tarefas. Aqueles cuja personalidade seja mais tipo B – focados no bom ambiente, na qualidade do relacionamento, na empatia– mais facilmente serão líderes de relacionamento. Neste quadro, o desafio dos líderes, que creio particularmente relevante para a medicina interna, dado o seu forte peso técnico e o intenso ambiente relacional, é evoluírem para os chamados líderes integrais, ou seja, para líderes sistematicamente focados nas tarefas e no relacionamento.

A melhor motivação

Como pode um líder motivar melhor os seus profissionais? “Eu acho que a melhor maneira, pelo menos a mais consistente, que deixa menos dúvidas, de mais fácil entendimento e de maior durabilidade“ – diz José Mourinho, o treinador português de futebol mundialmente famoso – “é motivar os meus jogadores com as minhas próprias motivações” (Ilharco e Lourenço 2007; Ilharco 2012).12,13

Um líder desmotivado, com cara de poucos amigos, pode ter muitos planos mas vai ser difícil convencer os outros. As palavras comunicam, mas a química, e não apenas metafórica, também comunica. Os neurónios-espelho reproduzem emoções e acções detectadas nos outros e geram uma sensação instantânea de experiência partilhada, refere Goleman(2008).14 O modo como nos sentimos tende a passar para os outros. O que um líder maldisposto, desmotivado e sem convicção mais passa para a equipa, por mais que diga o contrário, é a desmotivação e a má-disposição. Pelo contrário, um líder motivado, com projectos ambiciosos e acreditando neles, sorri, fala com este e aquele, está bem-disposto e tende a desencadear o mesmo tipo de comportamento nos outros (Goleman 2008).14 Promove uma ligação entre os colegas, que estimula a abertura, a coesão da equipa, um ambiente positivo onde o trabalho é mais produtivo. A boa disposição, e a má se for o caso, bem como o esforço mental tal são contagiosos (Desender et al 2016 15 ; Goleman 2008 14 ), espalham-se neuralmente. Dai a motivação do líder ser a melhor motivação para os seus profissionais. A motivação do líder passa natural e permanentemente. Na maneira como fala, gesticula, actua, como se comporta, entusiasma e mesmo como pressiona. O líder é o exemplo final. É o que mais influencia o ambiente e quem mais define a realidade. É na mente do líder, verdadeiramente, que está a escolha entre a rotina e envolvimento colectivo, entre o desinteresse e o empenho significativo.

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

 

Referências

1. Van Vugt M, Ahuja A. Selected. London: Profile Books; 2010.         [ Links ]

2. Jung CG. Os Arquétipos e o Inconsciente Colectivo. In: Jung CG. Obra Completa. Petrópolis: Editora Vozes;1976.         [ Links ]

3. Shakespeare W. O Rei Henrique IV - Primeira Parte. Lisboa: Lello Editores; 1976.         [ Links ]

4. Le Bon G. The Crowd: A Study of the Popular Mind. Whitefish: Kessinger Publishing; 2003.         [ Links ]

5. Canetti E. Massa e Poder. Lisboa: Cavalo de Ferro; 2014.         [ Links ]

6. Whittaker L, Heil D. Some Phenomenological Thoughts About Leadership”, Proceedings of the Phenomenology, Organisation, and Technology. 5th International Workshop, University of Amsterdam, Amsterdam, September 21-22, 2016.         [ Links ]

7. Frankl V. The Will to Meaning. Nova Iorque: Meridian Books, Penguin; 1988.         [ Links ]

8. Sinek S. Start with Why: How Great Leaders Inspire Everyone to Take Action. Nova Iorque: Penguin Books; 2011.         [ Links ]

9. Wrzesniewski A, LoBuglio N, Dutton JE, Berg JM. (2013). “Job crafting and cultivating positive meaning and identity in work. Adv Positive Organ Psychol.2013;1:281–302.         [ Links ]

10. Wrzesniewski A, Dutton JE. Crafting a job: Revisioning employees as active crafters of their work.” Acad Manage Rev. 2001;26:179–201.         [ Links ]

11. Sun Tzu. The Art of War. New York: Westview; 1994.         [ Links ]

12. Ilharco F, Lourenço L. Liderança: As Lições de Mourinho. Prefácio de José Mourinho. Lisboa: Booknomics; 2007.         [ Links ]

13. Ilharco F. Mourinho: Liderança, Trabalho em Equipa e Excelência Profissional. Lisboa: UC Editora; 2012.         [ Links ]

14. Goleman D, Boyatsis R. Social Intelligence and the Biology of Leadership. Harvard Business Rev. 2008;86:74-81.         [ Links ]

15. Desender K, Beurms S, Bussche E. Is mental effort exertion contagious? Psychonomic Bull Rev. 2016;23:624–31.         [ Links ]

 

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